ARTIGO
DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2018.vol03.0008
A existência segundo Fernando Pessoa: "Ninguém vê senão a alma em que ermo habita"
The existence according to Fernando Pessoa: "No one sees but the soul where he all alone dwells"
La existencia según Fernando Pessoa: "Nadie ve sino el alma en que solo habita"
Ricardo Pires de SOUZA
São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo demonstrar o paralelo existente entre as ideias junguianas de si-mesmo, de função religiosa e de numinoso e a angústia existencial na escrita de Fernando Pessoa. Dentro desse escopo, um aspecto na obra e na vida de Pessoa merece olhar analítico: o enfrentamento do vazio existencial - o medo profundo diante da ideia da morte e da completa ausência de significado intrínseco que o mundo natural apresenta, aí incluído, para o poeta, o mundo social humano onde ele se sente eternamente deslocado. Essa é a motivação maior da sua vida e a marca universal da sua obra: a angústia existencial presente em todas as suas personalidades literárias e heterônimos, principalmente o Pessoa "ele-mesmo" ou Pessoa ortônimo, e resultando na Poesia, tida como valor supremo e imagem de Deus. De fato, terror e fascinação caracterizam toda imagem, ideia ou experiência de Deus, fundamento da função religiosa descrita por C.G. Jung em sua teoria do inconsciente, fenômeno que ele chama de numinoso. Na teoria junguiana, essa função é psicologicamente representada pelo arquétipo do Self ou si-mesmo, simultaneamente centro e totalidade da experiência psíquica humana, responsável tanto pela geração quanto pela contenção da angústia existencial que nos acomete quando confrontamos nossos dilemas narrativos fundamentais: vida e morte, existência e não-existência, materialidade e imaterialidade, determinismo e indeterminismo, acaso e finalidade. Assim, consequentemente, o fator Self é o responsável por todos os mitos e todas as religiões desde que começamos a sepultar nossos mortos. Individualmente, no fazer imaginativo pessoano, o Self ocupou o lugar do sagrado sob a forma da Poesia.
Descritores poesia, Pessoa, Fernando António Nogueira, 1888-1935, psicologia junguiana, Self.
ABSTRACT
The objective of this paper is to demonstrate the existing parallel between Jungian ideas of oneself, of religious function and the numinous, and the existential anguish in Fernando Pessoa writing. Within this scope, an aspect in the work and the life of Pessoa deserves analytic regard: the confrontation of the existential void - the profound fear in front of the idea of death and the total absence of intrinsic meaning the natural world presents, there included, for the poet, the human social world where he feels eternally displaced. This is the biggest motivation of his life and the universal mark of his work: the existential anguish present in all his literary personalities (characters) and e heteronyms, mainly Pessoa "himself" or Pessoa orthonym, and resulting in Poetry, considered as supreme value and the image of God. In fact, terror and fascination characterize all image, idea or experience of God, foundation of the religious function described by C.G. Jung in his theory of the unconscious, phenomenon he calls numinous. In Jungian theory, this function is psychologically represented by the archetype of Self or him-self, simultaneously center and totality of human psychological experience, responsible both for the generation and restraint of the existential anguish that strikes when we confront our fundamental narrative dilemmas: life and death, existence and non-existence, materiality and immateriality, determinism and indeterminism, chance and purpose. Consequently, the factor Self is responsible for all the myths and all the religions since we started to bury our dead. Individually, in Pessoa's imaginative work, the Self occupied the place of the sacred under the form of Poetry.
Descriptors: poetry, Pessoa, Fernando António Nogueira, 1888-1935, Jungian psychology, Self.
RESUMEN
Este trabajo tiene el objetivo de demonstrar el paralelo existente entre las ideas junguianas de sí-mismo, de función religiosa y de lo numinoso y la angustia existencial en los escritos de Fernando Pessoa. Dentro de esta esfera, un aspecto en la obra y en la vida de Pessoa merece una mirada analítica: el enfrentamiento del vacío existencial - el miedo profundo frente a la idea de la muerte y la completa ausencia de significado intrínseco que el mundo natural presenta, que incluye para el poeta el mundo social humano donde él se siente eternamente desplazado. Esta es la motivación más grande de su vida y la marca universal de su obra: la angustia existencial presente en todas sus personalidades literarias y heterónimos, principalmente Pessoa "él mismo" o Pessoa ortónimo, y que resulta en Poesía, considerada como valor supremo e imagen de Dios. De hecho, terror y fascinación caracterizan toda imagen, idea o experiencia de Dios, fundamento de la función religiosa descrita por C.G. Jung en su teoría del inconsciente, fenómeno que él llama numinoso. En la teoría junguiana, esa función es psicológicamente representada por el arquetipo del Self o sí-mismo, simultáneamente centro y totalidad de la experiencia psíquica humana, responsable tanto por originarla como por la contención de la angustia existencial que nos acomete cuando confrontamos nuestros dilemas narrativos fundamentales: vida y muerte, existencia y no-existencia, materialidad e inmaterialidad, determinismo e indeterminismo, acaso y finalidad. Así, consecuentemente, el factor Self es el responsable por todos los mitos y todas las religiones desde que comenzamos a sepultar a nuestros muertos. Individualmente, en el quehacer imaginativo de Pessoa, el Self ocupó el lugar de lo sagrado bajo la forma de Poesía.
Descriptores: poesía, Pessoa, Fernando António Nogueira, 1888-1935, psicología junguiana, Self.
Introdução
Conceito fundamental do pensamento junguiano, o Self, ou si-mesmo, pressupõe que o estado psíquico resultante do processo de integração entre a consciência e o inconsciente é diferente da simples adição de conteúdos inconscientes à consciência, pois, inevitavelmente, envolve mudanças de valores e de atitudes do indivíduo comum. Imageticamente refere-se a um deslocamento do centro de "gravidade" psíquico, com o surgimento de uma pessoa de fato diferente, tanto em termos de autoidentidade, quanto em termos de atitude diante da coletividade: esse processo representa um fenômeno emergente com aumento de complexidade, ou seja, algo novo que não existia antes e que surge, um terceiro elemento independente que nasce de uma relação entre opostos.
