ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2024.vol09.202

 

Ethos capitalista: a mercantilização do processo de individuação

 

Capitalist Ethos: the commoditization of the individuation process

 

Espíritu capitalista: la mercantilización del proceso de individuación

 

 

Aline M. S. DE COSTER

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

A difusão do comportamento humano orientado pelo ideário capitalista, em colaboração com normatizações de uma psicologia apolítica como ferramenta ideológica, tem nos formatado como mercadorias de uma economia individualista. O sistema econômico capitalista institui-se mantendo as segregações socioeconômicas. Neste artigo de reflexão, analisamos as interlocuções entre a psicologia analítica junguiana e as formas pelas quais o capitalismo perpetua seu ethos, ao comercializar diversidade racial como mercadoria. No cenário estadunidense, a prevalência do pensamento da supremacia branca na cultura resulta na dinâmica estrutural da branquitude, que transcende a aparência física e inclui mecanismos para manter a propriedade de privilégios raciais simbólicos e materiais, com exclusão dos não brancos. No cenário brasileiro, aparatos ideológicos e forças de repressão permanecem sob controle de certas famílias, colonizando mentes e territórios. Hooks discute o impacto da supremacia branca nas pessoas pretas e a importância do amor e da educação crítica na resistência à branquitude da vida. De que formas a difusão da lógica de mercado, aliada a uma psicologia apolítica, retroalimenta a economia individualista em que a diversidade é uma commodity? Apesar de Jung apontar como processo de individuação o duplo movimento de remoção de projeções e integração de conteúdos psíquicos inconscientes, a linguagem da psicologia analítica invisibiliza suas bases em fundamentos culturais africanistas e indígenas. Brewster nos alerta para as qualificações negativas associadas à polaridade do escuro, como gancho da sombra de pessoas brancas, ressaltando os mecanismos de alienação de si mesmo. Celeste evidencia a necessidade da reconexão com nossas linhagens no processo de cura do complexo colonial. Concluímos que a dissolução dos sintomas transgeracionais do legado racista demanda que a sociedade empenhe-se em um esforço consciente para superar as políticas epistemicidas aos não brancos.

Descritores: sistema político econômico, relações étnicas e raciais, individuação (psicologia).


ABSTRACT

The spread of human behavior guided by capitalist ideology, in collaboration with norms of apolitical psychology as an ideological instrument, has shaped us as commodities of an individualist economy. The capitalist economic system establishes itself by maintaining socioeconomic segregation. In this reflection, we analyze the dialogues between Jungian analytic psychology and how capitalism perpetuates its ethos by commercializing racial diversity as a commodity. In the American scenario, the prevalence of thoughts about white supremacy in culture results in the structural dynamics of whiteness, which transcends the physical appearance and includes mechanisms to maintain ownership of symbolic and material racial privileges to the exclusion of non-whites. In the Brazilian scenario, ideological apparatuses and repressive forces remain under the control of certain families, colonizing minds and territories. Hooks debates the impact of white supremacy on black people and the importance of love and critical education in the resistance to the whiteness of life. In what ways does the dissemination of market logic, combined with apolitical psychology, feed back into the individualist economy in which diversity is a commodity? Although Jung describes the individuation process as the double movement of removal of projections and the integration of unconscious psychological contents, analytic psychology language makes its base invisible within Africanist and Indigenous bases. Brewster alerts us to the negative qualifications associated with the polarity of the dark as support for the shadow of white people, highlighting the mechanisms of self-alienation. Celeste makes evident the need for reconnection with our lineages in the process of healing of the colonial complex. We conclude that the dissolution of transgenerational symptoms of the racist legacy demands that society undertake a conscious effort to overcome the epistemicidal policies toward the non-white.

Descriptors: political economic system, racial and ethnic relations, individuation (psychology).


RESUMEN

La diseminación del comportamiento humano orientado por la ideología capitalista, en conjunto con normas de una psicología apolítica como herramienta ideológica, nos ha moldeado como mercaderías de una economía individualista. El sistema económico capitalista se establece manteniendo las segregaciones socioeconómicas. En este trabajo de reflexión, analizamos las interlocuciones entre la psicología analítica Junguiana y las maneras por las que el capitalismo perpetua su ethos, al comercializar diversidad racial como mercadería. En el escenario estadunidense, la prevalencia del pensamiento de la supremacía blanca en la cultura resulta en la dinámica estructural de la blancura que transciende la apariencia física e incluye mecanismos para mantener la propiedad de privilegios raciales simbólicos y materiales, con la exclusión de los no blancos. En el escenario brasileño, aparatos ideológicos y fuerzas de represión permanecen bajo el control de ciertas familias, colonizando mentes y territorios. Hooks discute el impacto de la supremacía blanca en las personas negras y la importancia del amor y de la educación crítica en la resistencia a la blancura de la vida. ¿De qué maneras la diseminación de la lógica de mercado, aliada a una psicología apolítica, retroalimenta la economía individualista en que la diversidad es vista como commodity? A pesar de que Jung señala como proceso de individuación el duplo movimiento de remoción de proyecciones e integración de contenidos psíquicos inconscientes, el lenguaje de la psicología analítica invisibiliza sus bases en bases culturales africanistas e indígenas. Brewster nos alerta para las cualificaciones negativas asociadas a la polaridad de lo oscuro, como apoyo de la sombra de personas blancas, resaltando los mecanismos de autoalienación. Celeste evidencia la necesidad de la reconexión con nuestros linajes en el proceso de cura del complejo colonial. Concluimos que la disolución de los síntomas transgeneracionales del legado racista demanda que la sociedad se comprometa a hacer un esfuerzo consciente para superar las políticas epistemicidas hacia los no blancos.

