ESTUDO DE CASO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2019.vol04.0011

 

O pensamento e a lágrima: o Self e suas inter-relações

 

The thought and the tear: The Self and its interrelations

 

El pensamiento y la lágrima: El Ser y sus interrelaciones

 

 

Clara Rossana Ferraro de SÁ

Curitiba, PR, Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho trata-se de um estudo de caso, com duração de quatro anos, em sessões semanais de 50 minutos, realizadas em consultório particular. Foram utilizados o recurso das técnicas expressivas e a análise de sonhos. A análise junguiana estrutura-se em um espaço sagrado, um Temenos. Níveis mais profundos da alma são acessados por meio da tradução dos conteúdos simbólicos produzidos durante as sessões, tornando assim possívelum diálogo com oscomplexos constelados pelo Self, o arquétipo central. Para Jung, o centro da consciência é uma estrutura que gera identidade, o ego, e o Self seria o centro organizador que abrange a totalidade psíquica. A relação entre os centros ego e Self proporciona aestruturação da consciência e tem como meta o processo de individuação, no qual os conteúdos de ordem inconsciente são assimilados e significados, trazendo autoconhecimento. O resultado é uma ampliação da consciência e o consequente autoconhecimento. Neste processo, odesafio criativo apresentou-se como a necessidade de despotencializar a função egoica do pensamento que aparece como o Complexo de Medusa. Esse excesso mobiliza as forças antagônicas que buscam equilíbrio. A consequente integração da função sentimento traz fluidez econsciência ao corpo inteiro que retribui com fertilidade e energia renovada.

Descritores: psicologia do self, consciência, inconsciente (psicologia), ego.


ABSTRACT

This paper is a case study, lasting four years, with weekly sessions of 50 minutes, held in private practice, using expressive techniques and dream analysis. The Jungian analysis is structured in a sacred space, a "Temenos". Deeper levels of the Soul are accessed through the translation of the symbolic contents produced during the sessions enabling a dialogue with the complexes constellated by the Self, the central archetype. For Jung the center of consciousness is a structure that generates identity, the Ego, and the Self would be the organizing center that encompasses the psychic totality. The relationship between the centers Ego and Self provides the structuring of consciousness having as its goal the process of Individuation, in which the unconscious contents are assimilated and signified by bringing self-knowledge. The result is an expansion of consciousness and consequently, of self-awareness. In this process, the creative challenge appeared as the need to weaken the egoic function of Thought, which emerges as the Medusa Complex. This excess mobilizes the antagonistic forces that seek balance. The consequent integration of the function of Feeling brings fluidity and awareness to the whole body which gives, in return, fertility and renewed energy.

Descriptors: self psychology, conscience, unconscious (psychology), ego.


RESUMEN

Este trabajo es un estudio de caso, con una duración de cuatro años, en sesiones semanales de 50 minutos, que se realiza en consultorio privado. Se utilizaron técnicas expresivas y análisis de sueños. El análisis junguiano se estructura en un espacio sagrado, un "Temenos". Los niveles más profundos del Alma se acceden a través de la traducción de los contenidos simbólicos producidos durante las sesiones, haciendo posible un diálogo con los complejos constelados por el Self, el arquetipo central. Para Jung el centro de la conciencia es una estructura que genera identidad, el Ego, y el Self sería el centro organizador que abarca la totalidad psíquica. La relación entre los centros Ego y Self proporciona la estructuración de la conciencia y tiene como meta el proceso de Individuación, en el cual los contenidos inconscientes son asimilados y significados trayendo autoconocimiento. El resultado es una ampliación de la conciencia y el consiguiente autoconocimiento. En este proceso el desafío creativo se presentó como la necesidad de retirar poder a la función egoica del Pensamiento que aparece como el Complejo de Medusa.Este exceso moviliza las fuerzas antagónicas que buscan equilibrio. La consiguiente integración de la función Sentimiento trae fluidez y conciencia a todo el cuerpo, que retribuye con fertilidad y energía renovada.

Descriptores: autopsicología, conciencia, inconsciente (psicología), ego.


 

 

Introdução

Raízes portuguesas, raízes brasileiras. Cultura e natureza novamente colocam seus desafios. A criatividade da psique humana atualiza-se em cada alma que nasce. É possível transcender as oposições, vencer os obstáculos e gerar novas respostas frente ao desconhecido.

A imagética do mar traz consigo as dimensões do risco, do medo, da imensidão e do desconhecido, bem como da aventura, das conquistas, das riquezas, da nova vida.

Ao longo dos séculos, o domínio dos mares representou a chave para a sobrevivência. Da mesma forma, no campo simbólico, o mar do inconsciente desafia-nos a traduzi-lo da melhor forma possível, em busca do equilíbrio energético da totalidade psíquica.

Na dialética, mar e rocha, a força da plasticidade aquosa surge para decompor a mineralização secular. Encontramos aqui a "velha" Europa e a solidez de sua cultura. Anos e anos de trabalho contra a natureza sedimentaram conhecimentos, fixaram normas, enrijeceram sistemas. A exigência de perfeição tornou-se lei. O mito cristão é um imperativo.

É possível que a heroína, como mulher, personifique uma possibilidade da tão buscada coniunctio oppositorum alquímica, a união dos opostos, a última e mais difícil das operações, pois representa a união do inconsciente e do consciente, objetivo final do processo de individuação. A heroína estrutura a consciência, pois perfaz o ato heroico; ao mesmo tempo, seus valores são do inconsciente, pois pertence ao domínio do feminino, da emoção (Boechat, 2008, p. 68).

A necessidade torna-se um desafio, exige mudança. Sacrificium Intellectus. A humildade para descer e resgatar as outras funções da consciência.

 

Relato e discussão

Nascida em São Miguel dos Açores (Figura 1), em 1970, filha de mãe portuguesa e pai brasileiro, M. F. atravessou o oceano aos três meses de idade. Tal como seus ancestrais navegadores, fez a migração transcontinental, chegando ao novo mundo: Terra Brasilis.