C.G. Jung (1952/1976):
O arquétipo do si-mesmo possui, funcionalmente, o significado de um senhor do mundo interno, ou seja, do inconsciente coletivo. O si-mesmo, como um símbolo da totalidade, é uma coincidência de opostos e, desse modo, contém simultaneamente luz e escuridão. [tradução nossa] (CW 5: 576, loc. 7345-7348)1
As pessoas são únicas e, por vezes, a força de um mito pessoal muito forte, expresso sob a forma de um dom inescapável - como acontece com o escritor Fernando Pessoa e com outras pessoas superlativas -, lhes confere tonalidade obsessiva ao comportamento e à vida. É muito difícil separar a atitude exagerada, determinada por uma motivação interior fortíssima, da obra do gênio e de seu fado: Nietzsche, Kant, Einstein, Darwin, Curie, Freud, Jung, Shakespeare, Dostoievski, Beauvoir, Joyce, Kafka, Lispector, Whitman, Kahlo, Pound e tantos outros exemplos de mulheres e homens cujas vidas não podem ser separadas de suas obras. Atribui-se ao si-mesmo a força desse tipo de "destino", pois, sua atitude pode ser descrita legitimamente como "religiosa": ou seja, evidencia a existência de um significado profundo na vida de quem a experimenta (mesmo que este significado não seja claramente reconhecido), sem o qual não seria possível viver ou mesmo meramente existir.
Fernando Pessoa dá contenção ao terror que acomete sua alma reverenciando a Poesia, poesia com "P" maiúsculo por representar para ele um valor supremo, um "absoluto poético", uma imagem, ideia ou experiência de Deus. E ele o faz entregando em sacrifício sua vida mundana em nome de sua vida poética.
Outro elemento marcante - fortemente instrumental ao enfrentamento pessoano do terror existencial - é a transformação poética de complexos psíquicos inconscientes em personas literárias conscientes; escritores fictícios escrevendo ficção que nunca é verdadeiramente ficção, mas fragmento autônomo da realidade subjetiva projetado; personalidades secundárias ganhando voz e, com isso, por meio do poeta, ganhando consciência. Seus heterônimos e personalidades literárias lhe foram instrumentais em sua jornada heroica. A fascinação e o terror gerados por seus submundos psíquicos e pela ideia de Deus transformaram sua vida e sua obra em coisa única, ou pelo menos permitem essa visão. Ainda assim, somente puderam cumprir seu papel por adquirirem, de imediato, vida própria, ideias próprias, com as quais Fernando Pessoa, ele-mesmo, por vezes não concordava ou mesmo pelas quais tinha aversão. Desse modo, não foram, em seu fundamento psicológico, em absoluto, personalidades meramente inventadas pela imaginação do poeta, mas sim, seres profundamente vividos pelo homem que continha essa multidão em suas entranhas anímicas.
A singularidade de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa nasceu e morreu em Lisboa, embora tenha passado sua infância (e sido alfabetizado em uma escola bilíngue) na África do Sul. Nasceu em 13 de julho de 1888. Morreu em 30 de novembro de 1935, aos 47 anos.
Pouco depois, Manuel Bandeira (1940) anota:
O movimento modernista das novas gerações cristalizou-se em torno da revista Presença, editada em Coimbra. A vanguarda literária portuguesa procura conciliar o nacionalismo e o cosmopolitismo, a tradição e a revolução. São considerados precursores e mestres da geração de Presença os poetas Mário de Sá Carneiro, Antônio Botto, Almada Negreiros e sobretudo Fernando Pessoa já falecido e cuja obra está em vias de publicação, tido pelos novos como personalidade genial (p. 247, grifos do autor).
Fernando Pessoa é único como ser, indivíduo e pessoa humana, um daqueles seres humanos cuja existência nos faz ponderar que talvez a natureza permita, propicie, deseje singularidades: ápices de complexidade da existência impossíveis de serem comparados a qualquer outra coisa ou medidos por qualquer outra régua.
Fernando Pessoa escreveu o mundo com a licença de quem não fazia questão de estar nele, embora desejasse visceralmente apreender seu significado. De fato, ele não estava em outro lugar que não fosse sua própria interioridade, gruta escondida onde se deparava com duas dimensões: a profundidade e a angústia de sua própria alma e a multidão multifragmentada de personalidades paralelas que o habitavam.
Homem profundamente introvertido, Fernando Pessoa vivia em seu próprio mundo com a vivacidade que somente as coisas animadas e numinosas possuem. Sua paixão pelo seu mundo interno e sua grandeza literária produziram um dos maiores legados poéticos da humanidade, quase todo publicado apenas após a sua morte.
Em "Livro do Desassossego", Fernando Pessoa (1999) diz por meio da voz de Bernardo Soares:
Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas. [...] Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar (p. 48).
Da vida dos homens, Fernando Pessoa viveu pouco, modestamente, entre pensões e quartos estranhos e os bares com os amigos. Seu livro "Mensagem" e os poemas surgidos em revistas foram suas únicas publicações. Fernando Pessoa viveu toda a sua vida em verso e prosa.
Toda a obra publicada de Fernando Pessoa é de domínio público. O que não foi publicado está na famosa arca que ainda guarda seus manuscritos e que ele carregava consigo em suas constantes mudanças de endereço. A arca é símbolo poderoso: nela está "contida" a incontível infinitude do pensamento pessoano.
A obra de Fernando Pessoa é uma cosmogonia.
Fernando Pessoa e os heterônimos, Jung e os complexos
Existem três heterônimos de Fernando Pessoa, assim definidos por ele mesmo em sua "Tábua Bibliográfica", publicada em dezembro de 1928: Álvaro de Campos, Alberto Caieiro e Ricardo Reis. Há um semi-heterônimo, Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. E há ainda dezenas de "personalidades literárias".
