ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2019.VOL04.0008

 

C. G. Jung e a religião

 

C. G. Jung on religion

 

C. G. Jung y la religion

 

 

Punita MIRANDA

Londres, Reino Unido

 

 


RESUMO

Este artigo examina o envolvimento de Jung com o fenômeno da religião durante vários estágios de sua vida e acompanha o desenvolvimento correspondente de suas teorias ao longo desses estágios. Demonstra como a religião gradualmente assumiu um lugar definitivo em sua teoria e prática e permeou os temas mais marcantes: a psiquiatria, a psicanálise, a tipologia, a teoria dos arquétipos e, finalmente, a psicologia dos motivos religiosos. As ideias aqui desenvolvidas baseiam-se em uma ampla revisão da literatura sobre a obra junguiana e em uma série de relatos sobre o autor. Desde os anos dedicados à composição de seu "The Red Book", Jung empenhava-se em compreender os efeitos psicológicos e históricos do cristianismo. À medida que amadurecia, mais fortemente sentia que sua tarefa era tratar os males espirituais e religiosos de seus pacientes. Toda a sua obra pode ser entendida como uma tentativa de apreender o futuro desenvolvimento religioso do Ocidente, dada sua convicção de que a religião era necessária para a evolução espiritual da humanidade. Uma poderosa ilustração da influência de Jung sobre a segunda metade do século XX foram as Conferências de Eranos, que ele promovia anualmente para discutir ideias inovadoras sobre religião. As conferências tornaram-se um dos mais importantes fóruns de disseminação de suas ideias religiosas junto ao público mais amplo. Em suas pesquisas, ele ativamente cultivava diálogos com teólogos e historiadores da religião e tudo o que publicava relacionava-se, em alguma medida, com o tema, chegando a empregar termos religiosos para designar a primeira das quatro etapas de seu processo analítico: confissão, elucidação, educação e transformação.

Descritores: Jung, Carl Gustav, 1875-1961, religião, psicologia.


ABSTRACT

This paper considers Jung's lifelong engagement with the phenomenon of religion. More specifically, it examines the development of his theories in relation to the stages of his life and how religion gradually assumed a definite place in his theory and practice; moving over from psychiatry through psychoanalysis and typology to the theory of archetypes, and finally to the psychology of religious motifs. This study is based on a large literature review of the Jungian works and accounts about the author. From the years spent composing his "The Red Book", Jung struggled to understand the psychological and historical effects of Christianity. The older he got, the more he felt a powerful sense that it was his task to treat the spiritual and religious ills of his patients. His whole oeuvre can be understood as an attempt to grasp the future religious development of the West, in the conviction that religion is necessary for the spiritual evolution of mankind. A strong example of Jung's influence in the second half of the 20th century were the annual Eranos Conferences, which he promoted to discuss innovative ideas about religion. The conferences became one of the most important forums of dissemination of his religious ideas to a broader public. In the course of his research he actively cultivated dialogue with theologians and historians of religion, and everything he published had to do with religion to a greater or lesser degree. He even employed religious terms for his therapeutic format, like in the first of the four stages of his analytical process: confession, elucidation, education and transformation.

Descriptors: Jung, Carl Gustav, 1875-1961, religion, psychology.


RESUMEN

Este artículo examina la implicación de Jung con el fenómeno de la religión durante varias etapas de su vida y acompaña el desarrollo correspondiente de sus teorías a lo largo de esas etapas. Demuestra cómo la religión gradualmente asumió un lugar definitivo en su teoría y práctica y penetró los temas más sobresalientes: la psiquiatría, el psicoanálisis, la tipología, la teoría de los arquetipos y, finalmente, la psicología de los motivos religiosos. Las ideas aquí desarrolladas se basan en una amplia revisión de la literatura sobre la obra junguiana y en una serie de relatos sobre el autor. Desde los años dedicados a la composición de su "The Red Book", Jung se empeñaba en comprender los efectos psicológicos e históricos del cristianismo. A medida que maduraba, sentía más fuertemente que su tarea era tratar los males espirituales y religiosos de sus pacientes. Toda su obra puede ser entendida como una tentativa de aprehender el futuro desarrollo religioso de Occidente, dada su convicción de que la religión era necesaria para la evolución espiritual de la humanidad. Una poderosa ilustración de la influencia de Jung sobre la segunda mitad del siglo XX fueron las Conferencias de Eranos, que él promovía anualmente para discutir ideas innovadoras sobre religión. Las conferencias se convirtieron en uno de los más importantes fórums de diseminación de sus ideas religiosas para un público más amplio. En sus investigaciones, él activamente cultivaba diálogos con teólogos e historiadores de la religión y todo lo que publicaba se relacionaba, en alguna medida, con el tema, llegando a emplear términos religiosos para designar la primera de las cuatro etapas de su proceso analítico: confesión, elucidación, educación y transformación.

Descriptores: Jung, Carl Gustav, 1875-1961, religión, psicología.


 

 

Introdução

Eu não espero que nenhum crente cristão siga esses meus pensamentos além deste ponto, pois provavelmente os verá como absurdos. No entanto, não estou me dirigindo aos felizes possuidores da fé, mas àqueles para quem a luz se apagou, o mistério se desvaneceu e Deus está morto. Para a maior parte desses, não há retorno possível e ninguém sabe se tal retorno seria sempre a melhor escolha. A fim de ganhar uma compreensão das questões religiosas, provavelmente tudo o que nos resta hoje é a abordagem psicológica (Jung, 1938/1969, CW11, p. 89, §148).

A ascensão da psicologia ocorreu na atmosfera da Europa germânica do fim do século XIX como reação ao racionalismo, ao materialismo e à ideia nietzschiana (1882/2001) da morte de Deus, proclamada em 1882 com a publicação de "The Gay Science" (Brooke, 1991; Nagy; 1991). Entre as décadas de 1870 e 1930, foram estabelecidas as bases disciplinares e teóricas da psicologia e da psicoterapia modernas (Shamdasani, 2003). Sendo um componente central da modernidade, a psicologia emergiu na mesma medida em que declinava o poder da religião. Nas palavras de Shamdasani, um historiador da psicologia e especialista em Jung, isso representou "o ato mais decisivo no coroamento da revolução científica" (Shamdasani, 2003, p. 4). Peter Homans (1930-2009) afirmou que a emergência da psicologia "é a vitória da guerra crônica entre teologia e ciência e que existe algo, com um sentido substitutivo, a respeito da psicologia, como se ela pudesse ser vista como a "religião invisível" do homem moderno" (Homans, 1995, pp. 8-9). Segundo ele, a religião é uma força histórica imemorial e a psicologia é uma resposta moderna a ela.

A importância do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) para o século XX reside no poder de suas ideias e de sua personalidade, que resultaram na organização de um movimento altamente influente em torno de suas teorias, conhecido como psicologia analítica. Jung foi o herdeiro de muitas tendências de pensamento do século XIX e sua psicologia respondia a problemas científicos e filosóficos da virada deste século. Na filosofia, ele encontrou análogos históricos para muitas de suas intuições o que o ajudou a lançar as ideias fundacionais de sua psicologia. Alguns desses decisivos encontros intelectuais foram com os trabalhos de Immanuel Kant (1724-1804), Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Eduard von Hartmann (1842-1906) (Jung, 1951/1980, CW9-I). Nos escritos de Kant, Jung descobriu que "não existe nenhum conhecimento daquilo que está fora da nossa experiência". Assim, sua orientação filosófica seria caracterizada pela ênfase na autoridade da experiência individual - que, no seu caso, era de natureza religiosa (Nagy, 1991).