 

Figura 1. São Miguel dos Açores

 

M. F. inicia sua análise em março de 2007. Prontamente, o inconsciente contribui com este sonho inicial:

Com uma estrada, era um paredão; lado esquerdo, bem alto, de pedra, rocha. Estava no trânsito, mas não estava dirigindo, estava a pé. Do lado direito, era um precipício. Não era água de rio. Vejo um caminhão parado; tinha um pedaço de rocha (vulcânica) antes de chegar à água, bloqueando o caminhão. Estrada estreita de asfalto. Estava a pé, com a mãe e o irmão. Precisava passar o caminhão, precisava passar pela rocha, entrar na água para continuar. Era uma água assim... Não dava medo de entrar, a gente vai ter que ir mesmo. Tenho que ajudar minha mãe e meu irmão. A gente vai ter que continuar; então, vamos mergulhar e passar. Tinha que ajudar os dois, tinha que ir: dar a mão para um, dar a mão para o outro, como se fosse responsável por eles. Lembro que mergulho e ajudo.

Entre o mar e a rocha, a analisanda percorre seu caminho de religação (Figura 2). Pela consciência, desafia suas defesas, seu status quo; guiada pelo desejo de uma alteridade psíquica, tendo o amor como princípio fundamental, lança-se nas entranhas do desconhecido. Escolhe o carvão e desenha o percurso da sua libido. Circunda o conflito, a dissociação entre mente e corpo.

 

Figura 2. O mar e a rocha (M.F., 2007).

 

Sessão de 06 de março de 2007

Sua fala espontânea revela o desafio: "Tem coisas para as quais a nossa razão quer explicações. Por que eu estava ali com a minha mãe e meu irmão e não o meu pai? Normalmente, é a mãe que cuida da filha".

A água como princípio materno - mãe e criança - é envolvente, protetora da heroína/ criança na sua exposição ao desconhecido e permeia o processo, a travessia. A transformação daquilo que está sem vida para ganhar nova vida. A filha, em busca de renovação de valores culturais, traz o potencial de unir cultura e natureza, dentro e fora, individual e coletivo, refazendo os laços entre Brasil e Portugal.

Arquétipo do si-mesmo ou Self - é o núcleo central e ao mesmo tempo a totalidade dos processos psíquicos, conscientes e inconscientes. [...] Jung observou uma ordem, uma organização é uma teleologia (finalidade) nos processos psicológicos totalmente independentes da vontade consciente do ego (Boechat, 2008, p. 198).

Já nesse início, aceita aprofundar e refletir sobre o que sente. Mergulha. Escolhe a angústia e o medo:

São esses sentimentos que me dominam e paralisam. Sinto que as outras pessoas têm poder sobre mim quando usam a agressividade, com a qual não sei lidar. Nasce uma vontade de chorar... Raiva de mim por ser incapaz de me defender; medo de magoar os outros e ficar sem o carinho (ou a atenção, ou a aprovação) deles. Tenho a percepção de quanto essas coisas me abatem e de quanto sou vítima da minha própria imaginação, que é carrasca (imagino que sou culpada, imagino motivos da culpa, imagino discussões etc.).

Constata que isso a afeta fisicamente: "Fico abatida, com dor de cabeça. Emocionalmente, fico depressiva, sem energia intelectual, isolada, como se tivesse cometido um crime, com medo, assustada; tenho tendência a chorar, a ter raiva da minha impotência".

Ao final do diálogo com sua verdade interior, decide o que pode dar a si mesma: "A minha capacidade de ver o problema, a emoção, de percebê-la e lutar contra essa morte lenta com todas as minhas forças".

Sessão de 03 de maio de 2007

Estamos em maio e o sonho constela a questão principal: "Acordei com aquele cabelo de negra (armado e muito farto) (Figura 3), olhei no espelho e tentei dar um jeito, amassar o cabelo... Sinto como o excesso do pensamento; quero a resposta imediata e nem sempre tenho".

 

Figura 3. Autorretrato (M.F., 2007).

 

Metáforas são uma catalisação dos níveis mais profundos da alma humana. Elas pedem uma tradução simbólica, uma atualização mítica de sua sabedoria em favor do crescimento individual. As imagens produzidas pela psique da analisanda revelam o drama mítico, as imagens atemporais e o seu dinamismo arquetípico.

M. F. precisa aprender a serpentear, a descer até a função inferior, a função sentimento. As raízes aéreas petrificaram seu corpo e a necessidade impõe a nova ordem: descer ao reino da terra. A serpente leva-nos ao interior da terra, seu movimento é capaz de furar o solo, ir para as entranhas.

A cabeça como Medusa, um olhar petrificante para o corpo, guarda o desejo humano de ser. Voltar a sentir. Os sentimentos enrolados em uma infinidade de ideias, racionalizados. O polo da visão desconectado do todo expressa a morte nos olhos. "Os sonhos de pedra procuram forças íntimas. O sonhador apossa-se dessas forças e, quando as dominou, sente brotar nele um devaneio da vontade de poder que apresentamos como um verdadeiro complexo de Medusa" (Bachelard, 1991, p. 9).

O pensamento torna-se a Medusa: seco, preto, cortante. Vai estrangulá-la.

O uso do grafite transmite-nos a carga emocional do excesso, do incessante. Ela tem a rocha dentro de si, um patriarca internalizado, uma rigidez. Uma ordem: pense. Seu corpo sofre.

A psique é constituída pelo consciente e inconsciente e pela interação entre eles. Como um sistema autorregulador teologicamente determinado, contém um impulso em direção à totalidade e tem a tendência a equilibrar-se por meio da função compensatória do inconsciente. O processo simbólico - a vivência da imagem e na imagem - permeia esse caminho. Entre o escuro e o claro, temos o início como um desafio criativo em um confronto, um beco sem saída, uma não compreensão do sofrimento, que implora por significado até a situação inicial ser superada.

Para percorrer esse caminho com segurança, a análise junguiana acolhe a alma em um espaço sagrado, um Temenos, onde o encontro estrutura-se no tempo e no espaço de acolhimento. O ritual semanal promove a consolidação da consciência e protege contra os perigos da imensidão do mar do inconsciente, com suas possíveis ondas incontroláveis de afeto.

Mobilizado, o inconsciente responde com mais representações e o conflito entre o intelecto e o sentimento começa a ceder. O controle rígido, negativo, institucionalizado em sua ordem absoluta, onipotente, onipresente, onisciente, permite ser visto. No sonho, a rocha metamorfoseou-se e surgiram construções de pedra:

É uma cidade. Eu morava lá, fazia pouco tempo. Tinha um ponto turístico, tipo cidade medieval, e tinha um túnel bem escuro (só que não era noite, era dia) (Figura 4). Isso aqui é uma ponte, e tinha uma abertura. Fui visitar o lugar turístico, mas era um manicômio.

