ARTIGO
ESPECIAL
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2024.vol9.209
Os stilettos de Patty: um estudo de caso clínico sobre a intersecção entre identidade queer e idade adulta madura
Patty's stilettos: A clinical case study on the intersection of queer identity and mature adulthood
Los tacones de aguja de Patty: un estudio de caso clínico sobre la intersección entre la identidad queer y la edad adulta madura
Stefano CARPANI
Berlim, Alemanha.
RESUMO
O trabalho tem como objetivo apresentar o caso clínico de Patty cuja imaturidade está relacionada com o fato de ainda não ter nascido, vivendo em estado embrionário, não separada de sua mãe e subjugada ao complexo feminino, revelando um vínculo secreto que é conscientemente expresso no uso de esmalte e salto alto, e inconscientemente expresso através do sonho inicial, com Isis, símbolo da integração que permite a libertação. Para isso evoca as lições dos sociólogos Beck e Bauman, da psicanalista junguiana Kulkarni e outros. Retoma a teoria junguiana sobre a homossexualidade, a natureza não patológica da homoafetividade, registra que nada é mais obstrutivo ao desenvolvimento do que a persistência em um estado inconsciente. Propõe que a ligação entre a psique e o impacto influenciam-se reciprocamente, explicita as várias visões de individuação, enfatiza o quesito da libertação no processo de individuação.
Descritores: Complexo, homossexualidade, individuação (psicologia).
ABSTRACT
This work aims to present the clinical case of Patty, whose immaturity is related to not having been born yet; she lives in an embryonic state, not separated from the mother, subjugated to the feminine complex and reveals a secret bond that is expressed, consciously, through the use of nail polish and high-heeled shoes and, unconsciously, through the initial dream with Isis, symbol of integration that allows liberation. To do this, we evoke principles of the sociologists Beck and Bauman and the Jungian psychoanalyst Kulkarni, among others, we return to the Jungian theory on homosexuality, the non-pathological nature of homoaffectiveness, and we record that nothing is more obstructive to development than persistence in a unconscious state. Likewise, we propose that the link between the psyche and the impact, which influence one another, reveals the various visions of individuation and emphasises the question of liberation in the process of individuation.
Descriptors: Complex, homosexuality, individuation (psychology).
RESUMEN
Este trabajo tiene por objetivo presentar el caso clínico de Patty, cuya inmadurez se relaciona con el hecho de no haber nacido aún; vive en estado embrionario, no separada de la madre, subyugada al complejo femenino y revela un vínculo secreto que se expresa, conscientemente, por medio del uso de laca de uñas y zapatos de tacón e, inconscientemente, por medio del sueño inicial con Isis, símbolo de la integración que permite la liberación. Para ello, evocamos principios de los sociólogos Beck y Bauman y de la psicoanalista junguiana Kulkarni, entre otros, retomamos la teoría junguiana sobre la homosexualidad, la naturaleza no patológica de la homoafectividad y registramos que nada es más obstructivo al desarrollo que la persistencia en un estado inconsciente. Asimismo, planteamos que el enlace entre la psique y el impacto, que se influencian recíprocamente, pone de manifiesto las varias visiones de la individuación y enfatiza la cuestión de la liberación en el proceso de individuación.
Descriptores: Complejo, homosexuality, individuation (psychology).
Introdução
O que esperar deste artigo? Falaremos sobre saltos agulha: os saltos agulha de Patti. Os stilettos de Patti. E faremos isso olhando para as reflexões do sociólogo alemão Ulrich Beck, do psiquiatra e psicanalista suíço C. G. Jung, e graças à abordagem proposta pelos estudos psicossociais. Para concluir e para esclarecer o que se propõe, utilizarei também um caso clínico.
Vamos começar com os saltos agulha de Patti. A primeira Patti sobre a qual quero falar com você. Quem é Patti? Ou melhor, quem era Patti? Patti não era Patti. Na verdade, o nome verdadeiro de Patti não era Patti. Patti, em termos de identidade, era Marino. Tanto Patti quanto Marino eram os melhores amigos de minha mãe, nascidos em 1950 e criados em uma pequena cidade a oeste de Milão.
