ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2022.vol07.0008

 

Narrativas terminais: imaginar o fim de um mundo

 

Terminal narrative: imagining the end of a world

 

Narrativas terminales: imaginar el fin de un mundo

 

 

Daniel Françoli YAGO

Universidade Municipal de São Caetano do Sul - USCS. São Caetano do Sul, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo teve como objetivo refletir sobre elementos críticos da imaginação em relação ao fim do mundo no contexto pandêmico. Para tanto, partiu-se da ideia de que há uma terminalidade inerente as nossas narrativas temporais sobre o mundo que determina tanto sua caducidade quanto nossa obsessão pelo fim. O artigo foi dividido em quatro tópicos: no primeiro, exploramos o fim do mundo pelas lentes da catástrofe, relação quase que mandatória atualmente, a fim de entender nossas implicações como produtos e produtores dessa ordem de fantasia; no segundo e terceiro tópicos, abordamos a construção simbólica e política de uma ordem de tempo terminal a que chamamos de Modernidade, com particular atenção ao ponto de vista decolonial; e, no último tópico, refletimos sobre nossa responsabilidade, como psicólogas e psicólogos, para com o atravessamento das ideias de fim de mundo. O artigo utilizou levantamento bibliográfico de publicações nas áreas da psicologia analítica, filosofia e teoria decolonial e, à maneira de um ensaio, pautou-se por um compromisso mais com as interrogações levantadas do que com eventuais respostas.

Descritores: tempo, imaginação, psicologia junguiana.


ABSTRACT

The objective of this article was to reflect on critical elements of imagination in relation to the end of the world in the context of the pandemic. The point of departure was the idea that there is a quality of terminal inherent to our temporal narratives about the world, which determines both its obsolescence and our obsession for the end. The article was divided un four topics: in the first, we explore the end of the world through the lenses of catastrophe, relation almost mandatory these days, so as to understand our implication as products and producers of this order of fantasy; the second and third topics we approached the symbolic and political construction of an order of terminal times, which we call Modernity, with particular focus on a decolonial point of view ; and in the last topic, we considered our responsibility, as psychologists, towards the crossing of ideas of the end of the world. This paper was based on bibliographic research of publication in the areas of analytic psychology, philosophy and decolonial theory, and, like an essay, it was more committed to the questions raised than to the eventual answers.

Descriptors: time, imagination, Junguian psychology.


RESUMEN

El objetivo de este artículo ha sido reflexionar sobre elementos críticos de la imaginación con relación al fin del mundo en el contexto pandémico. Para eso se partió de la idea de que hay un estado terminal inherente a nuestras narrativas temporales sobre el mundo, que determina tanto su caducidad como nuestra obsesión por el final. El artículo se divide en cuatro tópicos: en el primero exploramos el fin del mundo por la óptica de la catástrofe, relación casi obligatoria actualmente, para poder entender nuestras implicaciones como productos y productores de ese orden de fantasía; en el segundo y tercer tópicos, abordamos la construcción simbólica y política de un orden de tiempo terminal al que llamamos Modernidad, con particular atención al punto de vista decolonial; y, en el último tópico, reflexionamos sobre nuestra responsabilidad, como psicólogos, para con el cruce de las ideas del fin del mundo. En el artículo utilizamos un análisis bibliográfico de publicaciones en las áreas de la psicología analítica, la filosofía y la teoría decolonial y, a modo de ensayo, se rige más por un compromiso con los interrogantes surgidos que con las eventuales respuestas.

Descriptores: tiempo, imaginación, psicología junguiana.


 

 

Introdução

Lê-se, logo no início de "A peste" (1947/2004), de Albert Camus, a seguinte descrição:

Foi mais ou menos nessa época que os nossos concidadãos começaram a se inquietar com o caso, pois, a partir do dia 18, as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. [...] Mas desde os bairros exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde o doutor Rieux passava, por toda parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em longas filas. [...] O número de roedores apanhados ia crescendo e a coleta era a cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos. [...] De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas sarjetas com uma pequena flor de sangue nos focinhos pontiagudos; uns, inchados e pútridos; outros, rígidos e com bigodes ainda eriçados (Camus, 1947/2004, p. 19).

Quão próximo, terrivelmente próximo, de tal cenário de peste parecemos ainda estar, à altura dos cerca de dois anos e meio de implementação das políticas de isolamento social em grandes partes do mundo. Para além do vírus e dos ratos, do Sars-Cov-2 e do Yersinia pestis, ainda é ao flagelo humano que Camus se refere em sua obra.

Em "A peste", Camus (1947/2004) sustenta a tese de que as mais destrutivas pandemias não são de caráter biológico, mas de caráter moral, porque rapidamente desnudam a fantasia de benevolência fundacional do sujeito e o abandona à própria sorte do mal: a banalidade da dor, o descaso pela vida, o egoísmo e a irracionalidade. Mas, é por isso mesmo, porque se vê o mal diretamente em sua face acometida, que também se vê a face do bem: o sacrifício, o compadecimento, a empatia e a comunidade. Um bem que nasce, pois, do conhecimento do mal. Os dramas da cidade de Oran prontamente tornaram-se os do planeta Terra porque compartilhamos de um senso mais definitivo de término, a concretização final de "barbáries por vir", como Stengers (2015) certa vez descreveu, a propósito do tempo das catástrofes.

O futuro, mais uma vez, assume contornos de incerteza e desamparo. Novamente, tem suas narrativas e projetos em situação de disputa. O contexto de crise biológica desmonta sistemas políticos e sociais frágeis com facilidade assustadora, e os temas da morte e sobrevivência despontam com nuances atualizadas, sob a forma de necropolítica fascista. O fantasma do fim da história torna-se ainda menos diáfano e, mais uma vez, nos pesa a tarefa de refletir sobre a crise enquanto a vivemos. No fim dos tempos da cidade de Oran, caberiam mais anos do que estes da nossa fatídica quarentena, assim como, mais de uma possibilidade de leitura. Este artigo buscou, a partir da catástrofe enquanto operador conceitual e imaginal, refletir a respeito dos elementos críticos da imaginação sobre o fim do mundo nos dias de hoje.