 

Figura 4. O túnel (M.F., 2007).

 

A força da imagem produzida em carvão pede a observação do que foi instituído em sua vida pessoal. Ela vê a universidade à qual se dedicou durante grande parte de sua vida. Observa que sua rotina rígida não permite deslizes, mas esses acabam acontecendo. O tempo cronometra a sua vida e debate-se em repetições. O lado esquerdo do cérebro, lugar da cidade medieval com suas leis patriarcais, também se apresenta em suas associações como um hospital psiquiátrico.

Temos uma polarização do racional, ameaçando-a, impedindo-a de abandonar suas defesas organizadas no pragmatismo alienante. Essas defesas racionais fizeram parte de seu desenvolvimento psicológico. A educação cristã utiliza-as com maestria, impedindo assim a espontaneidade dos afetos. O excesso de pensamentos é a patologia.

Permite-se relembrar o sofrimento. Sente tristeza quando vai embora do trabalho, quando o dia vai escurecendo. À noite, chora muito, e a espera passiva invade sua alma (Figura 5). Sabe que ainda alimenta um amor impossível. A solidão invade sua alma e anuncia o encontro consigo mesma. Começa a perceber o quanto esteve distante de si mesma, o quanto permaneceu sonhando com um amor.

 

Figura 5. Retrato da tristeza (M.F., 2007).

 

Sessão de 31 de maio de 2007

Sua psique faz aparecer a angina; o pensamento furando o peito. Relembra os momentos felizes que viveu e sente:

Vontade de ir no [sic] e-mail e conversar. Não sobre o fim. "E aí, como está você? Existe chance para a gente?" Dele, não tenho raiva; do meu pai, sim. Nunca vou encontrar um defeito horrível; se ficasse 10 dias, teria assunto para 10 dias. Ele tem aceitação das diferenças.

A dor do desejo não realizado e a impotência diante da impossibilidade de constituir uma família nos moldes tradicionais amedrontaram-na durante os primeiros anos da vida de seu filho.

Na imagem da Figura 6 M. F. expressa tudo o que sentiu durante todo esse tempo. A asfixia emocional. Sua dificuldade de fluir no prazer de viver, de simplesmente estar de acordo com o que sente e realizar sua escolha.

 

Figura 6. O sentimento vai para a cabeça (M.F., 2007).

 

O movimento afetivo que contém a possibilidade de resgate da religação aparece novamente na cor do orifício. Estão lá o mar e a rocha. Eles comprovam o ritmo dual: inspiração e expiração, entrada e saída.

O sentimento aparece para contrabalançar o logos. Considerado consciência masculina, pode-se entender o logos como o julgar, o reconhecer. Eros, como consciência feminina, seria o se relacionar.

Ela também tem o mar e a rocha no peito. A mente lógica e sua cadeia infinita de opostos irão sempre gerar uma compulsão ao pensamento, sendo ele a função principal ou fruto de uma tipologia invertida, forçada pela cultura que privilegia o pensamento em detrimento do sentimento, da intuição e da sensação.

Aqui ela sai da Medusa e entra, propriamente, em análise. O conflito aparece e, com ele, o colorido, seus cabelos desgrenhados expressam a emoção e seus braços para trás parecem dizer: "Está aí, e agora?".

A alma ligada ao thymos, ao coração, é a alma que atingiu o estado erótico. Em sua função divina, Eros é um meio de penetrar em qualquer padrão e dar o colorido, é a função que estreita as distâncias e faz as ligações [destaque do autor] (Sá, 2007, p. 27).

Pode-se constatar a relação transferencial proporcionando o amparo, a receptividade da mãe brasileira, que recebe nos braços a filha portuguesa, embalando-a com histórias que são bálsamos, dão segurança, garantem a permanência nas raízes nutridoras, fonte de vida. O amor na alma é a base para a transformação.

A possibilidade de resgatar o sentimento por meio da arte acorda os sentidos. O Temenos, como um lugar sagrado, um templo para a orientação interior, proporciona o lugar livre e protegido para a expressão dos conteúdos inconscientes. A bússola é o próprio coração, produzindo o amálgama da vida, o amor. O medo do feminino é superado e dá passagem ao caminho do coração, com seu colorido emocional.

A provocação do conflito é uma virtude luciferina, no sentido próprio da palavra. O conflito gera o fogo dos afetos, ou seja, o da convulsão e o da geração da luz. A emoção é, por um lado, o fogo alquímico, cujo calor traz tudo à existência e queima todo o supérfluo (omnes superfluitates comburit). Por outro lado, a emoção é aquele momento em que o aço, ao golpear a pedra, produz a faísca; emoção é fonte principal de toda tomada de consciência. Não há transformação de escuridão em luz, nem de inércia em movimento, sem emoção (Jung, 1950/1976, p. 105, § 179).

Segue-se uma explosão rosa, ela traz o sentimento para a cabeça (Figura 6). A chama que vem do coração tem sua fonte no diafragma, músculo responsável pela inspiração. Ele separa o tórax do abdômen. Agora, o corpo quer pulsar seu ritmo natural, o ir e vir de seus humores, de seus afetos, e perceber o movimento, a libido represada no corpo e sua reação de vida.

Decide e expressa: "Quero trabalhar com meu lado negro".

Desiste de enfrentar do lado de fora. O trabalho é interior. Terá de ultrapassar o guardião do umbral (Figura 7), o monstro que anuncia outro nível de consciência, outra dinâmica, com outras leis. Precisará do discernimento para vencer a depressão diante do agressor - aquele que impede sua plenitude de ser inteira e poder fazer escolhas próprias. Os raios de sua racionalidade fuzilam seus desejos e deixam-na apática e impotente diante do crítico internalizado. Pessoas reais intimidadoras, devoradoras ou abusivas acionam o complexo, ativam memórias e exigem respostas.

 

Figura 7. O monstro opressor (M.F., 2007).

 

Sessão de 20 de agosto de 2007

A luta com o dragão da inconsciência pode torná-lo nosso colaborador; seus aspectos criativos vencem o medo e a paralisia asfixiante. Não precisamos temer e sim respeitar, para poder vincular e encontrar as chaves das portas do conhecimento. Vencer o apego, passar pela regressão, aprender com a depressão para, então, superar o complexo destrutivo, o despotencializando e promovendo crescimento.