Patti (nascida Marino) nasceu com corpo masculino e logo percebeu que não tinha interesse em jogar futebol, nem brincar com soldadinhos de chumbo e em jogos de guerra. Patti, nascida Marino, preferia passar as tardes brincando com bonecas, principalmente com as da minha mãe. Depois, alguns anos depois, na pré-adolescência, ela preferia passar as tardes experimentando os esmaltes da minha mãe e, secretamente, até os da mãe dela. Repito: e secretamente até da mãe dela.
Porque naqueles anos era preciso esconder se, por exemplo:
■ Uma mulher se via amando outra mulher
■ Um homem se via amando outro homem
■ Uma pessoa reconhecia que sua corporeidade não correspondia à sua identidade de gênero e, portanto, nutria fantasias relacionadas com a transição.
Neste sentido, é marcante o caso de Pier Pasolini (cujo centenário comemoramos este ano). Assim como sua necessidade (instinto de defesa? vergonha? o que mais?) de amar à noite (e assim perder a vida?). Longe de todos.
Sim, porque naqueles anos era preciso esconder se, por exemplo (como enfatiza a psicanalista junguiana Claudette Kulkarni (1997, p. 22)):
uma mulher que se vê amando outra mulher frequentemente responde a um profundo instinto psicológico de agir, apesar do conflito interno ou da oposição externa, e que este é um movimento significativo a serviço da individuação pessoal e coletiva e um movimento no sentido da compreensão de si mesmo.
Sim, porque naqueles anos era preciso esconder se considerarmos que foi apenas em 1973 que a Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association [APA], 1973a) retirou o diagnóstico de "homossexualidade" do seu Manual Diagnóstico e Estatístico (Diagnostic and Statistical Manual - DSM] (APA, 1973b).
Mas voltemos à Patti, nascida Marino. Por que estou falando sobre Patti e sua história, que chegou até mim (e, portanto, até você) através de minha mãe? Falo da Patti porque a conheci no início dos anos oitenta, quando tinha 5 ou 6 anos. E lembro-me claramente do nosso encontro. Lembro-me de uma mulher com coque e alguns pelos faciais (porque sua transição, por diversos motivos - principalmente econômicos - foi apenas parcial). Lembro-me de seu calor e gentileza.
Só depois da morte dela - e quando eu já era adolescente - é que entendi que Patti não nasceu mulher e que seu nome verdadeiro era Marino. E então resolvi fazer algumas perguntas para minha mãe, e ela me contou muito sobre sua vida e respondeu quase todas as minhas perguntas, exceto uma. Ela não soube responder quando perguntei se Patti havia morrido em paz.
Queria trazer para vocês a história de Patti para homenageá-la. E aplaudir sua coragem. A coragem de não se esconder! E porque - na minha opinião - ela não tinha plena permissão - como diz Claudette Kulkarni (1997) - de amar quem (por natureza) ela queria amar. Ela não tinha permissão para amar outra pessoa (de qualquer gênero) e, portanto, responder a um profundo instinto psicológico de agir, apesar de conflito interno ou oposição externa.
Antes de falar de outra Patti, neste caso, um homem heterossexual que acaba sendo queer, gostaria de ver o que a sociologia tem teorizado desde os anos 1990.
Zygmunt Bauman (2000) teorizou a sociedade líquida. Giddens (1991) enfatizou a auto- reflexividade. Beck (2002) propôs que nos tornamos homo optionis. Mas nenhum dos três conseguiu descrever o sofrimento de Patti e, antes mesmo dela, a de Marino.