Essa crença na superioridade da experiência interior e nos sentimentos coincidia com a forma radicalmente nova de abordar a teologia inaugurada pelo teólogo protestante Friedrich Schleiermacher (1768-1834), que considerava como fonte da religião um sentimento imediato, ou consciência, precursor do saber (awareness) racional. Ao abordar a teologia do ponto de vista da experiência, Schleiermacher buscava libertar a crença e a prática religiosas do argumento metafísico e enraizá-las na experiência humana, argumentando que "a religião não deve ser reduzida a ciência, metafísica ou moralidade" (Proudfoot, 1985, p. xiii). Este foco na importância de se descrever a experiência religiosa da perspectiva do sujeito foi fundamental para moldar subsequentes estudos de fenômenos religiosos. O próprio Jung foi influenciado por dois conhecidos proponentes da nova abordagem de Schleiermacher: o filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910) e o teólogo luterano alemão Rudolf Otto (1868-1937), cujo conceito de numinoso viria a se tornar uma pedra angular da psicologia junguiana.

Talvez, em nenhum outro caso, a íntima conexão entre a vida, o trabalho e a obra de um indivíduo estejam tão claramente representados como em Jung. Pode-se apreciar plenamente seus esforços enquanto pioneiro e investigador científico, acompanhando seu interesse e envolvimento com os aspectos "irracionais" da experiência, como indivíduo e como um psiquiatra conhecido do público (Shelburne, 1988).

As experiências religiosas de Jung tiveram papel crucial na formação de suas ideias. Ele sentia-se compelido a pesquisar e a oferecer algo para combater tanto a dúvida científica quanto a religiosa. Essas experiências foram incorporadas ao seu pensamento teórico e sua conceituação foram tentativas de formular "uma nova psicologia científica baseada na experiência imediata" (Jacobi, 1962, p. vii), enquanto ele avançava na discussão dos principais temas da época sobre filosofia, sociologia, biologia, antropologia e religião comparada (Shamdasani, 2003).

A preocupação de toda uma vida com o fenômeno da religião e sua relação com o sofrimento mental da humanidade levou Jung, na maturidade, a tentar compreender os efeitos psicológicos e históricos do cristianismo e a enfrentar o problema da presença do mal em um mundo criado por um Deus amoroso e compassivo. Filtrando uma ampla variedade de disciplinas orientais e ocidentais através de sua personalidade, Jung afirmava haver objetivamente abordado e anexado um reino da alma humana situado entre a psicologia e a religião (Ellenberger, 1970,). Ele foi "o mais destacado psicólogo moderno a afirmar os valores religiosos" e, de fato, concentrou grande parte de seus trabalhos nos estudos religiosos (Shamdasani, 1998, pp. 3-4).

No "The Brill Dictionary of Religion" (von Stuckrad, 2007), o nome de Jung surge em vários contextos. No volume II, ele é mencionado em "esoterismo": estudioso do esoterismo (como o estudo alternativo das religiões europeias codificadas e institucionalizadas), Jung fazia parte de um contramovimento de reação ao "desencantamento do mundo" e as Conferências de Eranos eram um círculo de pesquisadores e criadores de mitos, de um Iluminismo revivalista. No volume III, no verbete "mito": uma contribuição à teoria simbólica do estudo do mito; em "nova era": sua psicologia espiritualizada teve impacto em várias mudanças sociais e culturais que caracterizaram a sociedade moderna nas últimas décadas do século XX; em "psique": sua psicologia analítica preocupa-se com a cura e está carregada de aspectos religiosos, especialmente com paralelos entre psicoterapia e cristianismo; em "psicanálise": com sua ideia de arquétipos e inconsciente coletivo, Jung acrescentou um estrato religioso ao movimento psicanalítico. Por fim, no volume IV, em "ficção científica": ele interpretava os objetos voadores não identificados (OVNI) como uma moderna religião da redenção.

No decorrer de suas pesquisas, Jung cultivou diálogos com teólogos e historiadores da religião, incluindo o padre dominicano Victor White (1902-1960), o filósofo judeu Martin Buber (1878-1965) e o teólogo protestante Paul Tillich (1886-1965). Conforme enfatizado por Christine Maillard, professora de estudos germânicos e especialista em Jung, a estatura que Jung conferiu a esses nomes faz de sua obra um dos principais trabalhos de psicologia da religião do século XX (Maillard, 2006).

Um poderoso exemplo da influência de Jung na segunda metade do século XX, as Conferências de Eranos, realizadas anualmente perto de Ascona, na Suíça, eram um dos eventos sobre religião mais dinâmicos e inovadores. Dedicadas ao estudo das interrelações entre psicologia, filosofia, religião e espiritualidade, Eranos eram organizadas como um "laboratório de pesquisa" e Jung foi uma figura dominante durante toda a primeira fase das conferências.

Atualmente, como se pode entender as origens, a formação e o contexto das ideias únicas de Jung sobre religião? As lentes através das quais examinou-se o desenvolvimento das teorias junguianas sobre a psicologia da religião estão alinhadas com os estágios da vida de Jung e com o respectivo desenvolvimento de suas ideias. Essas concepções sustentam-se em dois alicerces: as experiências pessoais de Jung e suas observações clínicas.

Primeiras experiências pessoais

Ninguém podia me roubar a convicção de que estava fadado a fazer o que Deus queria e não o que eu queria. Isso deu-me forças para seguir meu próprio caminho. Frequentemente, sentia que em questões decisivas, eu já não estava entre os homens, mas, sozinho com Deus (Jung, 1961/1995, p. 65).

Jung foi levado a se confrontar com temas religiosos por diferentes caminhos. Com o pai ministro protestante da Igreja Suíça Reformada, dois tios paternos pastores e seis tios maternos teólogos, ele sempre ouviu muitas conversas sobre religião, discussões teológicas e sermões. (Jung, 1961/1995, p. 58). Em carta a Henry Corbin, de 4 de maio de 1953, Jung escreveu:

Schleiermacher realmente é um dos meus ancestrais espirituais. Ele até mesmo batizou meu avô - nascido como católico [...]; o vasto, esotérico e individual espírito de Schleiermacher era uma parte da atmosfera intelectual da família do meu pai. Eu nunca o estudei, mas, inconscientemente, ele foi para mim um spiritus rector (Jung, 1953/1976, CW2, p. 115).

Seria difícil, portanto, surpreender-se com a influência do pano de fundo familiar explicitamente religioso sobre sua vida. Porém, não era tanto o aspecto tradicional religioso que instigava Jung, pois isso em pouco tempo se provaria um ritual vazio, nada além de dogmas, mas, principalmente, o fato de que sua infância tenha sido preenchida por sonhos bizarros, visões e dilemas religiosos, incluindo uma imagem de Deus ao mesmo tempo bom e terrível, o que lhe deu um poderoso e perturbador senso da realidade do mal. Isso pode ser notado em seus sonhos com o falo devorador de homem, aos três e quatro anos, em que ele percebeu como um "deus subterrâneo" (Jung, 1961/1995, p. 27); em uma visão de Deus (aos 12 anos) sentado em seu trono celestial dourado, defecando sobre o teto da catedral de Basileia e a destruindo (Jung, 1961/1995, p. 56); em seu desapontamento com a falta de compreensão do pai sobre a contradição da Trindade, enquanto este lhe dava instruções para a crisma (aos 15 anos); em sua insípida experiência com a comunhão, que se provou uma um fracasso total: "isso não é religião de forma alguma, é uma ausência de Deus, a igreja não é um lugar de vida, mas de morte" (Jung, 1961/1995, p. 73); na confirmação de seus sentimentos relativos ao mal - "há quem tome o demônio seriamente" -, quando leu "Faust" de Goethe aos 16 anos (Jung, 1961/1995, p. 77).

Jung rejeitava a religião tradicional e convencional de seu pai e da sua comunidade: "no tanto em que todos eles representavam a religião cristã, eu era alguém de fora" (Jung, 1961/1995, p. 74). O desapontamento com o cristianismo externo, exotérico, e o tom emocional de suas experiências internas diretas induziram nele "uma quase insuportável solidão". Jung relata em sua biografia:

[...] assim, o padrão de minha relação com o mundo já estava prefigurado: hoje, como então, sou um solitário, porque sei coisas e devo perceber coisas que outras pessoas não sabem e, normalmente, nem ao menos querem saber (Jung, 1961/1995, p. 58)

Isso o sobrecarregava com a tarefa de encontrar um caminho para compreender e superar não apenas sua própria alienação espiritual pessoal, como também o mal-estar da alienação espiritual geral contemporânea (Shamdasani, 2009). Esse caminho era, certamente, o da psiquiatria, que viria a ser para Jung a trilha onde "a colisão da natureza e do espírito tornaram-se uma realidade" (Jung, 1961/1995, p. 130).