Descriptores: sistema político-económicos, relaciones raciales y étnicas, individuación (psicología).


 

 

Introdução

A racionalidade neoliberal vem conformando sujeitos, cuja subjetividade submete-se à mercantilização das relações sociais, o ser humano como produto e as relações como processos de mercantilização. A economia tem sido o método instaurador da vigilância de si mesmo, e a psicologia, o mecanismo de regulação de desempenho e da racionalização de desejos.

Nos modos de existência contemporâneos, os sujeitos têm sido definidos cada vez mais por meio da universalização de saberes e submetidos aos imperativos da globalização - a objetificação dos modos de existência, a dissociação entre corpo e sujeito e a associação entre o sujeito e os objetos - pelos quais o planeta é extirpado, reduzido e comercializado.

O tema da diversidade tornou-se uma espécie de commodity agregadora de valor às mais diversas mercadorias circulantes no sistema capitalista. A propagação do comportamento humano pautado pela lógica de mercado, com colaboração de uma psicologia apolítica como ferramenta ideológica, vem nos conduzindo para uma economia individualista cujos ativos são produtos e serviços vendáveis: as commodities. É uma dinâmica na qual o ambiente em que crescemos refreia a verdade de quem realmente somos, impondo "acomodar um eu branco" (Adams, 1996, p. 139, citado por Brewster, 2017, p. 111), a dissociação da identidade e as mutilações da alma, para atender aos imperativos da adaptação social.

No fluxo dessa mundialização, os discursos científicos passaram a se propagar como regime de verdade: a redefinição e a conformação do homem como um animal produtivo e consumidor. Ao passo que a busca por resoluções pragmáticas não considera as singularidades dos aspectos psíquicos envolvidos, emerge a reflexão: que sujeitos temos nos tornados, reproduzindo subjetividades sem nos importarmos com o mundo ao nosso redor e em nós? Será possível ampliar o alcance das reflexões, fora do mainstream, em uma realidade como a nossa, se ignorarmos a lógica do mercado? Ou, por menor que seja a ressonância esperada, estaremos sempre sujeitos aos mecanismos do capitalismo, que tende a empacotar discursos para o consumo e os apagamentos via maquiagem racial?

Nossa clínica precisa do aprofundamento que sai do senso comum onde está o discurso do poder hegemônico. Trabalhar com a psique, portanto trabalhar com a alma, é sair da imaginação do poder e entrar na imaginação da alma (Valente, 2021, p. 225).

O processo analítico, genuinamente junguiano, prima pelo método dialético tendo como princípio ordenador o processo de individuação. Vera Valente (2021), no ensaio "Pólis, psique e política: caminhos do poder e o adoecimento da alma", enfatiza a necessidade de dissecarmos o poder em pequenos pedaços, de modo a desnudar seus argumentos e justificativas.

É imperativo nos ocuparmos do exercício de inquirir aspectos do contexto biológico, social e político que conformam subjetividades universalizadas. Penso que, ao nos propormos o exercício clínico do método junguiano, deveríamos incluir reflexões acerca do ethos capitalista, desnaturalizar o modo de existência (neo) liberal, com a finalidade de não perpetuarmos universalidades com status de supostas neutralidades.

[...] a desigualdade social nunca é fruto meramente do acaso ou da ignorância. Mas fruto de políticas públicas ou privadas que refletiram durante séculos o olhar preconceituoso e intolerante dos poderosos e de todos aqueles que se identificam ou empatizam com a maioria da população (Valente, 2021, p. 242).

O poder do pensamento liberal é naturalizado por meio da disciplina, valores, sentimentos, repressões, padrões estéticos, dentre outros aspectos que cotidianamente firmam-se como indicadores de sanidade ou de patologia. Servindo acriticamente a velhos programas, continuamos a fazer escolhas autodestrutivas e limitantes na vida. É a percepção desse "[...] desajuste que permite o movimento do aprofundamento, o olhar psicológico, o fazer alma, tanto na clínica quanto na sociedade" (Valente, 2021, p. 225).

Carl Gustav Jung (1910-1942/2008), ao refletir sobre o desenvolvimento da personalidade humana, destacou que a finalidade desse processo é a individuação. Metaforicamente afirma que "[á]rvore nenhuma, sabemos, cresce em direção ao céu, se suas raízes também não se estenderem até o inferno (Jung, 1946-48/2008, para. 78, p. 66). A vida está cheia de contradições e o não vivido exerce influência sobre o que vivemos.

A tarefa da individuação implica o duplo movimento (luz e sombra promovendo a percepção da totalidade) de retirada de projeções e de integração de conteúdos psíquicos inconscientes, com a finalidade de sintonizarmos cada vez mais com a personalidade global - "[...] o bem e o mal não derivam um do outro, como duas metades coexistentes de um julgamento moral, mas existem desde sempre de forma autônoma" (Jung, 1946-1948/2008, para. 84, p. 70).