Seguindo a movência particular de um ensaio, gênero para o qual mais importa a pergunta do que a resposta, o artigo voltou-se também para pensar sobre o sentimento de fim de mundo que ainda não findou nem objetiva, muito menos subjetivamente. Para especificar que elementos críticos são esses, cumpriram-se três paragens no texto: a primeira explora o fim do mundo pelas lentes da catástrofe, relação quase que mandatória hoje, a fim de entender as implicações dos indivíduos como produtos e produtores dessa ordem de fantasia; a segunda e a terceira abordam a construção simbólica e política de uma ordem de tempo terminal a que chamamos de Modernidade; e a última recorda-se de nossa responsabilidade para com o atravessamento dessa questão, como psicólogas e psicólogos ou não.

 

Fim do mundo como catástrofe

Em certa medida, partimos da perspectiva da catástrofe porque sequer poderíamos começar por outra. Seja pelo contato diário com notícias das mais indigestas nos veículos de comunicação, seja pelos afetos intensos compartilhados quase que diariamente como psicoterapeutas junguianos, ou ainda, pelo padecimento de amigos e familiares pelas mais diversas formas de temor e horror. Contudo, não se pode supor que o lugar do qual falamos, como analistas, representa toda a diversidade de perspectivas: elas são vastas demais para nosso local de enunciação. Ademais, parafraseando Tolstói (1879/2017) acerca das boas famílias, podemos dizer que todos os bons futuros se parecem ("e viveram felizes para sempre"), mas cada expectativa ruim de cada fruto deve ser pensada à luz de sua própria singularidade.

Nesse sentido, é importante começar a exposição pelo estabelecimento de um endereço conceitual e imaginal das ideias deste ensaio. Para Descola (2016), os mundos constituídos possuem estrutura, organização e ontologias próprias. Não há um "ente" apartado do mundo ou uma organização universal que se manifestaria em padrões estritos, diluidores de singularidade que, por vezes, são irredutíveis e irreproduzíveis sob o prisma de outros contextos. O antropólogo estimula o questionamento não apenas a partir da fantasia dos mundos constituídos, como também pelos mundos da fantasia como figurações das imagens, de suas dinâmicas e tensões particulares. Portanto, o mundo é também metáfora de estruturas e formas das imagens que o criam.

No caso das muitas psicologias, entre elas a analítica, deve-se pontuar que elas nasceram, majoritariamente, referindo-se aos problemas do mundo moderno, portanto, de ontologia naturalista. Em que pese as contribuições junguianas suporem uma ultrapassagem do determinismo histórico-cultural com seus conceitos para a abertura a questões e imagens de outras ontologias, elas colocam o desafio de expandir suas perguntas e seus universos de referência a outras modalidades, como as animistas, totemistas e analógicas. Esse movimento é crucial para refletirmos sobre quais mundos acabam, seja no âmbito concreto, seja no âmbito imaginal, e inclusive sobre os pontos em que cada narrativa de mundo, e de fim de mundo, se interseccionam e/ou colidem.

Do ponto de vista da produção conceitual no seio da referida ontologia, acreditamo-nos já conscientes de que vivemos em um ponto crucial de não retorno, o que suscita alguma concepção ou impulso de virada. O que esta virada poderia significar, por sua vez, é um tema imenso de discussão política e, portanto, da alçada da ficção e da fantasia. Aqui, Adams (2004) é uma inspiração direta, pois concebeu um "princípio da fantasia" que perpassa as reflexões textuais e clínicas. A leitura de Vanon a respeito dos fins do mundo como sincronicidades do fantasiar individual da catástrofe pode expressar uma forma coletiva de conceber agência e invenção. De López-Pedraza (2000), usamos o conceito de ansiedade cultural, sobretudo, no que diz respeito à predominância arquetípica do imaginário titânico como forma característica do pensamento moderno. Quanto aos clássicos, partimos dos estudos de von Franz (1972/2011) sobre os mitos temporais, em que a autora analisa a rica simbologia transformadora das cosmogonias, e também de Whitmont (1982/1992), acerca dos impactos e tensões do retorno aterrador da deusa ancestral para o palco imaginal do drama humano contemporâneo.

Mas é Hillman quem dá o arremate a esses retalhos. Discutir fantasia nunca deixa de ser, em alguma medida, tecer reflexões arquetípicas de ideias, sobretudo no sentido que Hillman (1975/2010) atribuiu ao próprio sentido de eidos: as formas pelas quais consideramos algo, ideias como perspectivas. Toda ideia é aquilo que se vê e também aquilo por meio do qual se vê. Porque as ideias frequentemente produzem as coisas que nomeiam, a relação entre palavras e coisas é necessariamente recursiva. Nietzsche (1882/2009, p. 109) augurou tal relação quando preconizou uma ética da diversificação:

Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um "conhecer" perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso "conceito" dela, nossa "objetividade". Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? - não seria castrar o intelecto? [destaque do autor].

A metaforização do imaginário, sob o prisma da psicologia arquetípica de Hillman, não pode prescindir de um olhar atento para os fenômenos culturais. Desde esse registro, tem-se que o imaginário é o veículo por meio do qual observamos quais fantasias perduram e quais caducam, quais grandes temas se atualizam e quais se virtualizam, quais ordens de mundo criam novas figurações e quais figurações criam novas ordens de mundo. E o cenário pandêmico trouxe a questão do fim do mundo de forma pungente e incontornável.

Ao remeter o sujeito à responsabilidade de sua ação histórica no coletivo humano, a pandemia também agudizou sua relação com a própria ideia de fim, política e existencialmente. Diga-se de passagem que, em seu decorrer, a Modernidade tornou-se obcecada por elaborar narrativas sobre os fins da humanidade e isso fala de sua condição de emergência. Desde os anos 1940, filmes, séries, jogos de videogame e livros vêm dando ensejos a distintos universos apocalípticos e pós-apocalíticos, mas, é neste momento que tais narrativas parecem encontrar um êxito nunca visto nas grandes plataformas de consumo (Danowski & Viveiros de Castro, 2014).