Primeiros anos profissionais - desenvolvimento psiquiátrico

O conhecimento dos conteúdos subjetivos da consciência significa muito pouco, pois nos diz praticamente nada a respeito da vida real, subterrânea, da psique [...] este tipo de conhecimento médico contém meramente informações sobre uma doença, mas não o conhecimento da alma que está doente (Jung, 1952/1967, CW5, p. xxvi.) (Destaque nosso).

Conforme descrito, a religião era um assunto de interesse pessoal para Jung, embora apenas gradualmente tenha vindo a assumir um lugar definitivo em sua teoria e prática. Ao longo dos anos, seu interesse foi mudando da psiquiatria, passando pela psicanálise e pela tipologia, até a teoria dos arquétipos e, finalmente, a psicologia dos motivos religiosos (Jung, 1961/1985, CW4). A seguir, será feita uma revisão desse desenvolvimento, pois ele mostra-se fundamental para a compreensão de como sua psicologia contribuiu para uma perspectiva religiosa da vida humana.

Jung trabalhou como psiquiatra no Hospital Psiquiátrico Burghölzli, da Universidade de Zurique, de 1900 a 1909. Nesse período, introduziu uma transformação na psiquiatria com a aplicação do teste de associação de palavras, que lhe rendeu reputação internacional. Naquela época, seu interesse pelo fenômeno religioso foi breve e relacionado a casos de distúrbios psicopatológicos, como esquizofrenia, perturbações maníacas, alucinações e visões. Jung estava convencido de que delírios, alucinações e certos fenômenos ocultos tinham matizes religiosos; porém, ele se aventuraria a avançar sobre esse campo somente muito tempo depois. Mas, por exemplo, sua tese de doutorado "On the psychology and psychopathology of so-called occult phenomena", publicada em 1902, já continha vislumbres de suas ideias em forma germinal: a receptividade superior da mente inconsciente sobre a consciente, a significância teleológica dos distúrbios psicológicos, a produção espontânea de material mitológico pelo inconsciente (Heisig, 1979).

É importante mencionar que, durante os anos de sua pesquisa experimental, Jung encontrou, pessoalmente, diversos pensadores de destaque internacional, incluindo o filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910), o filósofo e médico suíço Théodore Flournoy (1854-1920) e, é claro, o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939). Cabe aqui um sumário do trabalho desses grandes homens, na medida em que suas excepcionais influência e repercussão contribuíram para o desenvolvimento da base intrapsíquica da psicologia de Jung.

William James era extremamente influente não apenas no campo dos estudos religiosos, mas também na área da psicologia e da pesquisa sobre temas psíquicos. Ele transitava por uma ampla gama de disciplinas acadêmicas e sua formação como psicólogo lhe propiciou insights sobre questões de religião desvinculadas de comunidades religiosas específicas. Seus livros "The principles of psychology" (1890/1918), "The varieties of religious experience: A study in human nature" (1902/2004) e "Pragmatism and four essays from the meaning of truth" (1907/1970) não apenas destacam a interface entre psicologia e religião, mas também a importante distinção entre a orientação interiorizada da energia psíquica versus a exteriorizada. Em "The varieties of religious experience: A study in human nature", James (1902/2004) afirmava que o inconsciente era a porta de entrada para o despertar religioso, o que viria a ser um modelo útil para Jung. Em uma carta a Kurt Wolff de 17 de setembro de 1958, Jung escreveu: "Além de Théodore Fournoy, James era a única mente notável com quem eu podia ter uma conversa descomplicada. Eu presto homenagens, portanto, a sua memória e sempre me lembro do exemplo que ele foi para mim" (Shamdasani, 2003, p. 58).

Tendo sido amigo de William James durante toda a vida e fortemente influenciado por seu pragmatismo, Théodoro Flournoy ocupou a primeira cadeira de psicologia na Universidade de Genebra, em 1892. Pela primeira vez, a psicologia era vista como ciência e não como filosofia. (Shamdasani, 2003). Tanto Flournoy quanto James estavam interessados em uma psicologia que incluísse as dimensões transcendentes da personalidade e ambos eram pioneiros nas pesquisas sobre a psique subliminar. Flournoy (1900) foi um dos primeiros a registrar a psicologização de múltiplas personalidades em seu livro "From India to the Planet Mars". Na época, o encontro dos psicólogos com sessões de mediunidade marcou um passo importante no estudo da personalidade subliminar: a realidade de deus e espíritos era vista como um fenômeno subjetivo dentro do homem, ou seja, um fenômeno intrapsíquico, e essa mudança preparou o caminho para a psicologização do "Deus dentro da psique". Mais tarde, isso se tornaria a hipótese de trabalho de Jung sobre a existência de uma entidade autônoma dentro da psique que os homens sempre identificaram como seres metafísicos.

Como se sabe, o interesse de Freud residia na repressão sexual da libido, mas, diferentemente de Jung, ele não tinha nenhuma experiência com pacientes psicóticos. Ainda assim, no período de 1906 a 1913 os dois homens mantiveram ricas colaborações e trocas. Apesar da admiração que sentia pelo trabalho pioneiro de seu colega austríaco, de maneira gradual, Jung elaborou e firmou uma posição diametralmente oposta à de Freud. Em seu artigo "The significance of the father in the destiny of the individual" (Jung, 1949/1985, CW4), deu um passo decisivo, expandindo a importância dada por Freud à relação pai-filho e alçando-a a uma relação homem-Deus - com isso, ele estava "hereticamente" transformando o secular em sagrado. Aqui, pela primeira vez, vemos os primeiros passos de Jung no terreno da psicologia da religião.

Nos anos seguintes, Jung tornou-se cada vez mais crítico da teoria sexual de Freud, considerando-a uma explicação materialista-reducionista, e começou um sério estudo sobre mitologia. Em algum momento, tomou conhecimento do material publicado por Théodore Flournoy (1906) sobre as fantasias de uma jovem norte-americana, Miss Miller. A partir do estudo das fantasias religiosas desta jovem, Jung escreveu o livro "Wandlungen und Symbole der Libido" (1911-1912), traduzido para o inglês como "Symbols of transformations" (1952/1967, CW5)1, que marcou um retorno às raízes de suas preocupações culturais e religiosas (Shamdasani, 2009). Jung ampliou as noções freudianas de libido e incesto e apresentou uma nova compreensão da religião. Tentou analisar as dinâmicas psicológicas por trás dos fenômenos religiosos, usando material comparativo, mitológico e etimológico, em vez de simplesmente deixá-los de lado por sua aparente "irrealidade". As imagens mitológicas e seus conteúdos psicológicos foram inicialmente descritos por Jung como "dominantes", "deuses", ou "os poderes que governam a psique". Cronologicamente, os nomes foram sendo mudados: "imagens primordiais", em 1911; "dominantes", em 1917; e "arquétipos", em 1919 (Shamdasani, 2003, p. 37).

Pouco depois, chegou à conclusão de que a soma dessas imagens constituía um segundo sistema psíquico de natureza coletiva, universal e impessoal e que, ao contrário da teoria de Freud, esse sistema não se desenvolvia individualmente, mas era herdado: "O substrato criativo é, em toda parte, essa mesma psique humana e esse mesmo cérebro humano, que, com suas variações relativamente insignificantes, funciona em toda parte do mesmo modo" (Jung, 1952/1967, CW5, p. xxix).