Ao formular a teoria dos complexos, Jung (1904-1908/2011) afirmou que os complexos são um conglomerado de ideias e imagens psíquicas, carregadas de afeto, que se agrupam em torno de um núcleo arquetípico. É como se uma parte dos complexos se prendessem ao Eu e a outra fosse projetada pelo indivíduo em sua relação com o mundo exterior: o outro - estrangeiro, inimigo etc. Quando deflagrada a irrupção do complexo, a razão sai de cena, o Eu é demovido do comando e o complexo ativado assume o controle da personalidade com tonalidade própria, perturbando nossa memória e alterando a consciência.

Ocorre uma edição da percepção da realidade, contrariando os ideais do Eu. Os complexos determinam o rumo de nossas vidas tal como a realidade fluida e atuam como o corpo: têm fisiologia, linguagem e tom de voz autônomos.

[...] seu trabalho baseia-se em arquétipos que são definidos como "impressões primárias" na psique humana - tendências e dinâmicas inconscientes que são universais. Ele os contrasta com os "complexos psicológicos" que se formam na dinâmica emocional do desenvolvimento e da adaptação inicial de um indivíduo e continuam a motivar pensamentos, sentimentos, percepções e ações inconscientes ao longo da vida. Os complexos são pessoais e os arquétipos são universais, e ainda assim nossos complexos inconscientes se formam em torno do núcleo dos arquétipos (Young-Einsendrath em Brewster, 2017, p. Prefácio XII)[tradução nossa].

Carl Jung (1904-1908/2011) compreende que o complexo é a via régia para o inconsciente acessível quando há a insurgência de sintomas e sonhos. Essa parte da psique, que geralmente está além de nosso controle, desenvolve-se a partir de nossa personalidade individual e correlaciona-se com o ambiente em que nascemos, não se subordina aos pensamentos, nem as meras ampliações de conhecimento acerca da tensão.

A racionalização não dissolve a explosão de energia que irrompe o controle do ego, e o que não foi escolhido para ser vivido encontra-se na escuridão da nossa existência, alimentando aspectos sombrios que, ignorados pela consciência, infeccionam o inconsciente pessoal e coletivo.

Um complexo ativo nos coloca momentaneamente sob um estado de coação, de pensar e agir compulsivamente, para o qual, sob certas condições, o único termo apropriado seria o conceito jurídico de responsabilidade diminuída (Jung, 1930/ 1984, para. 200, p. 30).

Tomada uma decisão, a energia psíquica é ricocheteada para aquilo que se decidiu não fazer. Sobre a ausência de tomada de decisão, sobre tais águas paradas da personalidade, Jung (1946-48/2008) escreveu:

Um exame mais detalhado das características sombrias - isto é, das inferioridades que constituem a sombra - revela que elas têm uma natureza emocional, uma espécie de autonomia e, consequentemente, uma qualidade obsessiva ou, melhor, passiva. Os afetos ocorrem geralmente onde a adaptação é mais fraca e, ao mesmo tempo, revelam a razão da sua fraqueza, nomeadamente um certo grau de inferioridade e a existência de um nível inferior de personalidade. Neste nível inferior, com seu descontrolado ou emoções mal controladas, comportamo-nos mais ou menos como um primitivo, que não é apenas a vítima passiva dos seus afetos, mas também singularmente incapaz de julgamento moral (Jung, 1946-48/2008, para. 15, p. 21).

A psicologia de C. G. Jung atrai muitas pessoas devido à sua aparente natureza multicultural. Jung demonstrava um interesse profundo em explorar e compreender povos e culturas diversos, como africanos, indianos orientais e chineses, pressupondo-os como exóticos em relação aos europeus (Young-Eisendrath, 2017).

Para Jung (1946-48/2008), pessoas de pele preta são associadas ao primitivo e ao irracional, aos aspectos do reino sombrio e inconsciente. Em sua teoria do inconsciente coletivo, o autor (Jung, 1946-48/2008, para. 15, p. 21) associou os "primitivos" a ser e carregar a sombra - arquétipo de tudo o que era negativo no inconsciente. As qualificações negativas caracterizam a polaridade na qual Jung, por projeção de aspectos da sombra das pessoas brancas, estabeleceu critérios de compreensão de escuro, negro e retinto como portadores da sombra coletiva (Brewster, 2017).

Jung (1912/2020) compreendeu os complexos como unidades vivas no inconsciente das pessoas. O pós-junguiano Thomas Singer (2000) compreendeu haver, no reino da psique, entre as dimensões arquetípica e pessoal, o inconsciente cultural. Portanto, para Henderson muito do que Jung considerava pessoal é culturalmente condicionado.

Samuel Kimbles (2014) adiciona à ideia de Singer o conceito de complexo cultural - estruturas que organizam as necessidades humanas, mediadas por processos raciais, étnicos, religiosos e de gênero.

Thomas Singer, Samuel Kimbles e Fanny Brewster, aprofundando o conceito de arquétipo, anseiam por ampliar a compreensão das dinâmicas psíquicas pelas quais os seres humanos permanecem sendo inconscientemente controlados pelo passado e por seus ancestrais (Brewster, 2017, p. 118). O racismo é uma energia arquetípica.