Herdeiro do Complexo do Tirano e do Complexo do Grande Inquisidor, o feminino em nós (homens e mulheres) é desafiado a achar os bálsamos para curar sua unidade dilacerada. Amor, beleza e sensibilidade são facilmente devoradas pelo desejo de mais poder. Precisamos recuperar a sensibilidade para integrar a sombra, intuir o tirano em nós, que nos faz competir e querer eliminar o outro. Sempre divididos, seguimos reclamando das insatisfações. A culpa sempre é de algum erro.

O destino da analisanda é o de ser a protagonista do drama familiar. Liberar a persona de uma boa menina e encarnar a nova mulher, portadora da reestruturação. Deixar a passividade, a herança milenar; por meio da integração da sombra, do instinto agressivo, tornar-se a tecelã de uma nova consciência, a consciência que inclui as diferenças. Identidade e alteridade dialogam e surge respeito e reconhecimento.

M. F. tem sempre a sensação de que está errada e sente culpa. Acha que o pai e o irmão são cúmplices em sua fidelidade masculina. O irmão não é castigado e tem prazer em subjugar e ver o outro mal. Diante dos olhos do irmão, ela é a queridinha, mas ela acha que o irmão é superprotegido. Também fala de seu filho. Estamos diante do masculino e da inconsciência, que o torna um obstáculo.

O animus auxilia a mulher no mundo do pensamento, bem como na sua relação com o mundo interno. É como se ele fosse capaz de apurar esse pensamento ligado ao sentimento e à natureza, dando-lhe mais clareza. O animus pode ser tanto um valioso companheiro como, em sua forma negativa, um cruel dominador. O aspecto positivo do animus é que ele pode se tornar um guia na estruturação da vida da mulher, auxiliando-a em sua feminilidade. Quando possuída negativamente pelo animus, a mulher torna-se uma paródia de masculinidade, ficando o seu pensamento divorciado do sentimento (Robell, 1997, p. 118).

Sessão de 25 de outubro de 2007

O tempo é o grande escultor, que permite a revelação de todo o trabalho oculto pela natureza, e o sandplay nos presenteia, tornando-a visível (Figura 8).

 

Figura 8. A gata (M.F., 2007).

 

A gata preta, ao mesmo tempo que está guardando, sabe. A águia domina o voo preciso, enxerga muito longe. As pedras formam uma parede lateral, abaixo, como se essas pedras tivessem afundado e vêm para cima para mostrar algo bonito. Aqui um cara tipo tirando sarro, observando de longe (máscara). As joaninhas estão indo embora. O galo tá [sic] ciscando lá na casa dele, e ele é pequeno, tá [sic] indo embora

A gata é um símbolo do feminino; ela representa os humores ligados aos ciclos de fertilização da natureza. Os egípcios conheciam muito bem esses ciclos e ritmos e os representavam como Bastet, a gata, e Sekmet, a leoa. O instinto selvagem era reconhecido e integrado. "A anima divina, Bastet, é o estímulo, a magia da vida" (von Franz, 2000, p. 151).

Pode-se dizer que a natureza feminina quer ser fecundada. Vemos a terra arada, campo de Deméter, bem aventurança, graça, abundância, fartura. Um retorno aos mistérios de Eleusias, à sacralidade do útero da terra, ao amor entre mãe e filha, Deméter e Core/ Perséfone.

Na Figura 8, vê-se, no meio, à direita, uma máscara que nos alerta sobre o outro olhar que acompanha o percurso. Aquele olhar sem vida da Medusa está ganhando nova vida. A relação flui de um campo ao outro, transformando as barreiras.

Citando Vernant, Boechat (2008, p. 80) coloca que os poderes arquetípicos de Medusa, Artemis, Dionísio são configurados pelas máscaras e suas características de delimitação de tipos diferentes de consciência. Identidade e alteridade tornam-se possíveis.

O complexo de Medusa continua presente; porém, visivelmente desconstruído. Por meio de uma forte carga expressiva, sua alma continua a denunciar seu estado de abandono e escolhe uma imagem submersa nas profundezas do silêncio inerte, representando: "O 'nó', o muito que não consigo digerir Como se só olhasse, não expressasse, estivesse escondida".

Sessão de 12 de dezembro de 2007

Seguindo ludicamente as imagens, vemos agora a Medusa (Figura 9) invertida com muitas pernas, tal como raízes ainda fora do habitat natural. Mesmo mergulhadas, continuam seduzindo e provocando o deslocamento para o local próprio de sua natureza feminina, para a intimidade de todas as coisas.

 

Figura 9. Medusa invertida (M.F., 2007).

 

Jung (1988, p.186, § 397) cita os escritos de Orígenes nos quais enfatiza que o sol e a lua são realidades que estão dentro de nós, assim como as estrelas. A unidade e a multiplicidade de possibilidades e tendências buscam realização na alma humana.

Por meio da análise, torna-se possível o confronto com o inconsciente. As ferramentas são diversas. A escuta, a análise dos sonhos, as técnicas expressivas e a experiência da analista oferecem o campo fértil para a realização da meta proposta pelo Self.

Em sua história de vida, a analista forjou suas emoções em barro, bronze, pedra e resina. Recuperou a feminilidade aprisionada, expressando-a, organizando o caos, forjando as emoções, tornando o feminino digno, consistente, presente em sua capacidade de perceber o outro e acolher na alma com amor. A transferência e a contratransferência asseguraram a continência e a consolidação do processo criativo.

A analisanda possui um padrão de agressividade introvertido, assim como a analista, que abre sua ferida e sente a dor novamente. Empatia e desejo de reparação são ingredientes fundamentais para a transformação.

A elaboração da prima-matéria do conteúdo do inconsciente exige do médico uma paciência infinita, perseverança, equanimidade, saber e competência; e do paciente, o uso de todas as suas forças e de toda sua capacidade de sofrer, o que também não poupa o médico (Jung, 1990, p. 57 § 385).

Sessão de 31 de janeiro de 2008

Estamos no início de 2008 e a analisanda traz a imagem que veio durante a semana, sem palavras, que não se fazem necessárias. Nasceu com o dom da expressão, pelo desenho (Figura 10).

 

Figura 10. Desespero (M.F., 2008).