Soa curiosamente irônico que o sucesso comercial das ficções sobre fins catastróficos, tema auge da estética da destruição tal como definido por Sontag (1961/2020), se dê precisamente nas culturas que defendem a liberdade irrestrita, a autossuficiência e a onipotência do sujeito como valores axiais. Se no passado ocidental o fim do mundo era assunto privilegiado da escatologia religiosa, hoje tornou-se ostensivamente uma questão de espetáculo e consumo midiático de camadas sociais que sempre tiveram o privilégio de não viver, concreta e literalmente, seu fim pelas próprias mãos.

As imagens de fim passaram a povoar de maneira ainda mais frequente o mundo onírico, visto que muitos dos sonhos ouvidos em nossos consultórios parecem igualmente trazer imagens apocalípticas das mais diferentes ordens e constituírem um novo braço de análise oneiro-política. O que, aliás, basta para considerar o mundo onírico como um tema de relevância para reflexão porque ensaiar ideias sobre o fim já é assumir um local de produção de sentido no tenso plano das disputas dos sonhos do mundo. Tal contágio não é, de modo algum, fortuito no que diz respeito à psique, nem externo ao mundo arquetípico até então estudado, muito menos alheio ao nosso tom aqui. Melhor, parece espelhar, quase que compensatoriamente, não apenas disputas por narrativas de fim de mundo, mas também a consolidação de uma visão estável e segura para atravessar o colapso do mundo rumo a outro lugar.

Atentar para a perspectiva da catástrofe implica igualmente adotar um ponto de vista catastrófico, enquanto metáfora, como lente de leitura para nossa peste contemporânea: ver através da pandemia, para além da literalização já conhecida e duramente experienciada - não negá-la, tampouco subestimá-la, mas atravessá-la.

Longe de descrever quaisquer fins, a palavra catástrofe quer dizer "grande desgraça", "acontecimento funesto", "calamidade", "fim lastimoso". Em sua etimologia, consta que é uma palavra derivada de katastrofí, que designava, na tragédia grega, a estrofe do poema em que os acontecimentos de dor e sofrimento precipitavam-se - por exemplo, quando Édipo descobre a razão pela qual a peste arruinava Tebas.

Em seu radical está a palavra kata, que designa o que é "baixo", "contrário" ou "adverso" - que, inclusive, é aparentada ao termo khthon, literalmente "solo", "terra", presente em termos como "ctônico", ou seja, aquilo que é "subterrâneo", "obscuro", "telúrico", até mesmo "sub-reptício". Assumindo a etimologia como testemunho da experiência imaginal grega, tem-se que o catastrófico não se encontra distante do obscuro. Tragédia e obscuridade frequentemente andam de mãos dadas e há um parentesco sutil entre as imagens de desastre e as imagens da terra que se mostram no vasto espectro de imaginários de cataclismos dos fenômenos naturais e climáticos até na própria ideia de temenos, a caverna-santuário de descanso e reflexão, dentro da qual pode-se recuperar dos fins, internos ou externos, mas cuja descida promete encontros inusitados com criaturas das lógicas obscuras.

Assim, se supomos que esse outro lugar, etimologicamente, é baixo, adverso e que também pode estar nos baixios e na adversidade, então, pode-se assumir que uma parcela substancial dos temores pelo fim de mundo resida justamente nas imagens e ideias dos nossos subterrâneos, das potências que habitam os fundos abissais da anima mundi. Há algo intimamente compartilhado entre o calamitoso e o subterrâneo, em alguma camada de nosso próprio arcabouço histórico de representações, e que, à luz deste mesmo arcabouço, pode possuir diferentes valências, a depender do modo como são vistas: de potências que não couberam no palco iluminado pelos holofotes da racionalidade moderna e, relegadas ao seu bastidor sombrio, revoltam-se e retornam vingativamente ou da mesma potência grotesca que nos revigora e nos ampara diante do horizonte de esgotamento da vida.

Sendo assim, poderia a metaforização arquetípica nos permitir ver para além da literalização da catástrofe e encontrar, precisamente na imaginação da terra, outras lógicas para sua simbolização? Contra os elementos da tradição ocidental que primou pela descaracterização e despersonalização do saber, Hillman (1975/2010) seguiu na contramão, ao apontar que a psique é personalista, isto é, cria e recria constantemente personagens que protagonizam ideias, sentimentos, sensações, dramas pessoais e coletivos, daí, sua psicologia ser de inspiração radicalmente politeísta. O personificar, nesse sentido, é tanto causa quanto efeito do ver-através, a função metaforizante da alma. Ademais, para Hillman (1975/2010), toda imagem animada, portanto, toda figuração, é também um daimon, pois nos percorre e nos guia rumo a possibilidades de concretização, realização, de sentidos latentes. Nessa esteira, a condição necessária de existência da psique seria "o pandemônio de imagens", entrelaçamentos de personificações e metáforas, ora tapeçaria árabe, ora cama-de-gato, que funcionam como atos inaugurais da imaginação criadora.

Desconhecemos a natureza do que realmente colide entre fins de mundo e visões de fins de mundo porque pode ser tão traiçoeira e infinita quanto aquilo que aprendemos atribuir à esperança de um futuro melhor. À maneira de Camus, podemos ver através da peste para analisar que legião de outras figurações ou personificações constitui a sua própria possibilidade de existência e sua superação rumo a outros mundos possíveis. Mas isso já nos lançaria a outra interrogação: em que medida nossas narrativas sobre o término seriam igualmente narrativas terminais? De forma assumidamente especulativa, seguimos na apresentação dos pontos sobre a produção incessante de narrativas e imagens relativas ao fim do mundo como traço marcante da sombra da Modernidade ocidental. Através das noções de colonialidade do poder e antropocentrismo, assinala-se também sua relação com a destruição de outros mundos possíveis como marca de sua voragem intrínseca.