A multiplicidade estilística de "eus" pode, em Fernando Pessoa, se revelar e tomar forma poética graças à sua genialidade transformada em mito pessoal, o que o torna singularíssimo, embora essa multidiversidade fragmentária da psique exista em todos nós. Em todos os seres humanos, essa multidão interior é responsável, projetivamente, pelas imagens dos sonhos e pelas bases ficcionais das fantasias conscientes, pelos mitos e pelos deuses, cada qual com aspectos diversos para cada ocasião e contexto cultural, cada qual com intencionalidade e capacidade de interferir no agir consciente ‒ tanto mais potencialmente atuantes, quanto mais inconscientes forem os fatores psíquicos.
Nos heterônimos e nas personalidades literárias de Fernando Pessoa vemos a materialização literária dos complexos psíquicos secundários descritos por C.G. Jung. Ambos, heterônimos e complexos, provêm das profundidades inconscientes e possuem certo grau de autonomia sobre a consciência. Não se trata de uma autonomia completa ou irrestrita, mas, com certeza, dominante em determinados momentos, influenciando o agir e o discurso conscientes de maneira não necessariamente explícita, porém, ainda assim, presente e atuante.
O complexo ideoafetivo (ou simplesmente complexo) conecta uma ideia (ou acontecimento psíquico) a um sentimento ou emoção (afeto), geralmente bastante intensos. Sentimentos e emoções interferem na capacidade de deliberar que o pensamento nos faculta, característica da consciência do eu. O sentimento não é percebido como desorganizador uma vez que sua intensidade é suportável pela consciência; ele não altera significativamente nem a própria ideia, nem a deliberação dela decorrente. Pelo contrário, o sentimento organiza e, por isso, é considerado uma função racional. Já a emoção é potencialmente desorganizadora. A força primitiva do medo, da repulsa e da paixão, é maior do que o pensar e o agir com base no pensamento.
Para Jung (1909/1989):
Acontecimentos que não suscitam emoções fortes, quase não influenciam nossas ideias ou ações. Aqueles, no entanto, que provocam reações de sentimento fortes, são de grande importância para nosso desenvolvimento psíquico posterior. Recordações dessa natureza, dotadas de forte carga emocional, formam complexos de associações, não somente duradouros, mas muito ativos e estreitamente ligados entre si.
Um objeto a que atribuo pouca importância provoca poucas associações e logo desaparece de meu horizonte intelectual. Mas um objeto de grande interesse para mim suscitará numerosas associações e me ocupará por muito tempo. Cada emoção produz um complexo de associações mais ou menos extenso a que dei o nome de "complexo ideoafetivo" (p. 28; OC IV: 67).
Complexos são quase sempre inconscientes. Na maioria das vezes, nem o complexo nem sua motivação estão à disposição da consciência - ou seja, estão abaixo da nossa capacidade de observação. Um evento psíquico inconsciente não pode ser objeto de deliberação. Na medida em que aumenta a intensidade da emoção conectada a uma ideia inconsciente, diminui o poder do eu, o autorreconhecido centro da consciência, para deliberar sobre qualquer coisa. Ocorre então uma autonomia relativa do complexo devido à sua intensidade emocional.
Os complexos são personalidades secundárias pobremente formadas e que, de modo geral, não admitimos em nós mesmos - por vezes, os complexos nos impulsionam a certas ações nas quais não nos reconhecemos depois, por exemplo. Mas, eles surgem em Fernando Pessoa de forma peculiar: como personalidades ao mesmo tempo concretas e etéreas. Sua concretude se apresenta na leitura que a obra pessoana propicia: uma leitura independente de cada autor inventado e do Fernando Pessoa ele-mesmo. Seu caráter diáfano se revela no fato de que nunca existiram, nunca deixaram de ser Fernando Pessoa, mesmo quando o contradiziam frontalmente e mesmo diante do argumento simultaneamente válido de que as personalidades literárias do autor são construções imaginárias deliberadas e conscientes.
No nível mais profundo do inconsciente coletivo, os complexos revelam seu verdadeiro fundamento: os arquétipos, conteúdos psíquicos coletivos primários, de natureza análoga aos instintos, responsáveis pela formação de ideias típicas, repetidas de formas diversas nas mitologias de todas as culturas. Estes conteúdos psíquicos estão na base de toda a vida imaginativa e são igualmente o fundamento dos complexos. Os arquétipos são responsáveis por todas as etapas do desenvolvimento psíquico, embora não sejam diretamente percebidos, uma vez que não conseguimos tomar como objeto de observação conteúdos psíquicos que, de modo geral, ignoramos. No entanto, eles podem ser identificados por meio de seus efeitos. Eles influenciam e, em certas situações e momentos, claramente dirigem nosso agir consciente.
Segundo Jung (1952/1976):
[...] nem todas as nossas ideias são aquisições individuais. [...] Esses padrões herdados, inatos, pré-existentes - os arquétipos - podem produzir ideias ou combinações de ideias praticamente idênticas e cuja origem não pode ser creditada à experiência individual. [tradução nossa] (CW 5: 474, loc. 6294-6300)2
Ainda de acordo com Jung (1938/1973):
Certas ideias existem em quase todos os lugares e tempos e podem ser criadas espontaneamente de maneira independente de migração ou tradição. Elas não são criadas pelos indivíduos, mas simplesmente lhes ocorrem e forçam seu acesso à consciência. [tradução nossa] (CW 11: 5, loc. 237-239)3
Por fim,
[...] não são ideias herdadas, mas a disposição inata para produzir formas de pensamento paralelas, ou estruturas psíquicas idênticas, comum a todos os seres humanos, que chamei de arquétipos do inconsciente coletivo. [tradução nossa] (Jung, 1952/1976; CW 5: 224, loc. 3236-3238)4
A importância do símbolo e do mito na vida de cada pessoa e para a construção da civilização e da sociedade é nuclear. Na verdade, não conseguimos evitar de pensar mitologicamente e, dessa maneira, construir nossas ideias a partir de moldes inconscientes pré-estabelecidos, desde as ideias mais banais, até as mais importantes teorias do nosso tempo, como a teoria da relatividade geral de Einstein, a teoria da evolução das espécies de Darwin e a própria teoria do inconsciente de Jung.