 

O grito surdo e ensurdecedor é, ao mesmo tempo passivo e agressivo, carregando o tom emocional do desespero, que a deixa sem saída, sob a ordem da obediência. Transgredir, compreendendo e reagindo de acordo com seu próprio ponto de vista, traz a agressividade para o campo do domínio de si, tornando-a forte e resistente.

Recorda que teve uma educação esmerada, não podia contradizer a autoridade - obediência sempre -, e nem podia chorar. "O trauma externo, por si só, não divide a psique. Uma entidade psicológica interna - ocasionada pelo trauma - executa a cisão" (Kalsched, 2013, p. 33).

Uma lucidez ilumina a essência de seu drama:

Me sinto uma aberração. Mãos e braços, incapacidade de realizar as coisas, como se o cérebro tivesse crescido, mas com um conhecimento intelectual inútil. Excesso ruim, falta para outras partes uma completude, um ser, mais equilíbrio! Uma perna esmagando e a flecha. Parece uma relação sexual... Entra, vai rasgando, machucando, e entra no coração, que é sentimento. Como se fosse um estupro da filha. O pai está mais preocupado com o show, a plateia, e está cagando e andando para quem está embaixo dele.

Sessão de 13 de março de 2008

A personalidade desse pai tiraniza sua alma (Figura 11). A libido presa na figura paterna deforma sua autoimagem. Configura a sua prisão tanto no nível pessoal, quanto coletivo, na exigência de uma perfeição absoluta. Como tem dentro de si um padrão introvertido de agressividade, esse impossibilita a reação imediata e exige um tempo para elaboração. A agressividade pela agressividade é o mal em si, extremamente prejudicial.

 

Figura 11. O tirano (M.F., 2008).

 

Com efeito, muitas vezes, é a imagem química, a imagem material, que dá vida a expressões animalizadas. Assim, as mágoas 'corrosivas' jamais teriam recebido esse nome se a ferrugem não tivesse "corroído" o ferro, se a ferrugem não tivesse aplicado, incansavelmente, seus pequenos dentes de rato sobre o ferro dos machados (Bachelard, 1990, p. 49).

M. F. precisa confrontar esse masculino interiorizado e, para tal, necessita do animus positivo, ativo. O animus, como função de integração está sendo preparado nesses retornos da energia recalcada. Passo a passo, a força de integração vai trazendo para a consciência as emoções que amarram e drenam sua energia, impedindo seu crescimento psíquico.

Sessão de 01 de abril de 2008

Totalmente à vontade no espaço terapêutico, ela escolhe novamente o sandplay (Figura 12) para se expressar: "Cidade mais rural, lembra São Miguel, cidade onde eu nasci, super religiosa, moralista. É bonita, mas as pessoas têm como acordo o princípio do julgamento; as pessoas tentam excluir".

 

Figura 12. Jogo de Areia (M.F., 2008).

 

Nessa paisagem da alma, vemos Isis com asas abertas, protegendo os ciclos de transformação da matéria inerte para ganhar vida. Ela está no final do caminho das pedras, acolhendo a chegada para o interior da casa. O vaso, o fogão, o ninho estão ali aguardando. O pastor e as ovelhas também aparecem abrindo passagem para a renovação. Ele conhece a natureza e seus dons curativos. Masculino e feminino arquetípicos divinizados amparam o processo. A rigidez dos valores mineralizados sob o jugo da lei da espada decompõe-se. O quatérnio masculino: rei de espadas, gladiador, guerreiro com armadura e homem com escafandro são capturados nessa cena reveladora. A intimidade está ali, bem próxima, e a serpente de pedras nos traz Hermes e suas pedras (as Hermas), que conduzem a alma no caminho das virtudes, vigiando os vícios, as compulsões, os excessos. Ele é o deus das fronteiras, aquele que interliga os mundos da transcendência espiritual, da imanência terrena e das profundezas do Ínferos, o interior das aparências, a essência em si.

A alquimia francesa do século XVIII conhecia o rei, isto é, o enxofre (quente), vermelho do ouro, e o denominou Osíris, e o úmido (aquosum) Ísis. Osíris era "o fogo escondido da natureza, o princípio ígneo, que tudo anima"; Ísis, "o princípio material e passivo de tudo". O despedaçamento de Osíris corresponde à solucio, putrefactio (solução, putrefação) etc. Da última, diz Dom Pernety, de quem provém esta citação: "Solucio corporis est coagulatio spiritus" (a dissolução do corpo é a coagulação do espírito). A negrura pertence a Ísis. Sobre sua vestimenta, diz Apuleio: "Palla nigérrima splendescens atro nitore" (uma pala nigérrima brilhando em negro esplendor). Quando o céu ou o Sol inclinar para ela, serão todos envolvidos pela negrura dela (Jung, 1990, p. 337, § 391).

Sessão de 14 de outubro de 2008

Num continuum, matéria e espírito dialogam. A analisanda escolhe modelar uma cabeça em argila, um filósofo com a corda, a serpente enrolada no pescoço (Figura 13). Filosofar, pensar a existência humana. E a rocha e a água reaparecem.

 

Figura 13. Escultura em argila (M.F., 2008).

 

A argila, como matéria mole, dá plasticidade à psique. O material contém, em doses homeopáticas, as águas emocionais e permite a justa expressão do conflito. A própria argila é uma solução. As mãos brincam a feminilidade aprisionada na matéria e o movimento céfalo-caudal serpenteia contornos, dança a sabedoria.

Limites que criam obrigações estão na simbologia do laço, da corda, do nó. São modos de falar dos limites de Ananké, o direito inelutável da necessidade. Não há saída. A necessidade impõe-se como um limite que cria obrigações, como um direito. Inelutável, ela subjuga e faz cumprir o destino.

Temos aqui uma sizígia, um par arquetípico, o tempo e a necessidade.

É necessário estrangular o senex e seu pensamento linear; matá-lo, de alguma forma, estreitá-lo, diminuindo assim sua velocidade cortical.

A problemática do corpo como lugar do sagrado exige uma nova atitude. O pensamento já foi longe demais. Ananké, a necessidade, é a cobra, a serpente enrolada no pescoço, que asfixia.

É o seu destino; ela não pode fugir dele. Ela é o nó, a coação da necessidade que produz a ansiedade de sufocamento. O vínculo estreito é uma metáfora do estreitamento. As necessidades não atendidas geram as compulsões.

A serpente é um símbolo motor por excelência. Um arquétipo em si, com sua potência de gerar imagens. Imagens de penetração. Estamos diante de um princípio de deslocamento, a espontaneidade do movimento.