 

Os tempos do mundo

A modernidade é uma espécie de autodestruição criadora (Paz, 1974/2013, p. 19).

Pensar a Modernidade, ainda que de forma breve, é pensar seus projetos, suas visadas e expectativas. Segundo Barreto (2014), a literatura acerca desse assunto é complexa porque abarca uma série de fenômenos que ultrapassam o período histórico da Idade Moderna e não gozam de unanimidade quanto ao seu objeto. O uso desgastado do termo "moderno" somente aprofunda um abismo conceitual que divide contemporâneos sobre qual seria, em última instância, nossa situação como modernos, quando não há somente um ponto de vista a se contemplar.

No que concerne a sua definição filosófica tradicional, a Modernidade pode ser entendida como uma nova modalidade de reorganização temporal das ações humanas, regida pela centralidade da razão. Etimologicamente, o termo deriva do adjetivo "moderno", "que por sua vez remonta ao advérbio latino 'modo', que significa 'há pouco' ou 'recentemente'" (Barreto, 2014, p. 66). De forma que, se "moderno" diz respeito ao que ocorreu no tempo recente, o termo "modernidade" exprime o caráter por trás de tudo o que se contrapõe ao antigo, ao anterior, ao tradicional. Não há Modernidade sem a ideia de algum término porque dela se supõe encerrar a tradição: trata-se, portanto, de um conjunto de movimentos de rompimento e atualidade que oferecem privilégio e valor ao momento presente, libertando-o do peso do antigo.

Paz (1974/2013) belamente discorreu sobre esse traço da Modernidade ocidental em seu clássico "Os filhos do barro". Dando seguimento às reflexões baudelairianas sobre as expressões modernas, o autor considera que esse movimento é simultaneamente ruptura da tradição e tradição da ruptura, contradição fundante de perguntas e respostas acerca da condição humana. Daí compreendê-la como uma autodestruição criadora: "O que distingue nossa modernidade das modernidades de outra época não é a celebração do novo e surpreendente, embora isso também conte, mas o fato de ser uma ruptura: crítica do passado imediato, interrupção da continuidade" (Paz, 1974/2013, p. 17).

Viver a Modernidade como rompimento e atualidade pressupõe diferenças qualitativas e essenciais na representação de tempo. O efeito de seu processo de descontinuidade e negação do passado é a instauração de um clima de mudança perpétua, culminância da "manifestação mais pura e imediata da mudança: o agora. Um presente único, diferente de todos os outros" (Paz, 1974/2013, p. 18). Barreto (2014) arremata, discorrendo sobre as implicações de uma mudança na estrutura da concepção de tempo:

O passado deixa de ser uma instância normativa autolegitimadora para submeter-se a uma outra estrutura axiológica inaugurada pela novidade qualitativa atribuída ao tempo presente, diante da qual a tradição precisa ser ou justificada ou desqualificada criticamente, vale dizer: racionalmente (Barreto, 2014, p. 67).

Se efetivamente não há uma univocidade apriorística para definir, de maneira derradeira, as experiências do moderno, então, tal termo é sempre transitivo, temporalmente contraposto a alguma tradição eleita. Modernidade para quem? Posterior ou anterior segundo qual marco? O tempo, enquanto arquetípico, não pode ser enquadrado em um único padrão de imaginação. Passado, presente e futuro são instâncias simbólicas cujas relações diferem relativamente à cultura que as inventa. No que concerne à vivência do arquetípico temporal, quantidade considerável de culturas não-europeias e não-modernas, como civilizações africanas, asiáticas, mediterrâneas e ameríndias, focam no passado como modelo para o presente e para o futuro. Ou seja, organizam seus conjuntos de sentido não em torno do passado recente, mas do passado imemorial, mitológico, fundacional de suas cosmogonias: o passado dos passados, a origem das origens.

Tal como um manancial, esse passado dos passados flui continuamente, desemboca no presente e, confundido com ele, é a única atualidade que realmente conta. A vida social não é histórica, mas ritual; não é feita de sucessivas mudanças, mas consiste na repetição rítmica do passado intemporal. O passado é um arquétipo e o presente deve se ajustar a esse modelo imutável; além do mais, esse passado está sempre presente, já que volta no rito e na festa (Paz, 1974/2013, p. 22).

Ainda segundo Paz (1974/2013), a busca do padrão imemorial considera o passado como seu agente fundamental de mudança, tanto porque perfila um modelo, que é continuamente reiterado, quanto porque o rito o atualiza periodicamente. Quão discrepante tal visão se prova da concepção moderna de tempo: se para esta, o tempo é o portador da mudança, para as concepções não-modernas, o transcorrer do tempo é o agente supressor da mudança. Para a Modernidade, a perfeição está em um futuro vindouro com a efervescência da mudança do presente enquanto que, para muitas temporalidades não-modernas, é o passado vindouro, retorno imemorial, que está no horizonte futuro.

De acordo com Eliade (1969/2000), tal concepção não-europeia faz com que sua ideia de passado, imóvel e sempre presente, desdobre-se em espirais que podem ser detectadas em seus mitos e ritos como marcos cosmogônicos das idades do mundo. É o eixo axial da emergência do que ele chamou de sagrado, na esteira das ideias de Durkheim (1912/1989) e do próprio Jung (1912/2013). Eliade (1969/2000) compreende a temporalidade não-moderna como necessariamente circular e defende a tese de que os mitos de eterno retorno são, por excelência, cruciais operadores culturais da presença do tempo sagrado no tempo profano, a condição do numinoso na vida humana.