Cida Bento no livro "O pacto da branquitude" (2022) enuncia e questiona a universalidade da branquitude e suas consequências nefastas para qualquer mudança substantiva na hierarquia das relações sociais. Bento (2022) identificou um padrão de discriminação nos processos seletivos para vagas de emprego, nos quais contratavam pessoas brancas com currículos equivalentes ou inferiores em vez dela e de seus irmãos, altamente qualificados. Em sua pesquisa, Bento encontrou um acordo tácito de autopreservação, que atende aos interesses de determinados grupos e perpetua o poder das pessoas brancas. Ela chamou esse fenômeno de pacto narcisista da branquitude (Bento, 2022).

A dinâmica estrutural da branquitude transcende a aparência física e inclui mecanismos de manutenção da propriedade de privilégios raciais simbólicos e materiais em exclusão aos não brancos. Muller e Cardoso, no livro "Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil (2017), aprofundam o conceito de branquitude como o lugar mais alto na hierarquia racial e vivificador do poder de classificar os outros como não brancos.

O livro "Branquitude: diálogos sobre racismo e antirracismo" (Schucman, 2023) investiga a fundo a compreensão da branquitude como uma ideologia que organiza hierarquicamente as pessoas com base na raça, conferindo aos negros um lugar subalterno na estrutura social. Os diálogos apresentados no livro rompem com a premissa de que o racismo é um problema exclusivo dos negros e oferecem interpretações e caminhos para a responsabilização de toda a sociedade, especialmente dos brancos.

Para a professora, escritora e intelectual Bell Hooks (2022), a supremacia branca é a causa subjacente do racismo e permeia todos os aspectos da sociedade, independentemente da raça. Na coleção de ensaios do livro "Escrever além da raça: teoria e prática" (Hooks, 2022), a autora argumenta que para compreender a supremacia branca como uma ideologia disfarçada é crucial ir além da raça. Ela também critica a despolitização dos movimentos feministas e antirracistas e a falta de diversidade no meio acadêmico.

O homem branco é um problema terrível para o negro, e sempre que você afeta alguém tão profundamente, então, de uma forma misteriosa, algo volta dele para você. O negro, pela sua mera presença, é uma fonte de infecção temperamental e mimética, que o europeu não pode deixar de notar, tanto quanto vê o fosso desesperador entre o negro americano e o negro africano. A infecção racial é um problema mental e moral muito sério, onde o número de primitivos supera o homem branco. A América tem esse problema apenas em grau relativo, porque os brancos superam em muito os mestiços. Aparentemente ele pode assimilar a influência primitiva com pouco risco para si mesmo. O que aconteceria se houvesse um aumento considerável da população negra é outra questão (Jung, 1930/2007, para. 966, p. 207).

Nas profundezas interiores, na escuridão dos colonizadores (o homem branco), os complexos raciais atuam como se fossem um emaranhado de forças em rede, influenciando e controlando externamente nossas identidades. É uma dinâmica na qual a branquitude, como padrão humano civilizatório, projeta a África como pré-lógica e não civilizada (Brewster, 2022). As verdades raciais são pintadas nos tons do pacto narcisista da branquitude (Bento, 2022).

Os danos dos complexos devem ser identificados e suas causas reconhecidas. Apesar de não resolvermos, nem removermos os complexos apenas com conhecimento, a integração das emoções inicia a dissolução das projeções. É urgente reconhecer que a violência racial projetada sobre os negros existe, também, nos brancos.

Hooks (2022) enfatiza a importância de desafiar o pensamento da supremacia branca e de promover perspectivas imparciais, para alcançar a verdadeira libertação. Seus ensaios nos oferecem caminhos com padrões de mudança positiva e a necessidade de intervenções que nos ajudem a compreender melhor os sistemas interligados de dominação. A mudança em favor de padrões que prezem pela comunalidade, por exemplo, é ilustrada na Figura 1.

 

Figura 1.The Ego System.
Fonte: The ego system (disponível em: <https://silvotherapy.co.uk/articles/from-ego-to-eco>), 2024.

 

Desenvolvimento

O cineasta Cord Jefferson roteiriza e dirige o filme "American fiction" (Everett & Jefferson, 2023), com base no livro "Erasure", de Percival Everett (2011), intercalando discussões entre a mercantilização da existência e a eficiência dos dispositivos de racialização da vida. O filme é uma sátira dos estereótipos da cultura afro-americana estadunidense. A premissa é um erudito escritor preto bem sucedido que se vê forçado a escrever "uma história preta", dando ao mercado editorial, dominado por brancos, o que eles querem: uma obra repleta de estereótipos que despertam a empatia dos leitores brancos.

Cord Jefferson elabora o texto de "American fiction" (Everett & Jefferson, 2023) com uma intensidade narrativa que quase se aproxima do fluxo de consciência. A questão complexa é tratada como sátira: a história de Thelonious "Monk" Ellison, escritor negro, que experiencia a rejeição de seus últimos três manuscritos por não serem "negros o suficiente" para o mercado editorial estadunidense. Frustrado como autor, ele não publica nenhum livro há anos.

A primeira cena lança uma provocação muito interessante. Ao colocar a palavra nigger no quadro, termo pejorativo para se referir a afro-estadunidenses, Monk torna-se alvo dos protestos da aluna branca indignada. Ele, um homem negro, pondera sobre o contexto no qual a palavra está inserida, mas consegue apenas inflar ainda mais a raiva da estudante, que sai batendo a porta.