Um novo momento. Ousa mais e arrisca. Desliza o pincel na água colorida, aprende a girar, a segurar a totalidade. É possível ser inteira. Sentir, perceber e deixar a intuição fluir.

"Quero ouvir a música das esferas, o som do universo, o amor"

Enquanto pinta, fala da intimidade cuidada, preservada e não colocada em julgamento público. Permite-se o prazer de ser, simplesmente.

Sessão de 11 de novembro de 2008

Ouvir música é entrar no campo das vibrações ligadas à construção de um corpo de luz, um corpo sensível, um corpo que sabe. Música é sentimento, é emoção, e nos põe em relação com o mais íntimo de nosso ser. Ouvir a música das esferas (Figura 14) seria um retorno à harmonia original - uma vibração em perfeita harmonia, cores e tons, em um corpo uno, divinizado.

 

Figura 14. A música das esferas (M.F., 2008).

 

Em Elêusis, foi mostrado o caminho para assegurar o melhor dos destinos possíveis para a alma depois da morte. O milagre da regeneração, em lugar da eternidade do ser, foi ensinado [] Os nove dias do Festival significam o declínio da alma. A alma, caindo de sua morada divina e original no céu, passa através de oito esferas, a saber: a esfera constante e os sete planetas, assumindo um corpo diferente e empregando diferentes energias em cada uma, tornando-se finalmente conectada com o mundo sublunar e um corpo terreno na nona esfera. Acredita-se que Deméter e a fundação da arte da lavoura significam a descida do intelecto aos reinos da criação, o maior benefício e ornamento que a natureza material é capaz de receber. Sem a possibilidade de participação do intelecto na esfera inferior da matéria, nada além de uma vida irracional e brutal subsistiria (Wright, 2004, p. 87-92).

Estamos no terceiro ano de análise. O prazer de viver a maturidade é visível.

Na virada do ano, M. F. permite-se ir para a Ilha do Cardoso com o namorado e o filho. Eles já conviveram tempo suficiente. Foram sete dias de realização de um sonho que parecia impossível de acontecer. Está amando novamente e respeitando esse sentimento. Sabe conduzi-lo com mais segurança. A natureza faz seu trabalho silencioso de renovação. Sente-se mulher, mãe e profissional; feliz por se permitir cuidar de suas escolhas.

Sessão de 07 de maio de 2009

Em maio de 2009, volta o sintoma da enxaqueca. M.F. vai ao iridologista e o terapeuta diz que é intoxicação. Está pesquisando imagens pré-colombianas e constata que uma boca aberta e uma cara serviam para afugentar maus espíritos. Resolve representar e, no seu desenho, coloca garras, coroa e as ondas saindo da boca (Figura 15). A aquarela auxilia a purgar. Eu digo que um jeito de desintoxicar é vomitar. Conversamos sobre estar intoxicado, enquanto ela aquarela a obra, e ela diz:

Uma fera que está atacando, mas não é agressiva, não é em direção à alguém. Tá [sic] equilibrando as forças dele para usar no momento certo. É como se estivesse fluindo as coisas dentro. Ele tá [sic] preparando para um ritual, tá [sic] pintando, é de uma tribo primitiva. Deve ser um encontro para a espiritualidade. O azul, a água, as bolhas de ar misturadas; depois, sairiam e explodiriam, como se estivessem se purificando, pois dentro do líquido estão meio carregadas. É um olho meio de fera brava; lembra aqueles negros tão negros que têm o olho amarelo. Se fossem palavras mágicas, seriam de sabedoria. Não tem perfeição, está se livrando de algo.

 

Figura 15. Animal xamânico (M.F., 2008).

 

Com as patas no chão, o animal xamânico mostra seu poder. Vemos a coroação da Grande Mãe-Terra e o retorno de suas potencialidades criativas ao nível do feminino, do corpo que fala.

Na arqueologia das imagens, essas são repetidas ao longo das épocas e trocam suas vestimentas, mas sua essência continua a gerar possibilidades. No mito grego da criação, o cosmos de luz nasce do caos primordial, um abismo insondável, e é ameaçado de ser devorado pelas forças titânicas originais que tentam impedir sua libertação.

Atingida a idade adulta, o futuro senhor do Olimpo iniciou uma longa e terrível refrega contra seu pai, Crono. Tendo-se aconselhado com Métis, a Prudência, essa lhe deu uma droga maravilhosa, graças à qual Crono foi obrigado a vomitar os filhos que havia engolido (Brandão, 1986, p. 332).

Sessão de 18 de junho de 2009

Conversamos sobre o ódio e o medo dos valores femininos emergentes, da revalorização e dos cuidados que eles requerem. Tocada pela emoção, faz um cenário na areia e usa elementos naturais, madeira, metal, pedra (Figura 16).

 

Figura 16. Jogo de areia (M.F., 2009).

 

"Não estou sozinha nesse mundo. Essas coisas me ajudam a viver. Cortar lenha para o fogo, pescar, tirar água, enquanto o companheiro vai fazer as coisas dele." A mulher inteira e seus símbolos preenchem a cena. Vemos a natureza, a casa, o barco, os potes, as flores e a gatinha. Essa gata seria uma humanização de Bastet, a gata negra, símbolo de Ísis no antigo Egito. Sim, os ciclos de agressividade estão mais conscientes, bem como o poder cortante de seu intelecto, fonte de suas enxaquecas. Na diagonal espiritual da cena, em oposição ao machado e ao toco de árvore, vemos a mulher dentro de um círculo apotropaico, aquele que protege sua integridade contra as forças arrebatadoras das compulsões intelectuais. No cavalo, a força e a sensualidade.

Verdadeiras Hermas fazem o caminho de integração de seu animus positivo. Hermes, Deus da comunicação e das fronteiras entre os mundos, aparece também no símbolo do poço. Saber dosar, relacionar internamente os conteúdos que transitam entre a consciência e a inconsciência caracterizam essa imagem. Raízes arquetípicas estão consteladas. A certeza de uma permanência faz-se presente, curando a alma das possessões do espírito.

Em julho de 2009, retorna aos Açores. É a primeira vez que seu filho viaja para lá. Confessa o quanto ama sua terra natal e sente falta daquela natureza quase intacta. A saudade é imensa. Algo inexplicável - só na intimidade do ser pode haver uma compreensão.