Em muitas religiões há repetição de rituais e cerimônias ao longo do ano que são correlatas a eventos míticos. O motor da história não-moderna, ao contrário da mudança tendente ao futuro, reside na repetição mítica da cosmogonia. Tempo e espaço de maneira frequente coincidem e se equivalem, fazendo com que a passagem de mundos seja igualmente uma passagem de tempo. Fins de mundos são fins de eras - a imaginação do fim do tempo como a própria imagem do fim do mundo. Hecatombe das divisões tradicionais da experiência kantiana, o tempo adentra o espaço, que passa a espelhar sua natureza errática ancestral.

Trata-se de importantes mitemas que, no olhar de Hillman (2007), nunca cessaram de comparecer, mesmo que sombriamente, na cena milenarista moderna. Fiel ao pensamento junguiano, Hillman postula em seu texto "Hermetic Introxication" que a secularização, longe de extirpar as narrativas não-modernas do horizonte imaginal coletivo, aproxima-se de uma estratégia de relegação das temporalidades cíclicas aos confins obscuros da imaginação através de atitudes monoteístas da era da razão. Por isso, poderia supor que visões cíclicas de tempo certamente não simbolizam o fim dos tempos como o fim derradeiro para todos os sujeitos, porque não o simbolizam de forma linear:

Toda essa gente [povos não-modernos] pode usar nosso calendário imposto, e muito embora suas datas tenham sido convertidas - se não pela religião, certamente pelo comércio - seus mundos não têm a ameaça de um fim dos tempos, porque não iniciam seu tempo de calendário com a aparição de Jesus. O pensamento milenarista sobre o fim no século 20, o próprio fim do tempo, pertence ao nosso livro sagrado ocidental, e àquele capítulo final de horror pavoroso, o Apocalipse, com sua visão catastrófica de uma conflagração universal (Hillman, 2007).

O fim dos tempos para a Modernidade ainda é, segundo Hillman, um fim dos tempos cristão, do Apocalipse retratado por São João de Patmos, porém, vivido em toda a sua plenitude literalista. Eis a novidade cristã: o tempo finito e irreversível, cuja salvação seria de ordem individual ou, como diria Santo Agostinho: "Cristo morreu só uma vez por nossos pecados, ressuscitou dentre os mortos e não morrerá mais" (Hillman, 2007). A fantasia do arrebatamento salvacionista dos eleitos, identificável em todos os séculos da dominação cristã em que escatologias foram produzidas, aponta a confirmação do fim para aqueles que "escolheram" a impureza. Mas a primazia do fim na alma, tanto iminente quanto imanente aos olhos do cristianismo, nunca se atenuou no plano da consciência moderna, não sumiu de seus temores e horizontes psíquicos. Tornou-se, por sua vez, sombria: em tempos de apego pelo agora como cornucópia inesgotável de prazeres, o "infantilismo" moderno, a temporalidade apocalíptica cristã oferta de maneira temida a recordação de que toda matéria se esgota.

 

O sequestro do tempo

A Modernidade implica a invenção de cânones da razão crítica para cadenciar suas novas temporalidades e organizar seus novos valores e ideias. Trata-se de "uma categoria que exprime uma forma típica de leitura do tempo pela razão" (Barreto, 2014, p. 66). A secularização do mundo moderno também relegou o mítico à sarjeta da verdade ou, em conformidade com Lévi-Strauss (1962/2011), constituiu o apogeu do pensamento analítico e domesticado em detrimento do pensamento analógico e selvagem. Pode-se afirmar que há uma vinculação intrínseca entre Modernidade e razão crítica. A assunção de centralidade da razão no simbólico, quase como sinônimo de Modernidade, é uma experiência especificamente ocidental e devedora da experiência filosófica grega, que se pensava enquanto civilização da razão. Entretanto, foi sobretudo após o Iluminismo que coube à razão o papel de deslocar o tradicional do seu patamar de centralidade na construção do mundo, por meio da sustentação das posturas modernas que os novos sujeitos de um mundo liberal deveriam adotar.

H. Vieira (comunicação pessoal, 19 de maio de 2020), no contexto brasileiro atual, é uma das pensadoras mais potentes ao relacionar o tema à questão decolonial. De acordo com Vieira, a Modernidade é um projeto de instalação de um funcionamento lógico-totalizante que segmenta o mundo e as formas de existência em conformidade a um sem número de dualismos valorativos. Não há melhor Modernidade, ou melhor mundo, do que no próprio espelho da razão autossuficiente. A identidade europeia, munida dos poderes e saberes moderno-coloniais de sua razão, fundou alteridades não-recíprocas em relação a si própria: homens e mulheres, ricos e pobres, cultura e natureza, brancos e negros, saudáveis e doentes, humanos e animais, providos e desprovidos de alma, puros e impuros moralmente, the west and the rest. Dessa forma, é o próprio valor das vidas que é escrutinado no julgamento europeu dos corpos que importam.

Inclusive, a partir do século XIX, continua H. Vieira (comunicação pessoal, 19 de maio de 2020), já sob a égide do positivismo, tal segmentação foi estabelecida dentro de uma linha positiva de evolução para os povos e sujeitos que igualmente funda um antes e um agora para o humano. Há pré-histórias, antiguidades, idades médias e idades clássicas, mas somente o período da voga moderna-colonialista europeia pode arrogar para si o patamar de ápice da história humana. É nesse sentido que podemos compreender que a "fantasia evolucionista" das epistemologias do Norte em muito extrapolaram o evolucionismo científico de Darwin e passaram a dar uma nova tônica aos racismos e patriarcados desde o campo da imaginação da vida. A partir de um eurocentrismo de base, as ciências humanas nascentes projetaram seu próprio senso de superioridade no ato performativo de nomear quais culturas são primitivas e quais culturas são avançadas, tendo por métrica seus próprios valores, ou ainda, na leitura de McClintock (1995/2010), um desenvolvimento que é também "panóptico", que imagina poder contemplar em um só golpe de vista todas as suas diferenças subsumidas a um único eixo de evolução.