O protagonista é também um professor entediado com os questionamentos rasos de seus alunos. Será mesmo que a aluna ficou brava por conta da discussão em torno da palavra ou assumindo um papel na adaptabilidade social? Será que a aluna não estaria apenas se enquadrando no lugar da branquitude culpada para, com isso, parecer antirracista, o que é percebido como algo valoroso? A aluna, ao desautorizar uma pessoa negra com toda a sua indignação, estaria realmente querendo debater a segregação racial nos Estados Unidos ou somente construindo uma imagem progressista superficial que deseja vender de si mesma?

Bell Hooks (2022) argumenta que o pensamento da supremacia branca é a cola invisível e visível que mantém os brancos unidos, apesar de seus diversos pontos de vista. Mesmo com progressos na teoria feminista e na crítica cultural, as barreiras de comunicação e as hierarquias divisórias ainda tornam difícil a criação de uma sociedade verdadeiramente inclusiva e progressista. Para ir além da raça, é essencial reconhecer o pensamento e a prática da supremacia branca e o seu papel na manutenção de culturas de dominação.

É importante o aprofundamento de reflexões que analisam as maneiras pelas quais as pessoas escrevem e falam sobre raça, gênero e classe (Hooks, 2022). A hiper-racialização da branquitude faz parecer que os temas principais seriam a pele branca e os privilégios que ela permitia, em vez das formas de pensar e agir da supremacia branca, expressas por pessoas de todas as cores de pele. Portanto, a autora aponta também a necessidade de uma análise interseccional que incorpore uma compreensão da supremacia branca como uma característica transversal dos sistemas interligados de dominação.

Raça é uma categorização criada por proprietários de seres humanos para protegerem seu poder e riqueza por meio do medo e da opressão - controle de poder e de recursos. O homem branco buscava a luz (ouro), em mares nunca antes navegados, sem se dar conta da própria escuridão. O imperialismo estruturou-se institucionalmente por meio da destruição extrativista, do tráfico de pessoas, do apagamento cultural e do genocídio.

Carl Jung (Brewster, 2017), no desenvolvimento de sua teoria do inconsciente coletivo, baseou-se nos fatos históricos e nas necessidades coletivas do momento: a vida estadunidense era de preconceito racial, violência racial ativa e consciência atrelada à aceitação da escravidão de pessoas negras como párias da sociedade.

Os complexos raciais (Brewster, 2020) influenciam no desenvolvimento da personalidade, no comportamento cultural e no status quo. Ressaltamos que persistir no modelo civilizatório do patriarcado capitalista branco imperialista (Hooks, 2022) é perpetuar a cultura de dominação baseada na cor da pele e na etnicidade como alicerces para o senso de significado, valor e propósitos compartilhados por uma sociedade. As pessoas de ascendência europeia portam a responsabilidade de se envolverem com a própria sombra pessoal, com a sombra coletiva e com a sombra cultural.

Kira Celeste (2023), ao refletir sobre a teoria crítica das raças, dialoga com Bell Hooks (2020) compreendendo o termo patriarcado capitalista branco imperialista como banner e destacando a responsabilização e a necessidade de reparação moral dos crimes colonialistas e a efetivação de práticas de descolonização. Celeste (2023) aponta como disfunções da psique, colonizada e racializada, as partes que seccionamos e reprimimos na história da humanidade: aversão à escuridão e veneração da luz; hiperfoco na ascensão e na transcendência em detrimento ao corpóreo e ao terrestre; objetificação dos corpos femininos e da sexualidade; desconexão e extrativismo como única relação com a Terra; e interrupção da relação com o anímico e com a criatividade espontânea.

O protagonista, de "American fiction" (Everett & Jefferson, 2023), desencantado com o mundo literário e, principalmente, com a hipocrisia das editoras que priorizam narrativas de sofrimento negro para apaziguar a culpa das elites brancas que compram seus livros, cansou-se do funcionamento desse mundo de aparências em que a indústria lucra com o "entretenimento afro" e de fingir ser responsável pelas segregações. Monk resolve assumir um pseudônimo e escreve um livro repleto de estereótipos raciais satirizando os clichês das publicações sobre a realidade do gueto. Um ato que o leva ao cerne da hipocrisia social. Mais do que esperado, a ironia é que o mercado editorial, em pacto com narcisismo da branquitude, adora o que seria uma grande anedota do escritor. Cria-se para Monk uma situação inusitada: sua obra irônica faz um grande sucesso e é recebida com seriedade pelo mercado editorial.

Ao refletir sobre a presença constante da raça na sociedade e sobre o impacto do racismo no bem-estar emocional, Hooks (2022) enfatiza a importância de se ser seletivo em relação aos espaços sociais e de exercer o poder curativo da mente para se recusar a ser petrificado em espaços de vitimização.

Apesar da crença falsa de que o racismo já não é uma ameaça significativa, o racismo quotidiano vem marcando a vida das pessoas negras, de pele não branca, por meio de estereótipos negativos e mensagens explicitamente racistas. O pensamento e as ações da supremacia branca permeiam diversas culturas, evidenciando que o problema do racismo não é apenas uma consequência das ações dos brancos.

A prevalência do pensamento da supremacia branca na sociedade estadunidense e seu impacto nas pessoas de cor são temas discutidos por Bell Hooks (2022) no ensaio "Racismo: nomear a dor". A autora argumenta que, a menos que a sociedade faça um esforço consciente para mudar o pensamento e a ação, nomeando honestamente todas as inúmeras formas pelas quais a supremacia branca se impõe na vida quotidiana, não será capaz de superar uma política de ódio e de criar uma nova base apoiada por uma revolução do amor.