Já em 1913, Jung reconheceu que suas diferenças com Freud eram, principalmente, de atitudes religiosas (Nagy, 1991). Conforme disse Victor White, "parece que, enquanto para Freud a religião é um sintoma de doença psicológica, para Jung a ausência da religião está na raiz de todas as doenças psicológicas do adulto". (White, 1952, p. 47). "Symbols of transformation" (1952/1967, CW5) foi um trabalho pioneiro que estabeleceu as bases para as construções teóricas desenvolvidas mais tarde por Jung e continha, em forma de semente, os conceitos de sua teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo. Dada a profundidade do tema e o terreno que foi escavado e deslocado, não surpreende que sua publicação também tenha resultado no rompimento das relações entre essas duas colossais figuras da psicologia.

Em 1929, Jung elaborou as diferenças entre sua visão e à de Freud:

Por causa de [minhas diferenças], sou acusado de misticismo. No entanto, não me considero responsável pelo fato de que sempre, em toda parte, o homem tenha desenvolvido espontaneamente uma função religiosa e de que a psique humana, desde tempo imemorial, tenha sido permeada por sentimentos religiosos e ideias religiosas [...] Esse complexo paterno, defendido com tamanha obstinação e suscetibilidade, é uma função religiosa mal compreendida, uma peça de misticismo expressa em termos de relações biológicas e familiares. Quanto ao conceito de Freud de "superego", trata-se de uma tentativa furtiva de contrabandear uma imagem imemorial de Jeová sob as vestes de uma teoria psicológica. De minha parte, prefiro chamar as coisas pelos nomes com os quais sempre foram conhecidas. (Jung, 1929/1985, CW4, p. 339, § 781).

A partir dessa citação, pode-se compreender claramente por que razão Jung e Freud se separaram: embora os sintomas que observassem em seus pacientes fossem semelhantes, suas formas de abordá-los e de lidar com eles levaram a conclusões muito diferentes. Para Jung, a libido estava enraizada em arquétipos, não em forças que impulsionavam a libido sexual (Nagy, 1991). Embora mantendo a mesma palavra usada por Freud, "libido", Jung a elaborou como uma energia mobilizadora e chegou ao ponto de especular que (a) deus representava certa forma de energia, que tem sido projetada desde sua origem inconsciente em uma realidade metafísica; (b) o monoteísmo decorre de a libido ser uma fonte comum partilhada; e (c) ritos religiosos e mágicos são meios de mobilizar a libido para propósitos específicos. A intenção de Jung não era divinizar a libido, mas, em vez disso, psicologizar aquilo que o homem projeta como divino (Ellenberger, 1970; Heisig, 1979).

Experiências pessoais maduras - "The Red Book"

A separação dos dois não aconteceu sem danos e a liberdade cobrou seu preço. Após a ruptura final com Freud, em 1913, a comunidade psicanalítica afastou-se de Jung e ele também deixou o cargo de editor do Jahrbuch für psychologische und psychopathologische Forschungen, a primeira publicação cientifica da pesquisa psicanalítica, publicada por Freud e Bleuler (1909/1913) (Jung, 1961/1995, p. 191). No ano seguinte, em 1914, Jung deixou a presidência da Associação Psicanalítica Internacional e também sua posição como Privatdozent da Universidade de Zurique (Jung, 1961/1995, pp. 218-225). Sua crise profissional desencadeou um período de desorientação e reafirmou-se sua propensão a experiências pessoais de cunho religioso (Homans, 1995). De outubro de 1913 a julho de 1914, Jung teve uma série de 12 visões apocalípticas que despertaram nele o medo de se tornar psicótico. Anos mais tarde, ele expressou esse medo para seu amigo, Mircea Eliade (1907-1986), historiador da religião:

Como psiquiatra, fiquei preocupado, imaginando se não estava a caminho de "desenvolver uma esquizofrenia", como se dizia na linguagem daquela época [] Eu estava preparando uma palestra sobre esquizofrenia, que seria apresentada em um congresso em Aberdeen, e seguia me dizendo: "Estarei falando de mim mesmo! Muito provavelmente, enlouquecerei depois de ler esse texto" [] Em 31 de julho, imediatamente depois de minha palestra, fiquei sabendo pelos jornais que a guerra havia estourado. Finalmente, eu compreendi. Quando desembarquei na Holanda no dia seguinte, não havia ninguém mais feliz do que eu. Agora eu tinha certeza de que nenhuma esquizofrenia estava me ameaçando. Eu compreendi que meus sonhos e minhas visões vieram a mim do subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava fazer era aprofundar e validar aquela descoberta. Isso é o que venho tentando fazer há 40 anos (McGuire & Hull, 1977, pp. 233-234).

Como Jung relata, embora a experiência não fosse isenta de riscos, ele percebeu que suas fantasias descreviam o que estava acontecendo não somente com ele, mas com toda a Europa. Esse fato o convenceu de que seu medo de enlouquecer estava fora de lugar e confirmou a necessidade de aprofundar a compreensão de suas fantasias, tanto no nível subjetivo quanto no coletivo. Desde então, Jung deu permissão "para a alma falar". Em um exemplo relevante de um diálogo que teve com sua alma, em 8 de janeiro de 1922, ela o informou:

As relações não se deixam ser substituídas pelo mais profundo conhecimento. Além disso, uma religião não consiste apenas em conhecimento, mas, no seu nível visível, em um novo ordenamento dos assuntos humanos. Portanto, não espere nenhum conhecimento adicional de mim. Você sabe tudo o que é para ser sabido sobre a revelação manifestada, mas ainda não vive tudo o que é para ser vivido neste tempo.

O "eu" de Jung replicou: "Posso compreender plenamente e aceitar isso. No entanto, não tenho clareza sobre como o conhecimento poderia ser transformado em vida. Você precisa me ensinar isso."

Sua alma disse: "Não há muito a falar sobre isso. Não é tão racional como você está inclinado a pensar. O caminho é simbólico" (Jung, 2009, p. 211).

Entre 1913 e 1929, Jung compôs um trabalho literário de psicologia, "The Red Book", uma narrativa espiritual, centrada em encontros e diálogos com uma série de figuras subliminais, que levaram ao renascimento de uma nova imagem de Deus em sua alma, uma nova visão de mundo, sob a forma de uma cosmologia psicológica e teológica. Na introdução da obra, Shamdasani explica que Jung tentou formular as coisas nos termos de uma revelação, afirmando que suas visões anteriores à guerra levaram à composição do "Liber Novus" eram proféticas. "The Red Book: Liber Novus" representa uma criação privada que seguia em paralelo à produção da sua obra acadêmica. Embora esta última tivesse sido nutrida e inspirada pelo "The Red Book", elas permaneceram trabalhos distintos (Shamdasani, 2009).

A "jornada ao inconsciente" empreendida por Jung tornou-se a grande força motriz originária de seu sistema psicológico. O inconsciente coletivo e os arquétipos, que ele já conhecia em razão de seu trabalho com pacientes e da literatura, eram agora vivenciados pessoalmente; na "psique inconsciente" residia uma fonte de conhecimento, sabedoria elevada e orientação (Jung, 2009; Nagy, 1991) A partir de seus "autoexperimentos", Jung adquiriu suas primeiras noções de anima, Self, individuação e do simbolismo da mandala. Mais tarde, sistematizou esse processo experimental como um método terapêutico para seus pacientes, chamando-o de "imaginação ativa" - uma ferramenta usada para explorar este novo campo de experiência, que pode tomar a forma de diálogo, desenho, ou pintura com o inconsciente (Hannah, 2001; Hull, 1971; Jung, 1956/1970 CW14; Jung, 1958/1981, CW8; Jung, 2009; von Franz, 1998). Barbara Hannah, uma das primeiras colaboradoras de Jung, deu a ele o crédito pela descoberta da ideia de imaginação ativa, mas não por sua invenção, destacando que se tratava de uma antiga "forma de meditação que o homem tem usado para aprender a conhecer seu Deus ou deuses" (Hannah, 2001).