O dilema acerca de como elementos da cultura podem ser incorporados na própria estrutura humana, a ponto de poderem ser transmitidos como herança, permanece insolúvel. Mas, a evidência de que essa transmissão ocorre revela-se na repetição independente de formulações de ideias, desde as primeiras representações simbólicas, em esculturas e pinturas parietais paleolíticas, até as grandes teorias científicas da nossa era, passando por toda existência psíquica individual de cada ser humano que já viveu ou vive no planeta Terra - basta observar os sonhos das pessoas comuns assim como todos os mitos de todos os povos de todos os tempos e perceber que esses motivos básicos de formação de ideias estão sempre lá.
A quase determinação que o arquétipo do si-mesmo produz em Fernando Pessoa é um exemplo dos mais claros acerca da ação dos arquétipos. O poeta não faz outra pergunta ao longo de sua obra que não seja: "por que e para que eu existo e tudo existe?", e isso claramente não é uma escolha.
Em Alberto Caeiro, um dos principais heterônimos pessoanos, existir tem significado em si, significado intrínseco, inquestionável. Sua visão de mundo de homem simples se restringe ao mundo que há. Ele é um poeta camponês, um poeta-filósofo da natureza, embora apregoe uma antifilosofia. Seu realismo sensorial - no qual ter sensações e sentir é tudo - tem aversão aos pensamentos, à metafísica e à filosofia (Bloom, 1994).
Ricardo Reis, outro heterônimo, é um epicurista interessado em viver a vida, dia após dia, aproveitando o momento: é adepto do carpe diem.
A prosa de Fernando Pessoa é igualmente superlativa. No "Livro do Desassossego" ele chama um certo Bernardo Soares para compor algumas das páginas mais impressionantes da literatura mundial de todos os tempos. Segundo o prefácio de Zenith (1999):
O que temos aqui não é um livro, mas sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o antilivro, além de qualquer literatura. O que temos nestas páginas é o gênio de Pessoa no seu auge. (p. 13)
Dilema existencial em Fernando Pessoa e a arte como valor supremo
Fernando Pessoa apresentou uma atitude profundamente religiosa ao longo de sua vida: sua experiência de Deus era a arte, a literatura, a poesia, a palavra escrita.
Ele viveu o dilema e a angústia existencial na sua expressão mais profunda e fez disso instantes poéticos plenos de significado e de dor. Sua vida foi uma perene crise existencial.
Fernando Pessoa (1999), "Livro do Desassossego":
Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo, pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal.
Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais. [...] Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida (p. 45).
O autor lida com o dilema existência / não-existência por meio da poesia, por meio da palavra escrita.
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade direta; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como devem sentir quem sente segundo outra pessoa. [...] Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido (Pessoa, 2006a, p. 28-29).
Antes, Fernando Pessoa constata e descreve o terror diante da ideia da morte, da não-existência e da ausência de significado da existência. Este terror está tanto no Fernando Pessoa ortônimo (ele-mesmo), quanto no Álvaro de Campos whitmaniano, no "Fausto" goetheano e na prosa do "desassossego", de Bernardo Soares. Encontra-se também no discurso antagônico de Alberto Caeiro e de Ricardo Reis.
Cunha (1991), na "Nota à edição" do "Fausto, tragédia subjectiva" de Fernando Pessoa, diz:
A tragédia subjetiva, de que a condição existencial do poeta é a verdadeira protagonista, encena-se-lhe na alma e na inteligência e nela decorre, tragédia mental sem episódios, aventura da razão a quem morreram Deus e o Diabo, e se exaure, por excesso de análise, fulminando-se de encontro ao ignoto (p. V).
A existência segundo Fernando Pessoa
Chamo Fernando Pessoa para falar sobre si mesmo e sua elaboração acerca do mundo, da existência e de Deus. Os textos utilizados nessa composição são apresentados em uma reconstrução em prosa, que tem como objetivo propiciar a percepção da angústia existencial no texto de Fernando Pessoa. A seleção dos fragmentos privilegia Fernando Pessoa ortônimo e seu heterônimo mais próximo, Álvaro de Campos, autor do poema Tabacaria devido ao tom direto com que abordam a questão. A intenção foi a de pedir ao poeta que fale e que, ao fazê-lo, traga à luz sua fascinação e seu terror diante das ideias da morte e da não-existência, assim como a imperativa busca pelo significado da existência e pelo significado da sua própria vida (os trechos em versos dos poemas e suas referências podem ser encontrados no Apêndice A).
Fala Fernando Pessoa
É a hora! Olho o Tejo, e de tal arte que me esquece olhar olhando, e súbito isso me bate de encontro ao devaneando - o que é ser-rio, e correr? O que é está-lo eu a ver? Perante o universo, mudo quedei-me, sem coração. "Ah! Que significa tudo? onde a causa, a explicação?" Qual a palavra final que tudo, tudo contém? O mistério supremo do Universo, o único mistério, tudo e em tudo, é haver um mistério do universo, é haver o universo, qualquer coisa, é haver haver. Por que há? Por que há um universo? Por que é um universo que é este? Por que é assim composto o universo? Por que há? Por que há o que há? Por que há mundo, e porque é que há mundo assim? Por que há aqui, dores, consciência e diferenças? Mais que a existência é um mistério o existir, o ser, o haver um ser, uma existência, um existir - um qualquer, que não este, por ser este - este é o problema que perturba mais. O que é existir - não nós ou o mundo - mas existir em si?
O único mistério no universo é haver um mistério do universo. Sim, este sol que sem querer ilumina a terra e as árvores, e as estações todas; as pedras em que eu piso, as casas brancas, os homens, o convívio humano, a história, o que se passa - tradição ou fala - entre alma e alma - as vozes, as cidades - tudo nem traz consigo a explicação de existir, nem tem boca com que fale.
Por que razão não raia o sol dizendo o que é? Por que motivo sossegado existem pedras sob os meus passos, e ar que eu respiro, e eu preciso respirar? Tudo é uma máquina monstruosa e absurda. Não haverá, além da morte e da imortalidade, qualquer coisa maior? Ah, deve haver, além de vida e morte, ser, não ser, um Inominável supertranscendente Eterno Incógnito e incognoscível!