Quijano (2005) relaciona tal emergência a uma colonialidade do saber própria da Modernidade. Distingue, para tanto, o colonialismo da colonialidade: o primeiro termo diz respeito à experiência histórica dentro da qual se subentende o controle econômico e político da existência, enquanto que o segundo termo constitui a lógica que torna possível o projeto moderno - a maneira como esse conjunto de relações interfere no vivo, mediante a segmentação valorativa, via práticas políticas disciplinares de subjugação. Mignolo (2005) acrescenta que a colonialidade constitui a face obscura, não-dita, da Modernidade, o pressuposto que não ousou afirmar seu nome, agindo desde as sombras na reorganização geopolítica do mundo agora laicizado, disciplinado e liberal. A colonialidade dos saberes, poderes e discursos é também uma colonização do imaginário humano.

A produção das alteridades subalternas na Modernidade também pode ser entendida como uma valoração negativa da diferença que não vive ou comunga dos valores racionalistas da identidade europeia. Por isso, a Modernidade e o pensamento moderno nascerem quando a Europa encontrou a América. Faz parte do percurso do europeu nascer como europeu e também como moderno, desenvolver a noção de que seu outro é também seu inferior. Demandou-se, assim, a invenção de um outro não-europeu e não-moderno para sua autoafirmação como europeu e moderno. Essa segmentação necessita de uma codificação que atua criando outro radical de si, inferior e também primitivo.

Segundo H. Vieira (comunicação pessoal, 19 de maio de 2020), a sobrecodificação da ideia de raça e cor foi uma das formas mais patentes dessa estratégia de segmentação da vida. Se antes o critério de raça estava organizado na lógica da etnicidade, ele passou a se organizar como racialização do corpo. Os racismos anteriores, de ordem sumamente cultural, tornaram-se então calcados em crenças biologistas a respeito de diferenças intrínsecas entre povos e promulgou-se, através de correntes vitorianas de renome, saberes pseudocientíficos como o darwinismo social de Spencer, a eugenia de Galton, a antropologia forense de Lombroso, entre outros. No mais, são verdadeiros laboratórios do fascismo que irromperiam no século seguinte e que só encontrariam contraposição ferrenha pela via das antropologias críticas ao evolucionismo.

A produção de identidades estáveis, concebidas desde o seio dos saberes modernos, é a consequência mais ostensiva da razão segmentária moderna, assim como sua contestação, por parte de grupos minoritários. Contudo, ainda que a Modernidade seja frequentemente descrita como era das revoluções, campo constante de disputas de narrativas, poderes e imaginários, é nos seus supostos fins que a angústia do esfacelamento das fronteiras ganha imensa voga. Nas fronteiras políticas, culturais ou subjetivas, a destruição dos antigos limites para a reconstrução dos novos dá palco a tragédias anunciadas e ao desenvolvimento de toda forma de essencialismos, que estiveram presentes no fin de siècle europeu, assim como hoje, traduzindo-se no nível pessoal como pânico, recuos narcísicos, sentimentos difusos de si, purismos paranoicos. Showalter (1990/1993), no trecho a seguir, descreve a celeuma do trânsito das fronteiras do fin de siècle em termos que poderiam se encaixar ao nosso tempo:

Em períodos de insegurança cultural, quando surgem temores de regressão e degeneração, adquire extrema intensidade o anseio por controles mais estritos quanto aos limites da definição dos sexos, bem como das raças, das classes sociais e das nacionalidades. Se as diferentes raças puderem ser colocadas, em seus devidos lugares, se as várias classes sociais puderem ser contidas nos setores adequados das cidades e se homens e mulheres puderem ser fixados em suas esferas isoladas, muitos esperam que haja possibilidade de se evitar o apocalipse, e poderemos preservar um reconfortante sentido de identidade e permanência diante esse implacável espectro de mudança milenar (Showalter, 1990/1993, p. 23).

Para López-Pedraza (2000), a relação tortuosa com a movência de fronteiras se deve às origens arquetípicas que a Modernidade evocou como suas próprias. Fazendo referência aos Titãs gregos, os seres mitológicos que nos antecederam na habitação humana do mundo e que foram sepultados pela hegemonia humana sobre a natureza, o autor conceitua a mentalidade titânica como uma forma de adoção irrestrita de um imaginário de poder que colocaria a humanidade, ou um grupo de humanos, no controle da vida e da morte. A húbris, o "descomedimento", é uma de suas principais características, na medida que tal presunção, típica de heróis, só poderia ser prerrogativa dos deuses, das forças da ordem e do caos cujo equilíbrio permitiria o mundo existir. A húbris, no mundo grego, inclusive, era imediatamente retribuída pelo castigo da nêmesis que, de forma distinta da vingança, tinha como efeito o retrocedimento ao período anterior dos limites ultrapassados. Sua punição, portanto, implicava o retorno aos caminhos traçados pelo destino, de responsabilidade das Moiras.

O titanismo moderno pretende orgulhosamente ultrapassar todo o horizonte de catástrofe humano, desprovido de qualquer senso de temperança ou cautela e, por isso mesmo, sombriamente a promulga. Em um registro mitológico cristão, de forma análoga, poderíamos afirmar que tal mentalidade considera um retorno ao paraíso perdido, estado de plenitude, de maneira ingênua, saudosista e irresponsável. Os custos de viver o presente em detrimento do futuro, atitude típica da infância, são precisamente a instauração da neurose como horizonte humano, a produção unilateral de consciências socioculturais, dais quais derivariam distintas modalidades de "ansiedade cultural", entre elas, a projeção da alteridade como necessariamente violenta.

Tal ansiedade também resultaria em um processo de empobrecimento simbólico na medida em que se constitui como uma atitude negativa ao diverso ou, nas palavras de López-Pedraza (2000), da consideração de que "existem áreas em nossas psiques, ou em nossas vidas, em que não temos reflexão porque não há imagens e, por isso, não temos sentimentos para avaliar". O poder titânico é desprovido de um conteúdo apriorístico e, de forma semelhante à ideia de performatividade do discurso, produz suas realidades por efeito de sua compulsoriedade. Ele forja e legitima o poder pelo poder e, ironicamente, produz as tensões que do alto de sua prisão visa a sanar. É na aposta de superação de tal vacuidade, ao mesmo tempo excesso, dos nomes vazios do titanismo que trabalhamos, de maneira incessante, ao nos voltarmos para as políticas e imaginações de nomeação do mundo.