Ao longo dos 16 anos nos quais trabalhou em "The Red Book", Jung continuou a expandir e a desenvolver sua autoexperimentação, enquanto tentava formular um conceito intelectual daquelas experiências nos artigos que escrevia. Nesse período de intensa criatividade, ele buscou em várias fontes, orientais e ocidentais, a inspiração para moldar suas teorias. Em 1929 Jung parou de trabalhar em seu "The Red Book", quando o sinólogo Richard Wilhelm lhe enviou um tratado de alquimia taoista, "The secret of the golden flower" (Wilhelm, 1929/2010), e pediu-lhe que escrevesse um comentário sobre a obra.

Impressionado com o paralelismo entre as imagens do texto e suas próprias mandalas, Jung começou a trabalhar publicamente para construir uma ponte de entendimento psicológico entre o Oriente e o Ocidente. Ao mesmo tempo, em particular, iniciou um estudo intercultural sobre a alquimia medieval. Diversas pinturas de "The Red Book" foram inspiradas por livros e filosofias orientais; durante esse período, Jung voltou-se para a religião oriental em busca de apoio e de insights. (Coward, 1985; Jung, 1929/1983, CW13).

Depois de 1930, o trabalho de Jung podia ser considerado como uma amplificação dos conteúdos de seu "The Red Book". Algumas das afirmações contidas na publicação correspondem, muito de perto, a posições que Jung, mais tarde, articularia em suas "Collected Works" - elas "explicam mutuamente umas às outras". Historicamente, "The Red Book" é colocado em uma relação hermenêutica aos escritos subsequentes de Jung (Shamdasani, 2009).

Escrito pelo teólogo alemão Rudolf Otto, "The idea of the holy: An inquiry into the non-rational factor in the idea of the divine and its relation to the rational" (1917) é uma fonte ocidental que conduziu Jung em uma nova direção. Jung reconheceu no livro uma descrição adequada de suas respostas físicas e emocionais em face do mysterium tremendum e fascinans: "[...] reside, de fato, em um 'momento' peculiar da consciência, ou seja, o estupor diante de algo 'inteiramente outro', chame-se a esse outro de 'espírito', daemon ou deva, ou deixe-o sem nenhum nome [...]" (Otto, 1917/1959, p. 41).

A definição de Otto (1917/1959) para religião como um sentimento numinoso - "ação ou efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário da vontade" - foi a adotada por Jung ((Jung, 1938/1969, CW11; Nagy, 1991). Psicologicamente, ele compreendeu a significância do que Otto descrevia em razão da avassaladora natureza das visões que ele, Jung, estava confrontando e porque ela confirmava a qualidade numinosa que acompanhava a manifestação de um arquétipo:

Devo enfatizar um aspecto dos arquétipos que será óbvio para qualquer um que tenha experiência prática desses assuntos. Ou seja: os arquétipos têm, quando surgem, um caráter especificamente numinoso que somente pode ser descrito como "espiritual", caso a palavra "mágico" seja muito forte. Consequentemente, esse fenômeno é da mais extrema significância para a psicologia da religião (Jung, 1947/1981, CW8, p. 205, § 405).

Jung expandiu ainda mais o numinoso para incluir "transformações cruciais [...] que podem tomar a forma de conversões, iluminações, choques emocionais, golpes do destino, experiências religiosas ou místicas ou seus equivalentes" (Jung, 1942/1969, CW11, pp. 183-184, § 274), situando os arquétipos como a origem da experiência religiosa. Portanto, Jung fez uso do numinoso para se referir a uma variedade de fenômenos psicológicos relacionados, majoritariamente, a manifestações arquetípicas, referindo-se a isso como uma "qualidade numinosa" do arquétipo, expressão que foi assimilada ao léxico junguiano.

Shamdasani destaca que, a partir de 1923, o trabalho de Jung sobre a psicologia da religião e a relação da religião com a psicologia configurou-se de maneira ainda mais clara. Interessado na psicologia da experiência religiosa, em razão do que aprendera por meio de sua autoinvestigação, Jung tentou desenvolver uma psicologia do "processo de formação da religião". Shamdasani deixa bem claro que quando Jung elucidava uma nova revelação profética, em vez de proclamá-la, ele tomava como sua tarefa

[...] ilustrar a tradução e a transposição da experiência numinosa dos indivíduos sob a fórmula de símbolos, expressando-a como dogmas e credos de religiões organizadas até, finalmente, poder estudar a função psicológica de tais símbolos. Ele estava consciente de que, para que essa psicologia do processo de fazer religião tivesse sucesso, era essencial que a psicologia analítica, enquanto fornecia uma afirmação da atitude religiosa, não se deixasse sucumbir a ponto de se tornar um credo (Shamdasani, 2009, p. 219).

Essa preocupação será examinada na última parte deste artigo. Realizada a "confrontação com o inconsciente", Jung começou "a confrontação com o mundo" (Shamdasani, 2009) e passou a oferecer seminários privados, no período de 1925 a 1941. Mas outro importante estágio de seu desenvolvimento foram as Conferências de Eranos, em Ascona, na Suíça.

Eranos: uma plataforma para novas ideias

Eu posso formular meus pensamentos somente na medida em que eles saem de mim. É como um gêiser. Os que seguirem os meus passos terão que colocá-los em ordem (Jaffé, 1983, p. 8).

Iniciadas pouco antes da Segunda Guerra Mundial, atravessando o período da Guerra Fria e indo além, as Conferências de Eranos podem ser entendidas como produto de um período histórico, que respondia às ansiedades de antes e depois da Segunda Guerra e que, claramente, se opunha às tendências dominantes do materialismo e do positivismo. A despeito do tremendo impacto desse discurso inovador sobre a cultura em geral - até mesmo como um instigador do movimento da Nova Era -, grande parte do legado de Jung encontra-se hoje fora da academia, nas margens de departamentos de estudos religiosos.

Eranos (do grego "festa partilhada") foi o nome escolhido por Rudolf Otto para as reuniões anuais realizadas na casa da holandesa Frau Olga Fröbe-Kapteyn. Os primeiros encontros aconteceram em 1933. No início, as Conferências tinham uma orientação teosófica, mas gradualmente transformaram-se em um centro de discussão humanística e científica de alto nível. Wouter Hanegraaff, professor holandês de esoterismo ocidental, sugere que o primeiro período desses encontros poderia ser chamado de "a era Jung" (Hanegraaff, 2012). Olav Hammer, professor sueco de estudos religiosos, destaca que as Conferências de Eranos podem ter sido o mais importante fórum de disseminação das ideias religiosas de Jung para um público mais amplo (Hammer, 2006).

As Conferências atraíam uma série de intelectuais religiosos de todo o mundo, incluindo o famoso historiador pioneiro da cabala judaica, Gershom Scholem (1897-1982), o islamicista Henry Corbin (1903-1978) e o estudioso da religião Mircea Eliade. Eles faziam apresentações sobre diversos tópicos relativos à religião, ao mito, ao simbolismo e a sua relevância para a história da cultura moderna. O professor de história do estudo da religião, Steven Wasserstrom, destaca que esses estudiosos agregaram um novo tipo de vitalidade intelectual, ultrapassando fronteiras entre disciplinas, a fim de articular um estudo moderno da religião, favorecendo símbolos e mitos e firmando o foco na centralidade das experiências místicas (Wasserstrom, 1999).

De um lado, os pensadores religiosos contavam com uma plataforma comum da qual lançavam suas visões únicas e originais; de outro, cada um deles apresentava uma abordagem própria para tratar de temas como mito, história e teorias da religião. Por exemplo, em uma carta a Eliade, Jung o criticou por ter usado o termo "arquétipo" sem estabelecer a distinção sobre o que este termo significava para cada um. Eliade havia usado a palavra para descrever o desenvolvimento histórico de ideias na cultura humana, um sentido claramente distinto daquele que Jung tinha em mente (Jung, 1955/1976, CW2; Nagy, 1991).

Passa-se agora a explorar como os encontros de Eranos ofereceram a Jung uma oportunidade para explorar e compartilhar algumas das suas descobertas psicológicas, especialmente a capacidade humana de produzir mitos, os arquétipos e o inconsciente coletivo, que formam a base de sua psicologia da religião.