O nosso mundo é real e o Deus que tem - o Deus das fés, das crenças, com seu céu - é absolutamente verdadeiro, é a realidade, é o criador, é a Vida e a fonte da Eterna Vida... Mas nada disso é a Verdade real... E o próprio Deus não sabe qual ela é... A verdade certa está além do ser e do não-ser, as duplas formas de erro mais simples do pensar. Assim cheguei a isto: tudo é erro, da verdade há apenas uma ideia à qual não corresponde realidade. O mundo encerra um sonho como realidade e em cada seu fragmento vive todo. As figuras de sonho não conhecem o sonho de quem são figuras, porque o mundo não só é sonhado mas é dentro dum sonho um outro sonho em que sonhados são os sonhadores também.
Quanto mais fundamente penso, mais profundamente me descompreendo. O saber é a inconsciência de ignorar. Mesmo quem sabe muito nada sabe. Quanto mais fundamente penso, sim, mais fundamente me sinto ignorar, mais fundamente sinto alguma coisa além do que profundamente penso. Tudo tem outro sentido, ó alma. Mesmo o ter-um-sentido... Ah, tudo é símbolo e analogia! O vento que passa, a noite que esfria são outra coisa que a noite e o vento - sombras de vida e de pensamento. Tudo o que vemos é outra coisa. Tudo transcende tudo; intimamente longe de si mesmo e infinitamente, o universo a si mesmo, existindo, se ilude. Não sonho, não me prevejo, não sei de causa ou fim. Tivesse quem criou o mundo desejado que eu fosse outro que sou, ter-me-ia outro criado.
O rio, sem que eu queira, continua. Espelha-se, fora de eu ser eu, a lua nas águas do meu ser independentes... Meus pensamentos, sóbrios ou doentes nunca saem p'ra fora do meu ser. No barco ao pé da margem, ao mover o remador os remos, fica tudo... A noite é clara, o coração é mudo e a palavra que eu vou dizer, e fora, a ser dita, a noção na alma da hora, passa, como um murmúrio vão do vento... E eu, só na noite com meu pensamento não me distingo do que me rodeia...
É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. Meu nome, não importa, nem qualquer outro pormenor exterior meu próprio. Devo falar de meu caráter. A constituição inteira de meu espírito é de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim; todas as coisas oscilam em torno de mim, e, com elas, uma incerteza para comigo mesmo. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo está cheio de significado. Todas as coisas são "desconhecidas", simbólicas do Desconhecido. Não busquei realidade ou ilusão, só a sempre buscar abri os braços. O caráter da minha mente é tal que odeio os começos e o fins das coisas, porque são pontos definidos. Aflige-me a ideia de que se descubra uma solução para os mais altos e mais nobres problemas de ciência e filosofia: horroriza-me a ideia de que uma coisa qualquer possa ser determinada por Deus ou pelo mundo. Enlouquece-me a ideia de que as coisas mais momentosas possam realizar-se, de que os homens pudessem todos ser felizes um dia, de que se encontrasse uma solução para os males da sociedade, mas nas suas concepções.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, e não tivesse mais irmandade com as coisas senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua a fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada de dentro da minha cabeça, e uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo à Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, e à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Eu, o homem que afirma que o hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje. Desde que existo, vivo dividido entre três seres, em que iguais estou: o meu ser, o meu ser que tenho sido e o verdadeiro ser que nunca sou. Todas as máscaras que a alma humana para si mesma usa, eu arranquei... Não quero nada, nem palavras, nem verdade. Umas e outras o que são? Pedaços cortados da realidade, momentos de diástole do coração. Nexo inútil entre o que sou e quem sou.
Não leio. Horas intérminas, perdido de tudo, salvo de uma dolorosa consciência, vazia de mim próprio, como um frio numa noite intensa, em frente ao livro aberto vivo e morro... Nada... E a impaciência fria e dolorosa de ler p'ra não sonhar, e ter perdido o sonho! Assim como um engenho que, abandonado, em vão trabalha ainda, sem nexo, sem propósito, eu moo e remoo a ilusão do pensamento... E hora a hora na minha estéril alma mais fundo o abismo entre meu ser e mim se abre, e nesse abismo não há nada...
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, e a história não marcará, quem sabe?, nem um, nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas - e quem sabe se realizáveis, nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, ainda que não more nela; serei sempre o que não nasceu para isso; serei sempre só o que tinha qualidades; serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, e cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, e ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente o seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, e o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; mas acordamos e ele é opaco, levantamo-nos e ele é alheio, saímos de casa e ele é a terra inteira, mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
O homem vive em inconsciência, nasce e vive e morre inconscientemente.
Paro à beira de mim e me debruço... Abismo... E nesse Abismo o Universo com seu Tempo e seu Espaço é um astro e nesse Abismo há outros universos, outras formas de Ser com outros Tempos. Espaços e outras vidas diversas desta vida... O espírito é antes estrela... O Deus pensado é um sol... E há mais Deuses, mais espíritos doutras maneiras de Realidade... Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco a mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, vejo os cães que também existem, e tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, e tudo isto é estrangeiro, como tudo.
Só uma coisa me apavora a esta hora, a toda hora: é que verei a morte frente a frente, inevitavelmente. Ah, este horror, como poder dizer? Não lhe poder fugir! Não pode-lo esquecer! E nessa hora em que eu e a Morte nos encontrarmos o que verei? o que saberei? o que não verei? o que não saberei? Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário como um cão tolerado pela gerência por ser inofensivo e vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Sinto perto o que está longe. Mas eu guardo secreto e indiferente o vulto do meu régio futuro, o meu destino oculto aos olhos do Presente, o Futuro o escreveu no Destino Essencial que fez meu ser ser eu.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada e com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, e a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, sempre uma coisa defronte da outra, sempre uma coisa tão inútil como a outra, sempre o impossível tão estúpido como o real, sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas, verdadeiramente, quem lê versos lê só a própria alma. Ninguém vê senão a alma em que ermo habita. As próprias almas são modas. A vida é rimas e gente. E acho que todo poeta deve ter cara para isso. Passo diante do espelho, sorrio a mim esse conselho: olha p'ra ti e não escrevas.