Contra sistemas de dominação, que têm significados políticos, Hooks (2022) interpõe a esperança e o amor. O amor é frequentemente citado como a força motriz por trás daqueles que lutam pela justiça e esforçam-se para construir uma comunidade melhor. O amor é protagonista na luta contra a dominação (Hooks, 2022).

Em um retorno forçado para reencontrar a família da qual se desgarrou, Monk (Everett, & Jefferson, 2023) depara-se com uma multiplicidade de cenas de trama familiar: a descoberta das traições do pai, em luto pelo falecimento da irmã que cuidava da mãe; a mãe acometida por uma doença degenerativa; e o irmão amadurecendo suas questões de gênero. Rapidamente, Monk também terá que lidar com suas novas responsabilidades em família.

A escritora Bell Hooks e o alter ego de escritor, Monk (Everett, & Jefferson, 2023), encontram conforto em casa. No seio familiar, ambos se deparam com angústias tanto quanto podem escapar dos efeitos do racismo:

Minha casa é o único lugar onde não existe raça. De manhã, quando acordo, não olho a imagem do meu rosto no espelho do banheiro e penso que uma mulher negra está lavando o rosto. Observando esse rosto, penso em acne e busco uma espinha nova. Penso em todas as formas em que a acne me acompanhou desde a adolescência até a menopausa, quando ouvi os médicos me dizerem que, "nas mulheres, a acne piora com a idade". A acne não tem raça. Ela ocupa indiscriminadamente o corpo - qualquer pessoa pode ter (Hooks. 2022, p. 278 [destaque do autor]).

Hooks (2022), no que se refere à maturidade emocional, evidencia a importância da educação crítica para reformular pensamentos e atitudes e criar uma vida com bem-estar emocional. A Monk (Everett, & Jefferson, 2023) cabe, junto com a necessidade de assumir os cuidados da mãe cada vez mais doente, lidar com segredos familiares que vêm à tona e com seu relacionamento com a vizinha que está se separando do marido. Nesse cenário, ele precisa viver lições, como romancista integrado ao mercado e enquanto filho/namorado/irmão nesse seio familiar.

Ser dominado por um arquétipo é viver um destino. O psiquismo é trabalhado na reconexão com nossas próprias linhagens proporcionalmente a nossa disponibilidade psíquica para refletir sobre nossos legados raciais, mergulhando profundamente no próprio inconsciente pessoal, explorando as sombras e se fazendo perguntas difíceis, escondidas nos complexos culturais/ raciais.

Apesar dos afro-diaspóricos terem suas vidas, riquezas e cultura roubadas, carregam a sombra de "serem todos como ladrão" (Brewster, 2017). No que lhes é imputado coletivamente, acrescentamos também o estereótipo do descontrole emocional, encobrindo a mais profunda tristeza, banzo, melancolia e hipertensão cardíaca das pessoas escravizadas e de seus descendentes.

Há sintomas transgeracionais do legado racista, escravocrata e opressor. Celeste (2023) afirma ser dever dos vivos curar seus ancestrais das desordens dos colonizadores. Como curar o medo do escuro dentro de cada um de nós? Tal processo de cura passa pela etapa de compreender que as culturas têm seus próprios complexos e estes, como partes reprimidas da psique ocidental, assombram o coletivo (Singer, 2004). No ensaio "Escrever além da raça", Hooks (2022) reflete sobre sua própria carreira de escritora e a importância de escrever a partir de diferentes lugares do eu e da identidade que constituem sua vida, o que a faz escrever além da raça.

Bell Hooks (2022) aponta os desafios de viver em uma cultura que limita a autoexpressão e a autorrealização e a importância de criar ambientes que maximizem o bem-estar. Bell (2022) e Monk (Everett & Jefferson, 2023) acreditam em uma escrita que vai além da raça, que muitas vezes recebe pouca atenção, apesar da sua perspectiva universal. A autora enfatiza a necessidade de os negros disciplinarem suas mentes e se conectarem compassivamente consigo mesmos e com outros seres vivos.

O cineasta Cord Jefferson vivifica Monk (Everett & Jefferson, 2023) como um homem introspectivo, de fala mansa, até emocionalmente indisponível, que precisa aprender, como dito por seu próprio irmão, que as pessoas querem amá-lo por completo. Na postura tensa, no olhar ressabiado e nos rompantes de ressentimentos do protagonista, revivemos a saga da construção do anti-herói: um "cara bacana", que não quer machucar ninguém e que supera os próprios entraves psicológicos.

O amor é o componente mais importante do nosso trabalho para recriar a sociedade humana. No ensaio "A prática do amor", Hooks (2022) argumenta que escolher amar é uma forma de resistir à vitimização e de se opor à dominação em todas as suas formas, que envolve reconhecer a plenitude da nossa humanidade e abraçar uma prática de bondade, perdão e compaixão.

O adoecimento da mãe impõe a Monk (Everett, & Jefferson, 2023) a urgência financeira diante dos recursos de saúde e acolhimento a serem custeados. Uma vez destituído da capacidade de escolha, pois a saúde de sua mãe requer cuidados que o poder financeiro da família não comporta, ele é obrigado a se adaptar à realidade. Quem poderia julgá-lo?