Bauman é bem conhecido por sua teoria da liquidez. Em "Liquid Modernity" (2000), Bauman enfatiza que o que une todas as formas de vida moderna (p. 82) "é precisamente a sua fragilidade, transitoriedade, vulnerabilidade e inclinação para mudança constante". Assim, "'ser moderno" significa modernizar - compulsivamente, obsessivamente [...] sempre se tornando, evitando a completude, permanecendo indefinido". Para Bauman, a pessoa moderna nunca chega à conclusão, mas está envolvida em uma série interminável de novos começos. Em "Modernity and Self-Identity" (1991), Giddens argumenta que as pessoas se perguntam "O que fazer? Como agir? Quem ser?" (p. 70) Estas são questões centrais para todos aqueles que vivem nas circunstâncias da modernidade tardia - e às quais, em um nível ou outro, todos nós respondemos, tanto discursivamente como através do comportamento social quotidiano. Ele acrescenta então (1991, p. 54) que "a identidade de uma pessoa não se encontra no comportamento, nem - por mais importante que isso seja - nas reações dos outros, mas na capacidade de manter uma narrativa específica em andamento. A biografia do indivíduo, para manter uma interação regular com outros no mundo cotidiano, não pode ser inteiramente fictícia. Deve continuamente integrar eventos que ocorrem no mundo externo e classificá-los na "história" contínua sobre o eu". Segundo Beck e Beck-Gernsheim (2002, p. 13), "a individualização tornou-se a fonte da estrutura social da própria segunda modernidade. A individualização é um conceito que descreve uma transformação sociológica estrutural das instituições sociais e da relação do indivíduo com a sociedade." Beck e Beck-Gernsheim (2002, p.165) argumentam que vivemos "em uma era em que a ordem social do Estado-nação, da classe, da etnia/raça e da família tradicional está em declínio", em uma era onde "a ética da autorrealização e da realização individual é a corrente mais poderosa da sociedade moderna. O ser humano que escolhe, decide, molda e aspira ser o autor de sua própria vida, o criador de uma identidade individual, é o personagem central do nosso tempo." Em resumo, Beck e Beck-Gernsheim (2002) argumenta que individualização significa que "o ser humano se torna (na radicalização do significado de Sartre) uma escolha entre possibilidades, homo optionis. Vida, morte, gênero, corporeidade, identidade, religião, casamento, paternidade, laços sociais - tudo está se tornando decidível até os detalhes; uma vez fragmentado em opções, tudo deve ser decidido" (p. 5). Esta, afirmam Beck e Beck- Gernsheim (2002), é uma vida experimental, condenada à atividade, onde tudo é uma questão de autorresponsabilidade. Não é por acaso que Mauro Magatti (2018) escreveu recentemente no Corriere della Sera intitulado Non può esserci libertà senza responsabilità (não há liberdade sem responsabilidade) e que Erich Fromm (1941), a este respeito, enfatizou em "Escape from Freedom" (1941, p. 8) que "o homem moderno ainda está ansioso e tentado a dar sua liberdade a ditadores de todos os tipos." Mães, pais, cônjuges, líderes, políticos e assim por diante. Fromm (1941) também observou que "Se a humanidade não conseguir viver com os perigos e as responsabilidades inerentes à liberdade, provavelmente se voltará para o autoritarismo" (p. 6).
Usando as palavras de Magatti e Chiara Giaccardi (2014), se na sociedade ocidental já nos libertamos, que outra libertação deveríamos então procurar? Por que os homens ainda não são livres (se eles se libertaram das correntes políticas, econômicas e espirituais que os prendiam (Fromm, 1941))? Por que as taxas de ansiedade, depressão e suicídio estão aumentando? Mary Watkins (2003, p.2) observou que é a capacidade de diálogo, e não de razão, que distingue os seres humanos dos outros seres vivos. Este diálogo ocorre consigo mesmo, com os outros e com Deus (Niebuhr, 1955, p. 73) e a capacidade de diálogo é uma condição prévia necessária para a libertação humana, especialmente de limitações rígidas, estereotipadas e unidimensionais." Nesta visão, a libertação é baseada em um paradigma de interdependência onde a libertação de um está intimamente ligada à libertação do outro (2003, p. 2). Neste sentido, o outro pode incluir entidades econômicas, políticas, socioculturais, espirituais e psicológicas (2003, p. 2). Assim, a libertação - na minha opinião - é precisamente o que os estudos psicossociais procuram investigar.