Tenho no sangue o enigma do universo. Não acredito na morte. A morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto. Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) e a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano, e vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los e saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, e gozo, num momento sensitivo e competente, a libertação de todas as especulações e a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Nenhuma ideia em nós pode nascer alheia à realidade, inda que a esta onde nos cremos entes a viver pareça estranha.
Depois deito-me para trás na cadeira e continuo fumando. Enquanto o Destino me conceder, continuarei fumando. (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. Talvez que Deus não seja real e exista, talvez não seja Deus e exista, e seja como nós o pensamos Deus p'ra nós. Por ser o ser que é absoluto ser! Não haver para além do sempre além ou novas direções do infinito, número infinito de infinitos. Deus é eterno e infinito, e tudo, sim mesmo o tudo que é, Deus o transcende. Deus a si próprio não se compreende, sua origem é mais divina que ele, e ele não tem origem que as palavras possam fazer pensar...
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica. (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Considerações finais: a vivência simbólica da realidade
A realidade pode ser descrita como representando uma série de aumentos de complexidade, desde o nível subatômico até o nível no qual cada pessoa representa uma singularidade. Em um destes aumentos de complexidade que compõem o conceito de ser humano cabe a ideia de arquétipo: a passagem do pensamento coletivo, instintivo, para o conceito de indivíduo humano, a pessoa humana sem qualquer tipo de equivalente, digna e única, insubstituível: a alma humana simultaneamente em sua diversidade fragmentária e em sua totalidade única.
O arbítrio é uma qualidade exclusiva da consciência, não podendo ser atribuído ao inconsciente; porém, ainda assim, dada a força do inconsciente, ele é apenas parcial e mesmo bastante limitado e frágil, resultando um exagero chamá-lo "livre". O arbítrio existe a partir de um incomensurável universo interior inconsciente e simbólico.
Ao admitir um componente desconhecido em todo acontecimento natural, no mundo exterior ou na mente, a vivência simbólica da realidade e sua descrição assumem uma atitude mais tolerante porque inclusiva em relação às coisas humanas e aos atravessamentos da vida, especialmente os fenômenos francamente intangíveis e desconhecidos.
Segundo Jung (1952/1976): "Um símbolo é uma expressão indefinida com muitos significados, apontando para algo que não é facilmente definível e não completamente conhecido." [tradução nossa] (CW 5: 180, loc. 2624-2626)5. E "Os símbolos que a alma cria são sempre baseados no arquétipo inconsciente, mas suas formas manifestas são moldadas pelas ideias adquiridas pela mente consciente." [tradução nossa] (Jung, 1952/1976, CW 5: 344, loc. 4621-4622)6
Segundo Fernando Pessoa (1976):
O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada - todas elas privam o intérprete da primeira cond~ição para poder interpretar. A segunda é a intuição.
A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém, não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja. A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo.
Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado.
A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida.
Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes. A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo. (p. 43-44)
Tanto para Fernando Pessoa quanto para Jung a realidade é simbólica: sempre maior e mais complexa do que seu aspecto aparente e sempre contendo uma dimensão imensurável de desconhecido. Os dois aspectos principais da obra pessoana estão intrinsicamente relacionados: por um lado, o dilema existência / não-existência, gerando tanto o terror existencial quanto a sua redenção estética, poética; e, por outro lado, a multidão de personalidades secundárias que nos habitam e que, em Fernando Pessoa, permitiram a criação de vários poetas a partir de um único homem, incluindo o autor ele-mesmo. Esses fatores geraram, ao final, um legado para a humanidade: a obra literária pessoana.
Referências
Bandeira, M. (1940). Noções de história das literaturas. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
Bloom, H. (1994). The Western canon: the books and school of the ages. New York: Harcourt Brace & Company.
Jung, C. G. (1973). Psychology of religion: West and East. In The Collected Works (Vol. 11) [Kindle]. New Jersey: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1938).
Jung, C. G. (1976). Symbols of transformation. In The Collected Works (Vol. 5) [Kindle]. New Jersey: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1952).
Jung, C. G. (1989). Freud e a psicanálise. In Obras Completas (Vol. IV, p. 28). Petrópolis: Ed. Vozes. (Trabalho original publicado em 1909).
Pessoa, F. (1928, dez). Tábua Bibliográfica. Presença, 17, 1-3. Disponível em http://arquivopessoa.net/textos/2700.
Pessoa, F. (1976). O eu profundo e os outros eus: seleção poética (A. Coutinho, comp., 5a ed.). Rio de Janeiro: J. Aguilar.
Pessoa, F. (1978). Mensagem. In Obras Completas de Fernando Pessoa (12ª ed., p. 104). Lisboa: Edições Ática. (Trabalho original publicado em 1934).
Pessoa, F. (1991). Fausto: tragédia subjectiva: fragmentos (T. S. Cunha, ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Zenith, Z. Prefácio. In Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (R. Zenith, org., p. 13). São Paulo: Companhia das Letras.
Pessoa, F. (1999). Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (R. Zenith, org.). São Paulo: Companhia das Letras.
Pessoa, F. (2005). Poesia: 1931-1935 e não datada (M. P. Silva, A. M. Freitas & M. Dine, eds.). São Paulo: Companhia das Letras.
Pessoa, F. (2006a). Quando fui outro (L. Ruffato, comp.). Rio de Janeiro: Objetiva.
Pessoa, F. (2006b). Poesia - 1902-1917 (M. P. Silva, A. M. Freitas & M. Dine, eds.). São Paulo: Companhia das Letras.
Pessoa, F. (2007). Poesia - 1918-1930 (M. P. Silva, A. M. Freitas & M. Dine, eds.). São Paulo: Companhia das Letras.
Recebido: 01 jun
2017
1a revisão: 05 fev 2018
Aprovado: 25 jul 2018
Aprovado para publicação: 03 out 2018
Minicurrículo:
Ricardo Pires de Souza - Médico. Analista junguiano. Doutor em Medicina
pela Universidade de São Paulo (USP). Presidente do Instituto Junguiano
de São Paulo (IJUSP) 2018-2020; membro da Associação Junguiana
do Brasil (AJB) e International Association for Analytical Psychology (IAAP).