Jung participou das Conferências de Eranos de 1933 a 1951 quase ininterruptamente, exceto nas poucas ocasiões em que se encontrava enfermo. Grande parte do que ele publicou no Eranos Jahrbuch, durante este período, mais tarde foi integrada às edições de várias de suas "Collected Works". Em 1934, por exemplo, ele proferiu a palestra Archetypes of the collective unconscious, que viria a se tornar o Volume 9, Parte I, desta obra.

Não é possível compreender a tese de Jung sobre religião sem apreender sua teoria do arquétipo. Como mencionado, suas concepções iniciais começaram a se desenvolver durante o período de visões que teve antes da guerra, foram então elaboradas nas décadas de 1920 e 1930 e seguidamente alteradas durante toda a sua vida. Assim, faz-se necessária uma breve digressão sobre arquétipos.

Nagy aponta que a metafísica de Jung está bem expressa em sua teoria dos arquétipos. Os antecedentes filosóficos desta teoria são encontrados, em primeiro lugar, na doutrina das causas transcendentes de Platão e, em segundo lugar, mais diretamente, na teoria dinâmica da vontade de Schopenhauer. Nas especulações de seus anos finais, Jung ampliou sua teoria das causas não materiais, arquetípicas, para além da esfera da vida psíquica individual, estabelecendo sua relação com o mundo material, em sua teoria da sincronicidade (Nagy, 1991).

Para Jung, toda a humanidade traz em si uma força psíquica que, ao mesmo tempo, manifesta e sustenta o poder do sagrado, em razão de uma predisposição para a experiência religiosa que nós, seres humanos, possuímos. Como Eliade, Jung usa o nome homo religiosus, definindo-o como "o homem que leva em consideração e cuidadosamente observa certos fatores que têm influência sobre ele e sobre sua condição geral" (Jung, 1938/1969, CW11, pp. 9-10, §11). De acordo com Jung, não se trata de algo inventado, mas de uma experiência espontânea, que deixa uma marca cultural em nossa imaginação. A ideia do arquétipo remete ao um leito de rio, a uma matriz ou mesmo a uma estrutura como a do esqueleto, que, sendo parte da constituição humana, tem como única variante as feições individuais (Jung, 1936/1964, CW10, 1945/1983, CW13).

Segundo Jung, qualquer manifestação histórica particular, por exemplo, Cristo ou Buda, nunca esgota a possibilidade de expressão subjacente à manifestação - existe um potencial arquetípico para a experiência de uma imagem de Deus, que tem sido preenchido por todos os símbolos religiosos da humanidade (Corbett, 2007; Dourley, 1981). A teoria junguiana implica uma dialética entre o indivíduo e sua base universal: essa capacidade inata de produzir uma imagem "particular, subjetiva", anterior à educação religiosa formal, será sobreposta por uma "camada" de práticas e de doutrinas religiosas próprias da cultura em que a pessoa nasceu (Corbett, 2007).

Para Jung, é possível apreciar o mito cristão mais plenamente e, ao mesmo tempo, liberar a mente cristã de possíveis pretensões exclusivas, desde que se suspendam os julgamentos sobre a verdade da crença religiosa e se dê atenção ao valor psicológico do simbolismo religioso (Dourley, 1984). A analista junguiana Marilyn Nagy e o professor de alemão moderno Paul Bishop sugerem que a teoria dos arquétipos de Jung é uma tentativa de elaborar uma "gramática universal" da mente, das estruturas psíquicas que informam o nosso desenvolvimento mental e emocional, e que a psicologia é um bom instrumento para compreender e interpretar todas as formas de religião (Bishop, 2002; Nagy, 1991).

Definindo religião

Como uma das consequências das discussões interdisciplinares com historiadores e teólogos nas Conferências de Eranos, Jung viu-se estimulado e desafiado a apresentar definições psicológicas operacionais de religião. No entanto, a definição junguiana é bastante ampla. Menos preocupado em definir religião e mais frequentemente referindo-se à religião como "sistemas terapêuticos", Jung deixa de lado todas as questões de metafísica e ontologia ao ressaltar, por exemplo:

Minha atitude com relação a todas as religiões, portanto, é positiva. Em seu simbolismo, reconheço aquelas figuras que encontrei em sonhos e fantasias de meus pacientes [...]. Cerimoniais ritualísticos, ritos de iniciação e práticas ascéticas, em todas as suas formas e variações, interessam-me profundamente, pois são técnicas diversas para produzir uma relação adequada com essas forças [da vida psíquica] (Jung, 1929/1985, CW4, p. 337, § 777).

A partir dessa perspectiva, percebe-se que Jung entende a religião como fatos psíquicos e que sua atenção tende a se concentrar na base arquetípica e no significado psicológico. Além disso, ele estava fascinado com os métodos contrastantes de observação empregados pelas religiões orientais e ocidentais e, apesar de atraído por suas semelhanças, para ele as duas concepções de religião eram radicalmente diferentes. Isso fica evidente no subtítulo de uma das suas principais obras sobre religião: "Psychology and religion: West and East" (Collected Works, vol. 11), que representa a pedra de toque da abordagem de Jung à psicologia da religião, a partir de uma visão mais sistemática.

Os ensaios que formam a "Parte Um" são especialmente significativos por serem repletos de simbolismo cristão e de sua interpretação psicológica dos fenômenos religiosos. Também particularmente significativas são as famosas "Terry Lectures", em "Religion in the light of science and philosophy", que Jung apresentou na Universidade de Yale em 1937 ((Collected Works, vol. 11). Nessas conferências, ele tratou formalmente do conceito de numinoso de Rudolf Otto, afirmando que "a religião é uma cuidadosa e escrupulosa observação do que Otto apropriadamente denominou de numinosum". No trecho a seguir, pode-se perceber como ele expandiu a definição de Otto para uma abordagem mais geral, explicando que a religião é também uma atitude que envolve:

[...] uma cuidadosa consideração e observação de certos fatores dinâmicos concebidos como "poderes": espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais ou qualquer nome que o homem tenha dado a fatores existentes em seu mundo e que ele via como poderosos, perigosos ou úteis o suficiente para serem tomados em cuidadosa consideração, ou grandes, belos e significativos o bastante para serem devotadamente cultuados e amados (Jung, 1939/1969, CW11, pp. 7-8, § 8).

Jung estava convencido de que a experiência religiosa superava o conceito teológico, esclarecendo que, ao empregar o termo "religião", ele não se referia a um credo, uma vez que credos são formas codificadas e dogmatizadas de experiências religiosas originais que se tornaram sistematizadas como verdade coletiva dentro de certa tradição.

Embora permanecesse cético quanto às religiões institucionalizadas, Jung nunca deixou de estar profundamente preocupado com o tema da religião, para ele, uma função da psique profundamente impressa sobre nós, como um resultado da capacidade dos seres humanos de formular imagens de Deus (Jung, 1939/1969, CW11, p. 43, §75; Lammers, 1994).

Após a década de 1940, Jung manteve-se focado quase que exclusivamente em questões religiosas, especialmente nos temas cristãos. Em seus ensaios sobre "A Psychological approach to the dogma of the Trinity" (Collected Works, vol. 11), ele explora os principais tópicos de Cristo como arquétipo, resumindo-o como "o próprio Cristo é o símbolo perfeito do imortal oculto dentro do homem mortal" (Jung, 1950/1980, CW9-I, p. 121, § 218), postulando que o Cristo histórico externo poderia potencialmente despertar o Cristo interno (Jung, 1958/1973, CW18, p. 725, § 1638). Com sua hipótese da "Quaternidade" (em oposição à Trindade), ele também propôs uma explicação nova, radicalmente psicológica para o "feminino faltante", a gênese e o significado do mal no mundo.