Jung e a homossexualidade
Jung (1916/1967, para. 167) escreve sobre um homem que o contatou para curar sua homossexualidade. Este homem tinha pouco mais de vinte anos e uma aparência ainda completamente infantil. Há até um toque de mocidade em sua aparência e em sua forma de se expressar. [...] É inteligente, com marcados interesses intelectuais e estéticos [...] seus sentimentos são ternos e suaves, dados aos entusiasmos típicos da puberdade. Não há nenhum vestígio de insensibilidade adolescente. Jung chega ao diagnóstico de que, sem dúvida, ele é muito jovem para sua idade, um caso claro de atraso no desenvolvimento. O paciente, dizendo a Jung que queria ser curado de sua homossexualidade (1916/1967, para. 169), acrescentou, dando uma associação ao seu sonho inicial, "naturalmente, lembrei-me ontem que iria a você para uma sessão e que eu estava em busca de uma cura" (1916/1967, para. 168). A este respeito, Jung escreve que o paciente simplesmente veio ao médico para ser curado daquela condição desagradável, sua homossexualidade, que é tudo, menos poética. Para Jung, porém, o que não é poético é ir ao médico para se curar, e não a homossexualidade do jovem.
Aqui Jung não sugere curar o paciente de sua homossexualidade; ele quer que o paciente se desenvolva e amadureça de acordo com sua própria natureza. Neste caso, tornar-se adulto significa tornar-se uma pessoa de qualquer gênero, responsável e preparada para enfrentar a vida/sociedade. Preparado significa que este homem - tendo esclarecido a sua natureza, ou seja, compreendendo quem ele é e o que quer - deve viver a sua vida sem expectativas e esperanças e cumprir o seu propósito numa sociedade que não aceita a homossexualidade e a considera uma doença a ser curada. Assim, enquanto o paciente bate à porta de Jung para ser curado, Jung o ajuda a confrontar e esclarecer sua natureza e assim se transformar em uma pessoa madura. Jung ajuda o paciente a examinar o impacto de sua natureza (a homossexualidade) em sua psique e em seu contexto social imediato, o que o levou a buscar a cura. Jung (1916/1917) acrescenta: o paciente não tinha, é claro, nada parecido com uma compreensão adequada do tratamento que estava prestes a ser submetido. Este é frequentemente o caso. Os pacientes iniciam a terapia por causa da dor interior e podem ser capazes de articular ideias ou razões, mas a verdadeira razão muitas vezes não é evidente para eles quando entram pela primeira vez na sala do analista. Somente através da análise ficará claro porque eles vieram.
Para Jung, o sonho inicial dá ao analista a oportunidade de compreender o seu real problema e, neste caso, não é a homossexualidade do paciente; em vez disso, sua falta de separação da mãe e seu complexo materno causaram seu desenvolvimento interrompido. De fato, o paciente confirma a sua proximidade com a mãe, como acontece com muitos homens. Jung acrescenta (1916/1967, para. 171) que com isso não devemos entender um relacionamento consciente particularmente bom ou intenso, mas algo na natureza de um vínculo secreto e subterrâneo que se expressa conscientemente, talvez, apenas no desenvolvimento atrasado do caráter, ou seja, em relativo infantilismo. É importante enfatizar aqui que Jung não está falando de homossexualidade em geral; ele está falando apenas desse indivíduo, que lhe parecia imaturo por ser muito próximo de sua mãe e/ou de seu complexo materno. Jung (1916/1967, para. 171) acrescenta que a personalidade em desenvolvimento naturalmente se afasta desse vínculo infantil inconsciente; pois nada é mais obstrutivo ao desenvolvimento do que a persistência num estado inconsciente.