Escritor: autor dos livros "Anima Mundi" (2004) e "A Dança de Shiva"
(2010), poesia, pela Ateliê Editorial, São Paulo. E-mail:
ricapires@uol.com.br.
Conflito de interesses: O autor declara não haver nenhum interesse
profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação
a este manuscrito.
1
The archetype of the self has, functionally, the significance of a ruler of
the inner world, i.e., of the collective unconscious. The self, as a symbol
of wholeness, is a coincidentia oppositorum, and therefore contains light and
darkness simultaneously. (Jung, 1952/1976, loc. 7345-7348)
2 […]
not all our ideas are individual […]
These pre-existent, innate patterns-the archetypes-can easily produce in the
most widely differing individuals ideas or combinations of ideas that are practically
identical, and for whose origin no individual experience can be made responsible.
(Jung, 1952/1976, loc. 6294-6300).
3 The fact is that certain
ideas exist almost everywhere and at all times and can even spontaneously create
themselves quite independently of migration and tradition. They are not made
by the individual, they just happen to him-they even force themselves on his
consciousness. (Jung, 1938/1973, loc. 237-239)
4 […]
it was manifestly not a question of inherited ideas, but of an inborn disposition
to produce parallel thought-formations, or rather of identical psychic structures
common to all men, which I later called the archetypes of the collective unconscious.
(Jung, 1952/1976, loc. 3236-3238)
5 A symbol is an indefinite
expression with many meanings, pointing to something not easily defined and
therefore not fully known. But the sign always has a fixed meaning, because
it is a conventional abbreviation for, or a commonly accepted indication of,
something known. (Jung, 1952/1976, loc. 2624-2626)
6 The symbols it creates are
always grounded in the unconscious archetype, but their manifest forms are moulded
by the ideas acquired by the conscious mind. (Jung, 1952/1976, loc. 4621-4622)
Nevoeiro, in "Mensagem" (Pessoa, 1934/1978, p. 104):
É a hora!
Além-Deus, I / Abismo, in "Poesia - 1902-1917" (Pessoa, 2006b, p. 356):
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isso me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Perante o universo, mudo, in "Poesia - 1902-1917" (Pessoa, 2006b, p. 39):
Perante o universo, mudo
Quedei-me, sem coração.
"Ah! Que significa tudo?
Onde a causa, a explicação?"
Qual a palavra final
Que tudo, tudo contém?
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 11):
O mistério supremo do Universo
O único mistério, tudo e em tudo
É haver um mistério do universo,
É haver o universo, qualquer cousa,
É haver haver.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 92):
Por que há? Por que há um universo?
Por que é um universo que é este?
Por que é assim composto o universo?
Por que há? Por que há o que há?
Por que há mundo, e porque é que há mundo assim?
Por que há aqui, dores, consciência e diferenças?
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 56):
Mais que a existência
É um mistério o existir, o ser, o haver
Um ser, uma existência, um existir -
Um qualquer, que não este, por ser este -
Este é o problema que perturba mais.
O que é existir - não nós ou o mundo -
Mas existir em si?
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 92):
O único mistério no universo
É haver um mistério do universo.
Sim, este sol que sem querer ilumina
A terra e as árvores, e as estações todas;
As pedras em que eu piso, as casas brancas,
Os homens, o convívio humano, a história,
O que se passa - tradição ou fala -
Entre alma e alma - as vozes, as cidades -
Tudo nem traz consigo a explicação
De existir, nem tem boca com que fale.
Por que razão não raia o sol dizendo
O que é? Por que motivo sossegado
Existem pedras sob os meus passos, e ar
Que eu respiro, e eu preciso respirar?
Tudo é uma máquina monstruosa e absurda.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 7):
Não haverá
Além da morte e da imortalidade
Qualquer cousa maior? Ah, deve haver
Além de vida e morte, ser, não ser,
Um Inominável supertranscendente
Eterno Incógnito e incognoscível!
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 65):
O nosso mundo é real e o Deus que tem
- O Deus das fés, das crenças, com seu céu -
É absolutamente verdadeiro,
É a realidade, é o criador,
É a Vida e a fonte da Eterna Vida...
Mas nada disso é a Verdade real...
E o próprio Deus não sabe qual ela é...
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, /1991, p. 161):
[...] a verdade certa está
Além do ser e do não-ser, as duplas
Formas de erro mais simples do pensar.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 164):
Assim cheguei a isto: tudo é erro,
Da verdade há apenas uma ideia
À qual não corresponde realidade.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 62):
O mundo
Encerra um sonho como realidade
E em cada seu fragmento - não me entendes -
Vive todo.
As figuras de sonho não conhecem
O sonho de quem são figuras,
Porque o mundo não só é sonhado
Mas é dentro dum sonho um outro sonho
Em que sonhados são os sonhadores
Também. Tu compreendes?
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 68):
Quanto mais fundamente penso, mais
Profundamente me descompreendo.
O saber é a inconsciência de ignorar.
Mesmo quem sabe muito nada sabe.
Quanto mais fundamente penso, sim,
Mais fundamente me sinto ignorar,
Mais fundamente sinto alguma coisa
Além do que profundamente penso.
Além-Deus, IV / A Queda, in "Poesia - 1902-1917" (Pessoa, 2006b, p. 358):
Tudo tem outro sentido, ó alma.
Mesmo o ter-um-sentido...
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 5):
Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria
São outra cousa que a noite e o vento -
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra cousa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 49):
Tudo transcende tudo;
Intimamente longe de si mesmo
E infinitamente, o universo
A si mesmo, existindo, se ilude.
Nos seixos ou pedregulhos, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 41):
Não sonho, não me prevejo,
Não sei de causa ou fim.
Guia-me só a razão, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 95):
Tivesse quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.
Este vem trôpego e cego, in "Poesia - 1918-1930" (Pessoa, 2007, p. 60):
O rio, sem que eu queira, continua.