O ensaio de "Transformation symbolism in the mass", em "Psychology and religion: West and East" (Collected Works, vol. 11), seu trabalho contínuo sobre alquimia e o gnosticismo, destaca, cada vez mais, seus conceitos e embasa muitos dos seus argumentos (Stein, 1999). O filósofo da religião James Heisig especula que a ideia que deu origem ao modelo de "Quaternidade" de Jung pode ter derivado de seus escritos gnósticos "Seven sermons to the dead" (Jung, 1916/1967), no qual ele se dirige a quatro "deuses" principais: Helios (Pai), Eros (filho), Vida (Espírito) e Demônio. Jung também estava ciente da tentativa dos gnósticos de introduzir o feminino na Trindade (Heisig, 1979).

Em 1944, Jung publicou "Psychology and alchemy", obra elaborada tendo como base duas palestras ministradas nas Conferências de Eranos em 1935/1936. Heisig aponta que, "dentre todos os seus trabalhos publicados e inéditos, não existe melhor resumo das ideias de Jung sobre religião do que sua 'Introduction to the religious and psychological problems of alchemy'" (Heisig, 1979). Neste texto, Jung apresenta seu ponto de vista psicológico, dizendo que a "realidade da religião" é fundamentada em certa "faculdade de relacionamento com Deus". Segundo ele, a psicologia vem para auxiliar o encontro entre o homem e seu conteúdo arquetípico inconsciente:

O fato é que, com o conhecimento e a experiência real dessas imagens interiores, abre-se uma via para que a razão e o sentimento ganhem acesso àquelas outras imagens que o ensino da religião oferece à humanidade. Assim, a psicologia faz o oposto daquilo de que é acusada: fornece abordagens possíveis para uma melhor compreensão dessas coisas, abre os olhos das pessoas para o verdadeiro significado dos dogmas e, longe de destruí-los, abre as portas de uma casa vazia para novos habitantes (Jung, 1944/1980, CW12, p. 15, § 17).

Para Jung, o valor da sua psicologia da religião reside na capacidade de "reavivar as tradições religiosas", em especial o cristianismo. Grande parte de seu trabalho posterior foi dedicada às suas preocupações iniciais com o problema do mal e sua origem, temas que discutia principalmente em sua correspondência com o padre dominicano inglês Victor White. Durante vários anos, White ajudou Jung a refinar sua interpretação do catolicismo, antes dele entrar na arena pública com seus escritos, em particular "Aion: researches into the phenomenology of the Self" (Collected Works, vol. 9-II) e "Answer to Job" ((Collected Works, vol. 11).

Em 15 anos de colaboração, Jung e White tinham um projeto ambicioso: queriam construir uma ponte para desenvolver sólidas conexões teóricas e práticas entre as doutrinas da igreja e a psicologia junguiana. White era extremamente erudito e falava a língua da teologia Tomista de forma tão hábil e coerente como Jung falava a da psicologia analítica. Os textos de Jung frequentemente citam autores bíblicos, pais da igreja e hereges, textos gnósticos e alquímicos, mitologia e religião comparada. Poucos leitores tinham a competência de White para avaliar o uso que Jung fazia de fontes tão diversas (Lammers, 1994; Lammers & Cunningham, 2007).

A obra "Aion: researches into the phenomenology of the Self" (Jung, CW 9-II) lança luz sobre o mito do cristianismo, mito ocidental dominante por dois mil anos. Jung via no século XX o final de um mundo e a passagem para uma nova etapa da evolução religiosa, que ele chamou de um "novo aeon" (Maillard, 2006, p. 652), esclarecendo que:

Eu tinha tentado explicar como o surgimento de Cristo coincidiu com o início de um novo aeon, a era de Peixes. Existe uma sincronicidade entre a vida de Cristo e o evento astrológico objetivo, a entrada do equinócio da primavera no signo de Peixes. Cristo é, portanto, o "Peixe" (assim como, antes dele, Hamurabi [o fundador da civilização babilônica] foi o Capricórnio) e aparece como o governante do novo aeon (Jung, 1961/1995, p. 248).

Esta obra é o primeiro esforço de Jung para lidar com o significado psicológico de Cristo como uma figura divina. Para ele, na tradição cristã, há uma contradição entre o privatio boni (ausência do bem) e a existência do demônio anterior à criação do homem e tanto o arquétipo cristão quanto o arquétipo de Deus carecem de um lado escuro: "O símbolo de Cristo carece de totalidade no sentido moderno, uma vez que não inclui o lado escuro das coisas, mas, especificamente, o exclui, sob a forma de um oponente luciferiano" (Jung, 1951/1978, CW9-II, p. 41, § 74).

No ano seguinte, Jung escreveu "Answer to Job" (Collected Works, vol. 11), uma continuação direta de "Aion: researches into the phenomenology of the Self" e um trabalho muito mais pessoal e intenso, revelando a luta interna de Jung com Deus e explorando a questão crucial: "de onde vem o mal?". Em sua velhice, Jung observou que desejaria poder reescrever todos os seus livros, exceto este. Com esta obra, ele estava completamente satisfeito (von Franz, 1998).

Ao analisar o "Livro de Jó", da Bíblia, Jung discute a divindade ambivalente e a inadequação da unilateralidade da imagem ocidental tradicional de Deus. O livro apresenta seu debate com a concepção judaico-cristã de Deus, retroagindo aos dias da criação e avançando até uma visão do Apocalipse (Bishop, 2002). É uma obra altamente controvertida e provocadora que recebeu críticas em vários níveis e lhe custou a amizade com White, seu mais importante parceiro de conversas teológicas (Lammers, 1994; Lammers & Cunningham, 2007).

Embora Jung não tenha desenvolvido suas opiniões sobre a psicologia da religião para além desses dois livros, Ann Lammers, uma estudiosa da obra junguiana, sugere que existe um enorme sentido de urgência em seus escritos - desde o início da Primeira Guerra Mundial, quando ele sentiu que suas visões anteriores à guerra eram proféticas, até o final de sua vida. Para ela, é como se Jung se sentisse pressionado por uma obrigação pessoal a entregar os frutos de suas descobertas psicológicas para ajudar um mundo em perigo (Heisig, 1979; Lammers, 1994).

Jung lapidou suas ideias depois de "Aion: researches into the phenomenology of the Self" e "Answer to Job" em sua última grande obra, "Mysterium Coniunctionis" (Collected Works, vol. 14), na qual estabeleceu sua psicologia sobre as bases históricas da alquimia. Ele explica:

Assim, minha tarefa foi terminada, meu trabalho feito, e agora pode se sustentar de pé. No momento em que toquei o fundo, alcancei os limites do conhecimento científico, o transcendental, a natureza do arquétipo per se e, a respeito de tudo isso, nenhuma declaração científica adicional pode ser feita (Jung, 1961/1995, p. 248).

O legado de Jung: insights psicológicos relativos à religião

Meus esforços na psicologia foram, essencialmente, trabalhos pioneiros que me deixaram sem tempo nem oportunidade de apresentá-los sistematicamente. (Jacobi, 1962, p. xi).

Roger Brooke, professor de psicologia, destaca que as obras pioneiras de Jung foram escritas, basicamente, em paralelo ao crescimento da fenomenologia, durante a primeira metade do século XX, embora Jung nunca tenha adotado suas orientações metodológicas de forma sistemática e disciplinada. Para Brooke, o método de Jung poderia ser descrito como uma combinação de pesquisa empírica e fenomenológica que faz uso de técnicas introspectivas e descritivas (Brooke, 1991). Jung realmente insistiu em tornar científico o seu método, mas teve pouco tempo para elaborar uma metodologia, em razão da contínua revisão de suas teorias, da amplificação de ideias anteriores, ao mesmo tempo em que novas elaborações se tornavam o foco de seu trabalho pioneiro. Sendo assim, não existe uma abordagem única que reflita com precisão a natureza do seu método.

Heisig destaca que a característica definidora da psicologia da religião de Jung está em seu método de "amplificação objetiva", que envolve três etapas: (a) a coleta de dados primários, (b) a busca de paralelos, analogias e material comparativo entre os documentos da história e (c) a interpretação dos novos dados à luz das informações históricas (Heisig, 1979).