Monk (Everett, & Jefferson, 2023) performa ser um escritor preto e dá ao mercado, dominado por brancos, o que eles querem: uma obra repleta de estereótipos afro-americanos que despertam a compaixão nos leitores brancos. Do alto de sua arrogância e dificuldade de convivência, Monk passa a ser obrigado a lidar com as consequências da brincadeira que acaba indo longe demais. O personagem do livro-piada torna-se um "queridinho" da indústria. Monk não tem escolha, não pode ouvir seus escrúpulos quando seu pseudônimo torna-se fenômeno editorial.

Ao refletir sobre o ato de criação (Everett, & Jefferson, 2023), o protagonista conversa com a escritora afro-americana Sintara Golden e fustiga reflexões sobre a questão do lugar de fala, bem como as representações repletas de estereótipos raciais que atendem confortavelmente às demandas mercadológicas. Se não agradarem em alguma medida o mercado, como novos autores se afirmarão e, de fato, conseguirão proeminência?

Uma entrevista pública (Everett, & Jefferson, 2023) da escritora afro-americana Sintara motivou Monk a escrever seu notório livro-piada. Os livros de Sintara e Monk são similares, e os dois, trabalham como jurados em uma mesma premiação literária, que buscava modernizar-se, diversificando a representatividade racial de seus jurados. O livro-piada de Monk é indicado para ser avaliado nessa premiação.

A violência racial é projetada nas encruzilhadas da vida, cada um tem o complexo racial do outro. Na psique afro-estadunidense, o complexo branco dentro do inconsciente pessoal evidencia o trabalho psíquico de dinamizar a sensação do preto sentir-se invisível, ignorado e torturado por ter pele negra. Como mediar em si as vivências de constante ameaça de morte e de violência racial, ao mesmo tempo em que se é vulnerável às emoções do complexo racial? Como ser afetado para se tornar afetivo, restaurando o equilíbrio psíquico?

A supremacia branca internalizada e o racismo impedem que todos alcancem o bem-estar emocional. Esse é especialmente o caso dos negros que não têm consciência crítica. Na ocasião da seleção dos livros premiados, Sintara e Monk (Everett, & Jefferson, 2023) discutem sobre a literatura preta nos Estados Unidos, como os estereótipos são tratados e as diferenças entre os livros de ambos. Porém, a conversa é cortada por uma jurada branca.

Muitos brancos desavisados que observam do lado de fora expressam com frequência a opinião de que as pessoas negras são muito obcecadas por raça e racismo. No entanto, o ponto de vista deles é meramente um reflexo do privilégio branco - que lhes permite permanecer em negação quando se trata do impacto que a socialização racista maciça tem sobre o povo negro. Os brancos sem dúvida continuam no controle da mídia televisiva, que é de longe o porta-voz propagandístico mais acessível para a supremacia branca. E é ainda mais fácil para os brancos não esclarecidos permanecer ignorantes acerca das inúmeras maneiras em que o pensamento supremacista branco socializa pessoas negras ao fazê-las acreditar que a raça é o aspecto definidor mais importante da identidade negra. Logo, é quase impossível para pessoas negras que internalizaram essas crenças simplesmente ir além da raça (Hooks, 2022, p. 292-293).

Os padrões estéticos da sociedade também estão enraizados na política da supremacia branca e os cabelos mais claros, mais lisos e mais longos considerados mais bonitos e atraentes. A cultura dominante promove uma compreensão superficial da política racial que se concentra apenas nas questões negras e brancas, mas é importante reconhecer que todas as pessoas de cor podem ser vítimas da supremacia branca. Uma compreensão profunda da complexa dinâmica da supremacia branca proporcionaria uma forma de desafiar e modificar a desigualdade racial.

No ensaio "Para acabar com o racismo: o trabalho de transformação", Bell Hooks (2022) discute a importância do amor na descolonização das mentes dos negros e na resistência ao pensamento e à ação da supremacia branca. A autora argumenta que o amor é uma prática transformadora que pode libertar os indivíduos no corpo e na mente. Amar envolve uma combinação de cuidado, comprometimento, conhecimento, responsabilidade e confiança. A autora observa que muitos negros são incapazes de amar devido ao poder do racismo internalizado, que convida à autotraição constante. Hooks (2022) destaca também a importância da autoafirmação e da autoestima saudáveis ​​para o estabelecimento de limites apropriados e a resistência à dominação.

A questão da supremacia branca é frequentemente esquecida nas discussões sobre a branquitude e o privilégio branco. No entanto, é importante reconhecer que os indivíduos que não participam ativamente do pensamento e da ação da supremacia branca ainda contribuem para a perpetuação e manutenção do sistema. Apesar dos avanços nas leis de direitos civis e nas políticas antidiscriminação, não houve nenhum esforço significativo para destruir as raízes do racismo. É importante abordar a questão da supremacia branca e do racismo internalizado para realmente desafiar e desmantelar os pactos narcísicos que o sistema capitalista mantém com a branquitude.

A supremacia branca é uma forma constante de dominação, que exige que os negros partilhem partes de si mesmos para funcionar em uma sociedade que exige obediência a crenças e hábitos implícitos que ajudam a manter ficções de diferença racial. Para viver uma vida que não seja cúmplice dos pensamentos e ações da supremacia branca, as pessoas de cor devem escolher a resistência ativa. A resistência à supremacia branca requer vigilância crítica constante, uma vez que é normalizada em todos os aspectos da sociedade.