Proponho que a ligação entre a psique e o impacto da sociedade, e vice-versa, é imensa. Graças ao exemplo que Jung nos traz, primeiro reconhecemos que o paciente é muito próximo da mãe e, portanto, é imaturo e não está separado. Este é o aspecto psíquico. O impacto social no paciente é dado pela homossexualidade do paciente na sociedade suíça do século XX, onde a homossexualidade não era aceita. Assim, o paciente, bastante adaptado (talvez demasiado adaptado e, portanto, unilateral) à realidade social do seu tempo, procura terapia para se curar disso, em vez de se curar do seu verdadeiro problema: a sua imaturidade e o fato de que ele ainda não nasceu. Assim, como enfatiza Jung, o paciente vive em estado embrionário (não separado de sua mãe e do complexo materno) e deve se separar. Lembre-se disso quando eu lhe apresentar o sonho de Patti.
Qual é, então, o processo de individuação, segundo Jung? É a identificação com a totalidade da personalidade, com o self (Jung, 1990, p. 138) e um processo "de diferenciação, que visa o desenvolvimento da personalidade individual" (1921/1971, para. 757). Assim, a individuação é um momento em que o indivíduo é "um ponto de intersecção ou uma linha de separação, nem consciente nem inconsciente, mas um pouco de ambos" (1916/1967, para. 507). Além disso, "individuação é o processo pelo qual o paciente se torna o que realmente é". (1946/1966, para. 171).
Seguindo Verena Kast (1993), individuar significa tornar-se (a pessoa que você nunca foi):
■ Tornar-se independente dos pais e dos complexos parentais;
■ Tornar-se mais competente nos relacionamentos;
■ Tornar-se mais "completo" (espiritual).
Seguindo James Hillman (1996), individuar significa:
■ Descender
■ Fazer as pazes com sua família biológica
■ Encontrar um lugar que você possa chamar de lar
■ Devolver algo à sociedade
Do meu ponto de vista, além do que enfatizam Kast e Hillman, a individuação também envolve:
■ Pedir perdão (sem ser perdoado)
■ Recuperar a integridade
Além disso, acredito firmemente que o psicanalista não só ajuda os pacientes a encontrarem seu próprio centro (como sublinha Verena Kast (1993)), mas, como diz Mary Watkins (2003), acompanha os pacientes no sentido da sua própria libertação (e é, portanto, um processo de libertação).
De acordo com Jung (1916/1967, para. 501), o propósito da análise é dar ao paciente "conhecimento adequado dos métodos pelos quais ele pode manter contato com o inconsciente, e ter adquirido compreensão psicológica suficiente para discernir a direção de sua linha vital no momento". Para Jung, análise significa transformação (alquímica), desenvolvimento e diferenciação do coletivo e, assim, tornar-se você mesmo. Análise como renascimento. E isso não pode acontecer antes da meia-idade (não pode acontecer antes dos 35/40 anos) porque o indivíduo deve entender o sentido de sua mortalidade. Lembremos disso também ao examinar o caso clínico de Patti.
Patty: esmalte e saltos altos
Patti, uma carpinteira canadense que vive em Berlim (heterossexual definida como queer), é sociologicamente individualizada (Beck) e bem adaptada à sociedade líquida (Bauman). Por um lado, ela desafiou as certezas da vida moderna, ou seja, a ordem social do Estado-nação, da classe, do gênero, da etnia e da estrutura familiar tradicional, e lutou pela autorrealização; simultaneamente, porém, mesmo inconscientemente, ela se sentiu presa no impasse descrito por Bauman. Durante nossa primeira sessão, Patti descreveu uma sensação de vazio, de estagnação e de que seus relacionamentos românticos não foram duradouros.
Desde o primeiro encontro - onde ela apareceu com macacão de trabalho, esmalte perolado e sapatos femininos com salto - ficou claro que ela tinha consciência de ter um problema e buscava uma solução. Mas qual era o problema?