Depois de anos, observando e investigando sonhos, fantasias, visões e delírios psicóticos, Jung estava mais concentrado nas origens psicológicas da religião e seus efeitos sobre o psiquismo. Ele buscava um método psicológico com o qual pudesse igualmente compreender e tratar as doenças da alma humana. Segundo Shamdasani (2009), Jung estava convencido de que o Iluminismo, a "era iluminada" da razão e do ceticismo inaugurada pela Revolução Francesa, havia reprimido a religião e o irracionalismo. Isso, por sua vez, teve consequências graves, eventualmente levando à eclosão do irracionalismo, representado pelas duas guerras mundiais (Shamdasani, 2009, p. 210)

Para Jung, as profundas mudanças provocadas pelas guerras e por uma civilização dominada pelo materialismo instigaram dois fenômenos inconscientes em que as massas (a) projetavam sobre pessoas e nações os arquétipos negligenciados, transformando-as, assim, em inimigos perigosos, ou (b) tornavam-se uma variante moderna das religiões fanáticas: "nossos temíveis deuses apenas mudaram seus nomes: eles agora rimam com ismo" (Jung, 1999, CW7; Wulff, 1990). Em um de seus últimos ensaios, "The Undiscovered Self" (1957), Jung declara: "O Estado assume o lugar de Deus; é por isso que, visto desse ângulo, as ditaduras socialistas são religiões, e a escravidão ao Estado é uma forma de adoração" (Jung, 1957/1964, CW10, p. 259, § 511). Havia, portanto, uma necessidade histórica de reconhecer o irracional como um fator psicológico e tornou-se tarefa da psicologia, não apenas compreender, como também promover o desenvolvimento de uma nova consciência para novos tempos.

 

Conclusões

Entre todos os meus pacientes que se achavam na segunda metade da vida - quer dizer, com mais de 35 anos -, não houve um sequer cujo problema não fosse, em última instância, encontrar uma visão religiosa da vida. É seguro dizer que cada um deles ficou doente porque havia perdido o que as religiões vivas de todas as épocas davam a seus seguidores, e nenhum deles foi realmente curado sem ter recuperado sua perspectiva religiosa. (Jung, 1932/1969, CW11, p. 334, § 509).

Ao longo de sua vida, Jung esforçou-se por desenvolver uma psicologia de respeito às diferenças individuais e, ao mesmo tempo, que considerasse cientificamente as propriedades gerais dos processos psíquicos. Para ele, a melhor abordagem para solucionar os problemas coletivos era por meio da transformação psicológica do indivíduo (Shamdasani, 2003).

Em parte por causa de sua educação religiosa e em parte porque acreditava que a psicodinâmica que descobrira era subjacente às formulações religiosas, Jung gostava de descrever esse processo em termos religiosos (MacKenna, 2008). Em maior ou menor grau, tudo o que ele publicou tinha a ver com religião, a tal ponto que, ele escolheu termos religiosos para seu processo terapêutico, como, por exemplo, o nome da primeira das quatro etapas do seu processo analítico: confissão, elucidação, educação e transformação (Jung, 1929/1981, CW16, p. 55, § 122).

Embora Jung nunca tenha se considerado um cristão tradicional, os símbolos de Deus e de Cristo, as forças contrastantes do bem e do mal e a importância fundamental do simbolismo religioso funcionam como um leitmotiv na maior parte de suas obras. Ele mantinha uma relação ambivalente com o cristianismo, criticando-o e valorizando-o simultaneamente; desafiava o ponto de vista cristão e, ao mesmo tempo, argumentava que a religião servia para nos colocar em contato com a mente inconsciente (Heisig, 1979). Além disso, a partir de seu engajamento com a religião oriental, a psicologia de Jung não só desafiou o monopólio cristão predominante no Ocidente, como também ofereceu uma dimensão espiritual muito além de qualquer coisa alguma vez disponibilizada por qualquer tradição religiosa, seja no seu tempo, seja no nosso (Dourley, 1984).

Desde os anos que passou compondo "The Red Book", Jung esforçou-se para compreender os efeitos psicológicos e históricos do cristianismo e, na medida em que envelhecia, mais intensamente ele sentia que sua tarefa tratar dos males espirituais e religiosos de seus pacientes.

Toda a sua obra pode ser entendida como uma tentativa de compreender o futuro desenvolvimento religioso do Ocidente, com a convicção de que a religião é necessária para a evolução espiritual da humanidade (Shamdasani, 2009, p. 207). Desde tempos imemoriais, as religiões têm funcionado como sistemas para curar doenças psíquicas e Jung percebeu que, com o declínio da vida religiosa, as neuroses haviam se tornado mais frequentes, em razão da estagnação espiritual da sociedade, da esterilidade psíquica e da falta de significado.

Em "The Red Book" pode-se perceber as primeiras insinuações de sua recém descoberta fé na relevância de sua psicologia profunda: "Nossa era está buscando uma nova fonte de vida. Eu encontrei uma fonte e bebi de sua água, e o gosto era bom" (Shamdasani, 2009, p. 210).

Três décadas mais tarde, em "Psychology and religion: West and East", ele expressou a importância vital de sua terapia da alma para o homem moderno confrontado com esse vazio interior:

[...] é por isso que nós, os psicoterapeutas, devemos nos ocupar com problemas que, estritamente falando, pertencem ao teólogo. Mas não podemos deixar essas questões para a teologia responder; desafiados pelas urgentes necessidades psíquicas de nossos pacientes, somos diretamente confrontados com elas todos os dias. (Jung, 1932/1969, CW11, p. 344, § 532).

De uma perspectiva junguiana, a capacidade inata do homem para acessar o divino fora dos limites dos credos e dogmas concede-lhe autonomia espiritual, libertando a imaginação em relação à imagem exterior. A abordagem psicológica abraça o religioso de tal forma que seu valor espiritual não é danificado nem reduzido. Pelo contrário, o espiritual é confirmado e amplificado por meio do psicológico (Stein, [2018]).

Ao abordar a religião por meio da psicologia e ao voltar a atenção para o mundo interior, Jung acredita que o indivíduo recupera o acesso à origem da vida psíquica, marcando o início da cura (Jung, 1954/1969). Em última análise, para ele as doenças psicológicas são, na raiz, religiosas por natureza, e a psicologia profunda é um Heilsweg em ambos os sentidos da palavra: um caminho de cura e um caminho de salvação (Jacobi, 1962).

 

Referências

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Recebido: 15 mar 2018
Revisado: 30 out 2018
Aprovado: 09 dez 2018
Aprovado para publicação: 19 maio 2019

 

 

Conflito de interesses: A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Nota da autora: Cito "Memories, dreams, reflections" (1961), ciente do artigo "Memories, dreams, omissions", de Shamadasani (1995), no qual ele esclarece que esta obra de Jung deve ser lida como uma "biografia", e não como uma "autobiografia".
Minicurrículo: Punita Miranda
Graduada em psicologia clínica pela UniCeub (Brasília/DF); mestre em pesquisa pelo Center for History of Hermetic Philosophy and Related Currents (Amsterdã/Holanda), com dissertação de mestrado intitulada "O 'Livro Vermelho' de Jung e a história da psiquiatria no século XIX". Completou o Programa de Treinamento de Liderança, realizado pela analista junguiana Marion Woodman no Canadá e Inglaterra. Candidata ao diploma de analista junguiana no Instituto GAP (Londres). Londres/ Reino Unido. E-mail: punita.miranda@gmail.com
1 Nota dos editores: O trabalho original, "Wandlungen und Symbole der Libido", que materializou de forma contundente o afastamento de Jung das ideias de Freud, foi publicado em duas partes (1911 e 1912) e traduzido para o inglês como "Psychology of the unconscious". Em 1952 Jung lançou uma nova edição definitiva dessa mesma obra com o nome de "Symbole der Wandlung", traduzida em 1956 para o inglês, agora com o nome de "Symbols of transformation" e para o português como "Símbolos da transformação".