É necessário vigilância crítica e autoconsciência para a construção da autoestima e do amor-próprio saudável e para desafiar e eliminar o espírito da vitimização. O amor é profundamente democrático e nos move além das categorias, liberando-nos para sermos nós mesmos autênticos. É a escolha fundamental contra a dominação e pode nos levar a uma nova vida de máximo bem-estar.

De toda forma, é relevante percebermos que os problemas endêmicos que afligem as sociedades liberais permanecem sob a cortina de fumaça e a crença de que alguns indivíduos deveriam se adaptar, mudar e melhorar enquanto outros permanecem ditando os critérios de direito à vida digna. Massivamente vem sendo propagado o ideal de que, de forma unilateral, olhar para dentro de si é a única solução para as doenças sociais de hoje.

Todo o futuro e toda a história do mundo brotam fundamentalmente como uma enorme resultante dessas fontes ocultas nos indivíduos. Em nossas vidas mais privadas e subjetivas, somos não só as testemunhas passivas de nossa época - e seus sofredores, mas também seus autores! O nosso tempo somos nós! (Jung, 1939/2007, para. 315, pp. 142).

"Ser você mesmo" é uma ideia capitalista do indivíduo, em uma comunidade fragmentada e onde os egos estão psiquicamente dissociados do senso comunal da vida. Cultiva-se o mito protestante do sucesso pelo próprio esforço e a crescente responsabilização individual, na qual, inclusive, as histórias de herança são midiaticamente editadas para parecerem sucesso individual. Olhar para si de forma unilateral e inflexível é acentuar o individualismo: eis o "[...] pássaro que se encontra na gaiola dourada (Jung, 1941-1985, para. 229, p.105).

A introspecção, o engajamento nas auto vigilâncias das redes sociais, o "seja você mesmo" marcando a onipresença da felicidade capitalizada na comercialização de autenticidade e nas obsessões de autoconhecimento/ aperfeiçoamento expressas no "torne-se o seu melhor eu possível" são capitalizados como fugas para a alienação do si mesmo.

As raízes de nossa própria consciência colonizadora são curativas e têm potencial de autotransformação descolonizadora, pois a busca pelo ouro externo metaforiza a ignorância dos desejos internos que ansiavam ser empreendidos (Celeste, 2023). Criamos um inimigo fora de nós com o que repudiamos em nós mesmos. O trabalho interior na direção do retorno coletivo é a direção da individuação (Brewster & Morgan, 2022) pois na vida, como dispositivo político da existência, não estamos separados nem indiferenciados do coletivo/ comunal.

 

Conclusão

A colonização é um processo de apagamento de saberes não ocidentais. A branquitude é a identidade do ethos capitalista: dos burgueses, dos self made man, dos financistas e do homem moderno - protagonistas do capital que convertem a diversidade em mercadoria, o commodity do whitewashing. O racismo, entranhado nas estruturas socioculturais, promove a branquitude civilizatória pactuando narcisicamente políticas de embranquecimento, dispositivos de desumanização do africano em diáspora e manutenção das desigualdades raciais, que são também sociais, econômicas e espaciais.

Apesar de se basear nas tradições africanistas e indígenas, a linguagem junguiana estigmatizou os não brancos como estranhos, diferentes e primitivos - fixando-os como ganchos da sombra do racismo. O racismo é uma energia arquetípica e raiz do sofrimento psíquico que influencia o desenvolvimento da personalidade, a conformação de identidades, o comportamento cultural e o status social.

A cor da pele continua a ser considerada como um problema, o racismo não. A sociedade brasileira é estratificada racialmente com base na aparência física: quanto mais claro o tom de pele, mais bem se é socialmente aceito. Como dispositivo de conservação do poder e de recursos intergeracionais, o Estado permanece um negócio de determinadas famílias, no qual o sistema de poder patriarcal está assentado sobre as práticas de poder: roubar, matar, destruir, assimilar, apropriar, dominar e (neo)colonizar. A estabilidade das instituições estatais é mantida por homens e famílias que se perpetuam no seu comando e controlam os aparelhos ideológicos e as forças de repressão em um país capitalista periférico.

Na dinâmica de constelação da sombra coletiva, em torno da sombra do racismo, como compromisso de parte da psique racial coletiva, há ainda uma infinitude de formas pelas quais se persiste em manter a escravização de não brancos. A possessão arquetípica, que é boa parte da energia emocional, permanece direcionada para promover dor e destruição - cenário em que a condição de branquitude subordina uma certa ordem ética.

Ao nos mantermos como se fossemos bodes expiatórios, não reivindicando nossas inferioridades pessoais, seguiremos influenciando soturnamente o inconsciente coletivo. Mas, sobretudo, para não ser por ele despedaçado, cabe ao ser humano reconhecer o mal relativo de sua própria natureza. Na medida em que o racismo gera sofrimento psíquico, torna-se relevante romper com a universalização dos pactos narcísicos da branquitude e transcender o ethos capitalista.

 

Referências

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Recebido: 17 mar 2024
1a revisão: 10 maio 2024
Aprovado: 14 jun 2024
Aprovado para publicação: 18 jul 2024

 

 

Conflito de interesses: A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Aline M. S. De Coster - Trainee pela Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - Rio de Janeiro. Mestranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Psicóloga. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: alinedecoster@hotmail.com