 

Os nomes do mundo

Eu não sou pós-humana, eu sou uma compostista (Haraway, 2016, p. 55 [tradução nossa]).

Tal solipsismo violento não passou batido pelo pensamento crítico das últimas décadas que se dedica a pensar novos conceitos e a nomear as sombras de nossa Modernidade terminal. É na alçada dessa crítica que localizamos as múltiplas tentativas de definição de um antropoceno, período não histórico, mas geológico, das mudanças perpetradas na Terra pela presença humana e também da força destruidora do ideário capitalista. Tratando-se de um conceito que não poderia vir de outro período que não o da Modernidade, ele já nasceu da premissa comum de que o fim do mundo é o horizonte absoluto em razão da ação humana tornar-se desvairada, insustentável e predatória após a Revolução Industrial e o advento do capitalismo.

Chakrabarty (2013) é um dos autores mais significativos do debate contemporâneo acerca do antropoceno e do seu esgotamento. Para ele, são os fatores antropogênicos que contribuem para o aquecimento global e o esgotamento dos recursos naturais, como a queima de combustíveis fósseis, a industrialização da vida animal, o desmatamento florestal e o descarte indevido de detritos, entre tantos outros motivos conhecidos pela voga ambientalista.

O antropoceno, fruto da ação humana de arrogar para si o patamar de centralidade do tema da vida no planeta, sobrepõe sua própria temporalidade à temporalidade da vida não-humana, transformando a maneira como o natural é apreendido. Parte da dificuldade deve-se às segmentações do saber sobre a vida, bem como à hierarquização especista, que pôs a agência humana em patamar de maior valor. A Modernidade, ao instaurar a separação entre natural e cultural, tolheu a possibilidade de a humanidade experimentar-se enquanto espécie.

Haraway (2016) soma ao argumento ao esclarecer, em seu livro "Staying with the trouble", que seria ingênuo conceber um antropoceno como distinto de um "capitaloceno" e um "plantationceno". Segundo a pensadora, o excepcionalismo humano aliado ao individualismo constituem traços fundamentais do mesmo conjunto de saberes e poderes que resultaram nas empreitadas capitalistas e colonialistas na constituição do nosso mundo. Nesse bojo, a invenção discursiva-conceitual moderna fez do Homo sapiens o produto chefe das equivalências do humano como espécie; do "antropos", a única forma de humanidade; e dessa única forma de concepção do humano, a culminância do projeto moderno, em outras palavras, fez da Europa a medida temporal e racional para a evolução da espécie humana na Terra. À psicologia que deseja ultrapassar seu véu especista, conviria nomear-se também como espécie de forma a superar a racionalidade antropocêntrica e, com isso, ensejar novas materialidades, modalidades de imaginação e formas de representação do mundo enquanto entidade viva e inter-relacional de formas de vida humanas e não-humanas.

Stengers (2015) é, por excelência, uma das maiores interlocutoras da catástrofe naquilo que ela possui de polissêmico. Não à toa, foi uma das coordenadoras do importante colóquio internacional "Os mil nomes de Gaia", ocorrido em 2014, destacando a necessidade de multiplicar as perspectivas de mundo para melhor compreender sua infirmitas. Em sua leitura, deve-se "nomear Gaia" para estar à altura dos desafios de ser "terrano" na era das catástrofes, quando a barbárie não é mais opção. Nomeá-la, ao contrário de meramente descrevê-la, é reconhecê-la enquanto força avassaladora e operadora suprema da vida que se intromete cegamente no antropoceno para lhe retribuir o dano.

Diferentemente de uma "intrusão de Urano ou de Cronos", reservar a autoria da catástrofe a Gaia consiste, de antemão, em uma iniciativa de difração do antropoceno. A Gaia de Stengers (2015) elegeu a antiga deusa grega da Terra como símbolo de um novo conjunto de estudos que visavam a criticar as teorias científicas que separavam o humano da natureza pela via das densas relações entre os seres vivos, o oceano, a atmosfera, o clima, a fertilidade do solo, entre outros elementos. "Nomear Gaia" é restituir ao mundo seu estatuto de entidade viva, interconectada, em contraposição às visões instrumentais e dicotômicas que foram condição para o surgimento dos projetos modernos, capitalistas e colonialistas.

Stengers (2015) considera que Gaia não representa uma deidade em seu sentido literal da Terra, mas uma ordem de perspectivas tornada sombria pela ordem simbólica patriarcal que retorna, cabendo a nós, portanto, finalmente "nomeá-la". Gaia representa a terra, mas também o desterro. Representa a vida, mas também a morte, porque é senhora de ambas. O começo e o fim, mãe imaginal dos tempos circulares e espirais, como os mistérios da Deusa Branca, de Sofia, de Perséfone. Acima de tudo, um feminisno de abrangência diametralmente oposta às representações patriarcais intensificadas pela Modernidade, feminismo que antes era respeitado como a pedra angular da própria possibilidade do existir.

Nessa toada, pode-se afirmar que a ferida da terra causada pelo antropoceno é também uma ferida causada a uma ordem simbólica feminina primordial pelo patriarcado: até nas encruzilhadas do fim do mundo, encontramos ele novamente, o patriarcado. Tal ideia em nada deve às velhas nomenclaturas coloniais das terras autóctones enquanto terras virginais, como estudado por McClintock (1995/2010), visto que tais ideias desproviam o feminino, de antemão, de qualquer númen ou simbolismo da potência ancestral. Afirma Stengers (2015):

Gaia é agora, mais do que nunca, a bem nomeada, pois se no passado foi honrada, foi por ser temida, aquela a quem os camponeses se dirigiam pois sabiam que os homens dependem de algo maior do que eles, de algo que os tolere, mas de cuja tolerância não se deve abusar. Ela era anterior ao culto do amor materno que tudo perdoa. Uma mãe, talvez, mas irascível, que não se deve ofender. E ela é anterior à época em que os gregos conferem a seus deuses o sentido do justo e do injusto, anterior à época em que eles lhes atribuem um interesse particular por seus próprios destinos. Tratava-se, antes, de ter cuidado para não ofendê-los, para não abusar de sua tolerância (Stengers, 2015, p. 37).