Espelha-se, fora de eu ser eu, a lua
Nas águas do meu ser independentes...
Meus pensamentos, sóbrios ou doentes
Nunca saem p'ra fora do meu ser.
No barco ao pé da margem, ao mover
O remador os remos, fica tudo...
A noite é clara, o coração é mudo
E a palavra que eu vou dizer, e fora,
A ser dita, a noção na alma da hora,
Passa, como um murmúrio vão do vento...
E eu, só na noite com meu pensamento
Não me distingo do que me rodeia...
E então é só real a lua cheia...
Que espécie de homem sou, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 17):
É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. Meu nome, não importa, nem qualquer outro pormenor exterior meu próprio. Devo falar de meu caráter.
A constituição inteira de meu espírito é de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim; todas as coisas oscilam em torno de mim, e, com elas, uma incerteza para comigo mesmo. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo está cheio de significado. Todas as coisas são "desconhecidas", simbólicas do Desconhecido.
Alastor, 'spírito da solidão, in "Poesia - 1918-1930" (Pessoa, 2007, p. 27):
Não busquei realidade ou ilusão,
Só a sempre buscar abri os braços.
Que espécie de homem sou, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 18):
O caráter da minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definidos. Aflige-me a ideia de que se descubra uma solução para os mais altos e mais nobres problemas de ciência e filosofia: horroriza-me a ideia de que uma coisa qualquer possa ser determinada por Deus ou pelo mundo. Enlouquece-me a ideia de que as coisas mais momentosas possam realizar-se, de que os homens pudessem todos ser felizes um dia, de que se encontrasse uma solução para os males da sociedade, mas nas suas concepções.
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 9-10):
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 9):
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Que espécie de homem sou, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p.19):
Eu, o
homem que afirma que o hoje é um sonho, sou menos
do que uma coisa de hoje.
O dia 'splende, luminoso e vasto, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 96):
Desde que existo, vivo dividido
Entre três seres, em que iguais estou:
O meu ser, o meu ser que tenho sido
E o verdadeiro ser que nunca sou.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 121):
Todas as máscaras que a alma humana
Para si mesma usa, eu arranquei...
Não quero nada, nem palavras, nem verdade, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 103-104):
Não quero nada, nem palavras, nem verdade.
Umas e outras o que são?
Pedaços cortados da realidade,
Momentos de diástole do coração.
[...]
Nexo inútil entre o que sou e quem sou.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 9):
Não leio. Horas intérminas, perdido
De tudo, salvo de uma dolorosa
Consciência, vazia de mim próprio,
Como um frio numa noite intensa,
Em frente ao livro aberto / vivo e morro /...
Nada... E a impaciência fria e dolorosa
De ler p'ra não sonhar, e ter perdido
O sonho! Assim como um (...) engenho
Que, abandonado, em vão trabalha ainda,
Sem nexo, sem propósito, eu moo
E remoo a ilusão do pensamento...
E hora a hora na minha estéril alma
Mais fundo o abismo entre meu ser e mim
Se abre, e nesse (...) abismo não há nada...
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 10-12):
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta
ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 58):
O homem vive em inconsciência, nasce
E vive e morre inconscientemente
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 70):
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse Abismo o Universo
Com seu Tempo e seu Espaço é um astro e nesse
Abismo há outros universos, outras
Formas de Ser com outros Tempos. Espaços
E outras vidas diversas desta vida...
O espírito é antes estrela... O Deus pensado
É um sol... E há mais Deuses, mais espíritos
Doutras maneiras de Realidade...
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 13):
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 60):
Só uma coisa me apavora
A esta hora, a toda hora:
É que verei a morte frente a frente,
Inevitavelmente.
Ah, este horror, como poder dizer?
Não lhe poder fugir! Não pode-lo esquecer!
E nessa hora em que eu e a Morte
Nos encontrarmos
O que verei? o que saberei?
O que não verei? o que não saberei?
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 13-14):
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Este vem trôpego e cego, in "Poesia - 1918-1930" (Pessoa, 2007, p. 48):
Sinto perto o que está longe.
Na tarde vaga e vasta, in "Poesia - 1918-1930" (Pessoa, 2007, p. 32):
Mas eu guardo secreto e indiferente o vulto
Do meu régio futuro, o meu destino oculto
Aos olhos do Presente, o Futuro o escreveu
No Destino Essencial que fez meu ser ser eu.
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 14-15):
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por
baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Estes livros de versos juntos são, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 53-54):
Mas, verdadeiramente, quem lê versos
Lê só a própria alma
Ninguém vê senão a alma em que ermo habita
Tenho dores de cabeça, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 56):
As próprias almas são modas.
A vida é rimas e gente.
E acho que todo poeta, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 75):
E acho que todo poeta
Deve ter cara para isso.
Passo diante do espelho,
Sorrio a mim esse conselho:
Olha p'ra ti e não escrevas.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 26):
Tenho no sangue o enigma do universo.
Morreste. Veio a notícia, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 59):
Não acredito na morte.
A morte é a curva da estrada, in "Poesia - 1931-1935" e não datada (Pessoa, 2005, p. 108):
A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 15):
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Últimas Palavras, in "Poesia - 1902-1917" (Pessoa, 2006b, p. 110):
Nenhuma ideia em nós pode nascer
Alheia à realidade, inda que a esta
Onde nos cremos entes a viver
Pareça estranha.
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 15-16):
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 23):
Talvez que Deus não seja real e exista,
Talvez não seja Deus e exista, e seja
Como nós o pensamos Deus p'ra nós.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 23):
Por ser o ser que é absoluto ser!
Não haver para além do sempre além
Ou novas direções do infinito,
Número infinito de infinitos.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 24):
Por isso, Deus é eterno e infinito, e tudo,
Sim mesmo o tudo que é, Deus o transcende.
"Fausto - Tragédia Subjectiva: Fragmentos" (Pessoa, 1991, p. 71):
Deus a si próprio não se compreende,
Sua origem é mais divina que ele,
E ele não tem origem que as palavras
Possam fazer pensar...
Tabacaria, in "Quando fui outro" (Pessoa, 2006a, p. 16):
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.