Para Jung, o sonho inicial dá ao analista a oportunidade de compreender o verdadeiro problema. Vejamos seu sonho inicial juntos.:
"Sonhei que estava em um bar/lanchonete com três amigos. Estamos em um ambiente público. Portanto, a questão é coletiva. Eu estava no bar pedindo um sanduíche. O que é um sanduíche? Comida rápida. Não é uma refeição nutritiva. E, aliás, Patti comenta que nunca recebeu seu sanduíche porque se distraiu com a chegada de Ísis. Uma mulher! Quando minha amiga Ísis (que leva o nome da deusa egípcia, não da organização) chegou e me abraçou, percebi, naquele momento, que estava atraída por ela, e dei-lhe um abraço muito sensual."
Aqui, dois aspectos são importantes:
1. O nome da amiga é uma homenagem à deusa Ísis.
2. Patti sente atração sexual por ela, enfatizando assim a questão do eros (e sua impossibilidade) e da sexualização do relacionamento.
Quem é Ísis, na perspectiva da mitologia grega? Ela é a Deusa da maternidade, fertilidade, vida e magia. Ísis protege mulheres e crianças, cura os enfermos, e seu comportamento maternal era invocado em feitiços de cura. Ísis, a esposa de Osíris - uma vez que Seth (com ciúmes de seu irmão Osíris) traçou um plano para matá-lo - não conseguiu esquecê-lo. Ela procurou por toda parte até encontrá-lo em Biblos e trazer seu corpo de volta ao Egito. Seth descobriu tudo e despedaçou seu irmão (espalhando-o por toda parte). Então Ísis conseguiu encontrar e reunir as partes do corpo do marido morto (apenas seu pênis faltava). Usando seus poderes mágicos, Ísis conseguiu tornar Osíris inteiro, vinculado, nem vivo nem morto. Então, proponho, Ísis é o símbolo da integração. Ela é a Alma que permite a integração e a transformação: portanto, a libertação!
O que Patti precisa integrar para compensar o vazio que relatou na primeira sessão?
Ela me disse que estudou em "Chatt". Ela disse que era o tipo de escola onde todos os meninos sempre usavam roupas laranja e brancas e tinham cabelos penteados com uma parte para cima. Pergunto o que ela quis dizer com cabelo penteado para cima, embora eu já soubesse, e ela aponta, furtivamente, para uma pessoa sentada em frente ao balcão do bar. Aí Isis vai para trás do balcão e, junto com todos os garçons, aponta para o homem. Patti diz que não se sente confortável em um ambiente uniforme e prefere um ambiente queer. Isso precisa ser ouvido e respeitado. Mas há algo mais para ela usar sapatos de salto alto e esmalte? Aproveito para perguntar a ela o que significa queer. Ela responde: experimentação. Depois acrescenta: não concordo com a imposição binária da cultura. Se gosto de um par de sapatos femininos, eu os uso.
Ísis estava aconchegada no sofá com roupas e óculos completamente diferentes que ela só usava à noite; ela parecia muito cansada. Passamos para um ambiente privado: do público (bar) para o privado (casa). Peço a Patti que me conte mais sobre Ísis, e ela me conta sobre uma mulher muito diferente daquela representada no sonho. Ela diz que Ísis é muito sociável (organizadora de festas fantásticas), tinha um relacionamento aberto com o namorado e levava uma vida bastante libertina. Em seguida, ela acrescenta que recentemente deixou o namorado e agora está com uma mulher e é monogâmica.
O que os óculos de Ísis ajudam a ver? A transição do contexto público para o privado.
Tentei tirar uma foto achando ela fofa, e ela timidamente colocou as mãos no rosto e depois subitamente me disse para não tirar foto quando ela estava tão feia. Então guardei o telefone e me sentei no colo dela.
Apreciação, vergonha, inferioridade e raiva são as emoções que se referem a esta parte do sonho. Então Patti guarda o telefone (símbolo das relações mediadas) e se senta no colo (símbolo da relação com a mãe, da proteção e (re)geração) de Ísis.