Sim, é uma viagem de resgate das raízes. Elas precisavam ser revisitadas para alimentar a cura interior e se tornarem psíquicas. Uma consciência de raiz. Estar enraizada em seu próprio ser para não se perder na imensidão de possibilidades.

Sessão de 06 de agosto de 2009

Atendendo à necessidade interna de reconexão, volta para a aquarela. Surge um quatérnio formado por três peixes bem definidos e outro pouco definido; tal qual as quatro funções da consciência, uma delas estará sempre muito próxima da inconsciência (Figura 17). São necessários quatro pontos de vista para temos uma visão de totalidade, o Quatro torna-se o Um consciente, constatando-se a alquimia secular.

 

Figura 17. Quatérnio de peixe (M.F., 2009).

 

A função sentimento aparece em todo o seu esplendor nas águas férteis do inconsciente. Surge mais uma metamorfose do tema da Medusa. Em vez de cobras e sua poética da terra, temos peixes e suas metáforas espirituais. O resgate da função inferior torna possível a vivência espiritual e a manifestação do Uno. Recupera, aqui, o que sua alma tem de mais valioso: sua fonte de vida e renovação.

O sacrificium intellectus [...] é ter humildade de se descer com as outras funções para aquele nível inferior. Essa conduta produz um estágio entre as duas camadas, mais ou menos no nível em que nada é pensamento, sentimento, percepção ou intuição. Surge algo novo, isto é, uma atitude completamente diferente e inédita em relação à vida, na qual se usam todas e nenhuma das funções durante todo o tempo (von Franz & Hillman, 1995, p. 33-34).

A analisanda relata que se trata de

[...] uma energia saindo daqui, é energia etérea, ela se transforma em onda. É uma mulher, mas não é um ser estranho. Ela se transforma em onda, em peixe; ela se transforma nessa água salgada. Cuidando dessa baleia, ela participa desse mundo. Ela é o próprio mar. Aqui é um pedaço de baleia. A lua está lá em cima, participa dessa vida aqui na água. Não é um mundo dividido em céu e terra. Noite clara de lua. A baleia lembra os Açores, um dos símbolos do arquipélago. Antes caçavam baleias, hoje não. É como se eu estivesse cuidando de toda essa vida. Aquarela, a gente vai fazendo; e o resultado não é o que a gente espera. Ela vai se moldando.

Sessão de 03 de dezembro de 2009

Com a habilidade da artesã, continua seguindo sua sensibilidade e ampara, assim, seu dom. Alimenta-o com satisfação. Nasceu para produzir o belo por meio da experiência estética.

Estou limpando algo para depois refazer. Estou vomitando sangue (Figura 18). Não está se desmanchando, não é indigestão da comida; é indigestão da emoção, do ódio das outras pessoas quando a gente se depara com a raiva que jogam em cima da gente, da opressão, da falta de liberdade, daquelas coisas das pessoas prepotentes que não têm canal de comunicação, da frieza, sabe?

 

Figura 18. Vômito de sangue (M.F., 2009).

 

O ciclo de quatro anos de análise, tendo a feminilidade consciente como continente para as metamorfoses da libido, proporciona o encontro com a tão desejada coniunctio oppositorum alquímica, a união dos opostos, a última e mais difícil das operações.

Sessão de 05 de março de 2010

Seguimos para o quarto ano de análise e a plenitude da capacidade criativa do inconsciente surpreende-nos outra vez.

M. F. produz com intensidade e cria uma história para esse momento tão significativo.

O nome dela é Minéia. Ela está se sentindo bem fisicamente, é jovem, forte, saudável, mas há algo espiritual, emocional a ser transformado e que lhe dará forças para continuar. Essa transformação a ajudará a um maior autoconhecimento, o que irá dar solidez ao seu eu, tornando seus passos mais firmes. Minéia chegou na floresta no fim do dia, depois que as energias da produção, do trabalho, da força, da "lida" começaram seu repouso. Os animais preparavam-se para dormir. O vento acalmava. Um vento fresco e puro soprava. A lua já apontava. No local combinado, todas já estavam à espera. Receberam Minéia amorosamente, com suas mãos sábias preparadas para começar o ritual. Despiram Minéia, deram banho com água perfumada e, com a energia que saía de suas mãos e seus peitos despidos (plexo solar), formaram uma corrente de energia que acolhia e curava, sem palavras; com isso, preparavam Minéia para o próximo ritual (Figura 19).

 

Figura 19. A cura de Minéia (M.F., 2010).

 

M. F. prossegue com sua história:

Chegada a lua cheia, as mulheres retiraram-se para local abrigado, mas não muito distante dali. Minéia sentiu o sal da água do mar e deixou que seus cabelos ficassem molhados, sentindo a água fria refrescar o couro cabeludo e, depois, seus braços, pernas e todo o seu corpo. A luz da lua era tão forte que quase dava para sentir seu toque (Figura 20).

 

Figura 20. Banho de mar sob a lua (M.F., 2010).

 

A metamorfose começou. Minéia começou a se transformar em peixes, conchas, algas e todos os seres do mar chegaram para formar aquele cenário, porque todos estavam em comunhão naquele momento. As águas faziam um leve movimento, suave, as ondas estavam vivas e sabiam que era um momento especial. A atmosfera tinha uma névoa cinzenta, liberada pela metamorfose, que iria desaparecer conforme subisse no céu. Tudo se acalmou, a noite já tinha caído. Fez-se muito silêncio, nada mais se via. Nem peixes, nem conchas, nem Minéia. Chegados os primeiros raios de sol, as mulheres vestiram-se e foram embora, tranquilas e felizes com o acontecido. Minéia iria renascer em algum lugar da floresta e dentro do mar, preparada para a nova vida, para um novo olhar sobre o mundo, até o próximo ritual das próximas etapas de sua vida. O dia havia nascido. A natureza, com seus sons, cheiros e cores, oferecia o alimento mais fundamental.

Para os gregos, a criatividade era o phármacon, o remédio que tudo cura. Conceber o novo é participar dos mistérios da natureza. Ela traz a morte fértil, ela decompõe para compor novamente, gerando mais vida, a vida indestrutível do imaginário de Dionísio, o deus do êxtase e do entusiasmo.