Pergunto a ele o que lhe vem à cabeça, especificamente sobre esta última imagem: o colo. Ele fica em silêncio por um longo tempo (o silêncio prolongado - como nos explicou Jung - é um indicador da ativação de um complexo inconsciente), e então faz uma piada que não tem nada a ver com o que estamos falando e que soa muito como um exorcismo. Como se quisesse se defender!
Então, o que me vem à mente é o que ele me disse durante a primeira sessão: 'Não tive experiências traumáticas na minha vida' - e então quando ele me disse, algumas sessões depois, - "Minha mãe morreu de câncer uterino quando eu tinha dois anos de idade."
Acho que colo, em inglês, significa joelhos, mas também ventre. Ventre materno. O ventre da mãe da qual ele não se lembra. Depois, seguindo minha intuição, pergunto a ele o que vem à cabeça quando pensa em unhas pintadas. Ele responde, sem piscar, beleza. Depois de alguns segundos, pergunto o porquê da escolha da cor pérola (como esmalte). Ele me conta, ainda sem piscar (como se não fosse ele quem estivesse falando), que era a cor preferida de sua mãe.
Ao contrário da paciente de Jung, Patti não confirma sua proximidade com a mãe (em palavras), mas o faz com um sonho, com esmalte e salto agulha. Confirmando assim a sua falta de separação da mãe e do seu complexo materno.
Patti - no sonho que analisamos e através da amiga Ísis (que atua como símbolo da integração e da Deusa da maternidade) tem a necessidade de retornar ao útero. O retorno ao útero é necessário e, talvez, permitirá seu renascimento. Regenerar como gerar a si mesmo! Antes disso, porém, é preciso passar pela necessidade de integração: integrar a mãe que ela nunca realmente conheceu. Só assim Patti poderá se separar dela e nascer verdadeiramente. Isso só será possível quando ela conseguir não sucumbir à tentação da sublimação sexual (atração sexual por Ísis) e aos desvios autodestrutivos (vale lembrar o alcoolismo de Patti/Marino) provocados pela referência a Ísis como a Deusa, mas como a organização terrorista.
O vazio a que Patti se referiu durante a nossa primeira sessão é, portanto, necessário. Desagradável, mas necessário. O vazio permite-nos compreender que a sua imaturidade está relacionada com o fato de ainda não ter nascido, com o fato de Patti viver em estado embrionário (não separada de sua mãe e subjugada ao complexo materno) e ter de se separar. Patti é como Osíris, uma múmia sem pênis: nem viva nem morta.
Portanto, Patti deve se diferenciar e ter como objetivo principal o desenvolvimento de sua personalidade individual. Até o momento, Patti não é diferenciada, mas graças ao sonho que analisamos podemos reconhecer a indiferenciação psicológica e - do ponto de vista estético - a integração pseudo-maternal, sancionada pelo uso de esmalte cor de pérola e sapatos de salto agulha.
Aqui, como aconteceu com a paciente de Jung, não se trata de curar sua homossexualidade ou estranheza e, portanto, a necessidade de conformidade com a sociedade (como acreditava a Escola de Frankfurt), mas de revelar um vínculo secreto e subterrâneo que é conscientemente expresso no uso de esmalte e salto alto e inconscientemente expresso através deste sonho.
Referências
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Recebido: 30 abr
2024
Aprovado para publicação: 19 jul 2024
Conflito de
interesses: O autor declara não haver nenhum ineresse professional
ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a
este manuscrito.
Mini-curriculum: Stefano Carpani - Ph.D., membro e docente do C.G. Jung
Institute Zürich e pós-graduação pela Universidade
de Cambridge) trabalhando em consultório particular em Berlim (DE) e
online. Entre seus livros editados: Breakfast at Küsnacht (Chiron, 2020
- indicado para Melhor Livro Editado pelo IAJS); Antologia de Clássicos
Contemporâneos em Psicologia Analítica: Os Novos Ancestrais (Routledge,
2022 - indicado para Melhor Livro Editado GRADIVA). Seu próximo livro
é intitulado Absolute Freedom (Routledge, 2024). E-mail: stefanocarpani@gmail.com