Na primeira imagem da série de três, colocadas juntas pela analisanda, salta aos olhos o círculo de mulheres em seu habitat natural. No centro, a iniciada nos mistérios do feminino, o mistério da semente, vida-morte-vida. No contorno, a árvore; ela não está contida no papel. A árvore, que é o Temenos, o espaço terapêutico, o vaso contenedor desse processo criativo, é também a terapeuta na transferência, o abraço e a continência. As raízes. Uma entrega possível e a regeneração; o renascimento, a renovação.

A lua tocando a coluna vertebral, a água, a lágrima. O sentimento podendo ser expresso.

Confirmase a direção do resgate das raízes nutridoras, da sacralidade da base. Surge, novamente, a divinização da Mater, a terramãe. Nasce, nas entranhas do corpo, a sede da sabedoria. Retorno ao útero! Uma busca da respiração embrionária, o vínculo esquecido com a mãe-terra. O renascer do corpo e de seus ciclos criativos. Uma forma de conhecimento muito íntimo. Você sabe sem ver, sem escutar e sem tocar. No fundo de si mesmo, ter a extensão de uma casa, o ventre criativo, a morada eterna do desejo, o desejo de Ser no Tempo e expandilo na Eternidade. O ventre libidinal deseja consciência, uma nova consciência que reequilibre as forças arrebatadoras espirituais [destaque do autor] (Sá, 2009, p. 19).

Sessão de 08 de abril de 2010

M. F. realiza, em aquarela, a "mulher galho":

Às vezes, a gente sofre de excesso de civilização e deixa de obedecer aos ciclos naturais, de ouvir a fala de algo maior Ali tem mangue, e é aquela raiz que não está encravada na terra É uma coisa mais solta que dá a impressão que pode sair caminhando (Figura 21).

 

Figura 21. Mulher galho (M.F., 2010).

 

Sessão de 10 de junho de 2010

A analisanda sente, cada vez mais, a necessidade de entrar em contato com a natureza. Precisa lentificar para refazer as energias. Questiona o trabalho, está estressada. Termina o semestre esgotada. Precisa mudar. Conseguiu conversar e pedir para não dar aulas no segundo semestre; vai assumir outro cargo com menos estresse.

Jung (1998, p. 182 §104) enfatiza o olhar de Gerard Dorn que observa a verdade oculta nas coisas naturais, a "veritas", o remédio, a "substância metafísica" que é em si mesma o agente de transformação e cura.

M. F. relata um sonho:

Numa chácara, casa Tava [sic] subindo num alfeneiro, mas não era, parecia. Sensação de liberdade, tronco flexível. Tava [sic] bem alta, agarrando os galhos e, quando percebi que a mãe estava olhando, comecei a descer. Tinha mais uma parte que não sei se vem antes ou depois. Era uma pintura mais escura e eu fazia parte dessa pintura, como se as coisas começassem a pular do quadro, como se fossem realidade. A natureza viva (Figura 22).

 

Figura 22. Natureza viva (M.F., 2010).

 

Na Figura 22, da esquerda para a direita, vemos surgir uma multidão. Seria o retorno das possibilidades para o campo da consciência. A psique plural dialoga com a fluidez. A unidade corpo-alma-espírito rejubila.

 

Considerações finais

M. F. percebe o reencantamento do mundo. Conta que iniciou um curso de ilustração botânica com pessoas mais sensíveis. Começa a buscar, conscientemente, uma alimentação viva em todos os sentidos, com estruturas vivas que possam transformar seu corpo e sua vida, de forma a integrar outras formas de vida mais gratificantes.

Na sessão de 05 de agosto de 2010, M. F. revela que está grávida de seis semanas e que decidiu contar para seus pais no fim de semana seguinte. Trabalhamos os laços positivos com a mãe interna, o quanto é bom ser mulher e ter seu próprio lar, buscar se fortalecer e fechar seu campo e seu espaço pessoal. Porém, para deixar de ser filha e passar a ser plenamente mãe, M. F. precisa vencer o medo que ainda ronda a relação com a mãe.

Nesses quatro anos, M. F. realizou o sacro-ofício da análise e recebeu a graça, a realização de seu desejo de ser livre para escolher e assumir suas escolhas. Senhora de si, continua a cultivar o aprendizado adquirido em nossa intimidade.

 

Referências

Bachelard, G. (1990). A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes.

Bachelard, G. (1991). A terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes.

Boechat, W. (2008). A mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis, RJ: Vozes.

Brandão, J. S. (1986). Mitologia grega (Vol 1). Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.

Jung, C. G. (1976). Os arquétipos e o inconsciente coletivo (Obras completas, Vol. IX/I). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1950).

Jung (1988). Prática da Psicoterapia (Obras completas, Vol. XVI). Petrópolis, RJ: Vozes.

Jung, C. G. (1990). Mysterum coniunctionis (Obras completas, Vol. XIV/II). Petrópolis, RJ: Vozes.

Jung, C. G. (1998). Mysterum coniunctionis (Obras completas, Vol. XIV/III). Petrópolis, RJ: Vozes.

Kalsched, D. (2013). O mundo interior do trauma. São Paulo: Paulus.

Robell, S. (1997). A mulher escondida. São Paulo: Summus Editorial.

Sá, C. R. F. (2007). Hystera e phallós: o claro-escuro dos caminhos de Eros: intenção e essência do amor. 2007. Recuperado de http://www.ijpr.org.br/artigos-monografias.

Sá, C. R. F. (2009). Segredos curvos. 2009. Recuperado de http://www.ijpr.org.br/artigos-monografias.

Wright, D. (2004). Os ritos e mistérios de Eleusis. São Paulo: Madras.

von Franz, M.-L. (2000). O gato: Um conto da redenção feminina. São Paulo: Paulus, 2000.

von Franz, M.-L, & Hillman, J. (1995). A tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix.

 

 

Recebido: 13 mar 2019
1a revisão 25 jun 2019
Aprovado: 1 jul 2019
Aprovado para publicação: 27 set 2019

 

 

Conflito de interesses: A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Clara Rossana Ferraro de Sá - Analista Junguiana pela Associação Junguiana do Brasil (AJB) (2005-2014), filiada à International Association for Analytical Psychology (IAAP). Psicóloga clínica. Artista plástica/ escultora, com reciclagem em Carrara (Itália). Coautora do livro didático "Ensino de arte: eis a questão", Editora Módulo, 1993, autoras: Andrade, R. F., Sá, C. R. F. - Samways, E. Curitiba/PR, Brasil. E-mail: clararfs@gmail.com