Encontramos em Whitmont (1982/1992) um estudo chamado "O retorno da deusa", que discorre sobre as consciências e simbolismos do escopo de um feminino primordial que, particularmente na contemporaneidade, é tornado sombrio pelo desenvolvimento patriarcal da cultura do Ocidente e retorna como violência, angústia, desejo. Tal retorno, em franca consonância com o que Stengers (2015) defenderia décadas depois, passa também pela revolta de dionisíaco, deus das mulheres, do êxtase e das mesclas, em relação ao monoteísmo apolíneo moderno, fundador da tradição ocidental das estabilidades, dos distanciamentos, assim como uma possível hipóstase do patriarcado. O apolíneo, em sua leitura, também diz respeito ao movimento de estruturação identitária pela via lógica, que não ofereceria espaço para suas diferenças senão através do afastamento, do purismo e da identificação pelo igual.

Hillman (2006), entre muitos que investigaram as fantasias formativas do contemporâneo, também dedicou parte considerável de suas obras finais precisamente ao projeto de "desnarcisificação" do sujeito psicológico. De porte da iniciativa de transpor os símbolos do arquétipo do Si-mesmo para as imagens da comunidade humana, Hillman debruçou-se sobre muitos textos que tratavam das figuras míticas da natureza e da possibilidade de retorno da beleza à alma coletiva, nos tempos de globalização. Com isso, desejava criticar o subjetivismo inflado e realçar a urgência do sujeito renascer como cidadão em meio ao coletivo e não em distância a ele. Também realizou apontamentos salutares para a fundamentação de uma clínica analítica do socius; essa clínica social foi a ideia por trás das ideias, a ficção por trás das ficções, a fantasia por trás das fantasias, sempre visando a retirar a alma da mesmidade para lançá-la a sua alteridade salutar.

Por saber dos perigos literalistas da concepção mecanicista e linear de humanidade moderna, Hillman foi fiel ao espírito de sua própria psicologia politeísta, resgatando do próprio bojo humanista a estonteante concepção de anima mundi. Assim, inspirado pelo neoplatonismo renascentista de Ficino, Hillman (2006) discorreu da arquitetura ao urbanismo, do espelho à janela, das políticas da beleza aos lugares de prática, concluindo que a ecologia é um dos braços mais fundamentais da visão arquetípica de mundo, seja no plano material, seja no plano semiótico. Sua premissa foi inspirada também em Tales de Mileto, para quem "o mundo está repleto de deuses", isto é, intensamente populado por um pandemônio de imagens que incluem complexos, "little people", daimons, seres imaginais, deuses, semideuses, outros "eus" além do Eu, personificações, figurações.

A anima mundi não supõe centralidade humana no esse in anima; combate frontalmente a fantasia antropogênica que priva o mundo de encanto, personalidade e alma, que entende que sua natureza é "morta" e inanimada, desprovida de movimento e afecção. O mundo é encantado pela sua história, pelas suas localidades, seus trânsitos e conflitos. A anima mundi é também, de certa forma, tectônica, pois cria e recria seus territórios, os faz colidir e se afastar, os sobrepõe e os soergue. Mas à psicologia não caberia somente ser sismógrafa, é necessário que igualmente seja o terremoto. Só há possibilidade de vislumbrá-la quando abarcamos em nossa visão a natureza que não é estática, mas poética. Assim, no lugar da estanque "psique objetiva", conceito que assombra o mundo como os arcontes do eterno, a anima mundi nos convida a atentar para seus complexos situados e animados por jogos dinâmicos de atores e imagens.

O próprio resgate de uma anima mundi também constitui uma tentativa de pensar a psicologia, e as fantasias da psicologia, desde o lugar das singularidades complexas em seu próprio mérito epistemológico e político. O resgate de uma visão animada de mundo, para Hillman, contudo, precisa assumir uma pluralidade horizontal de visões a fim de melhor lidar com os seus problemas. Não se trata da vertigem do excesso "zumbificante" de informações que instauram paralisia e pânico, da referida "introxicação hermética", muito menos do fanatismo "hestiano", que responde ao múltiplo pela via do recrudescimento conservador político. Ambas as posturas - o excesso de informações e o recrudescimento conservador político - vigoram no campo de disputas narrativas, mas são igualmente formas insustentáveis de existir, oriundas das fantasias milenaristas do fim. Ambas constituem vetores de criação do imaginário do fim do mundo moderno, seus nascimentos e ocasos:

Os sintomas da limpeza étnica, tribalismo e xenofobia tentam conter esse "futuro." Eles afirmam o "local" como uma proteção contra as mudanças que vêm com o "tempo". Eles reafirmam o primado do lugar sobre o tempo como o princípio dominante mais importante para ordenar a existência. Eles tentam colocar um fim no tempo. E isso - o fim do tempo - é precisamente a causa das nossas ansiedades milenaristas (Hillman, 2007).

 

Considerações finais

A catástrofe catalisa de maneira compensatória o florescimento da incerteza, imperando na produção de subjetividades precisamente onde antes havia a tradição humanista, com o estandarte da racionalidade, da crítica, da consciência e da emancipação intrínsecas. Não deixa de ser, ademais, a própria proliferação de heterogeneidades, entendida por Paz (1974/2013) como icônica e necessária à experiência moderna, mas que nunca é totalmente desejada ou sustentada por aqueles que, em primeiro lugar, difundiram os valores da positividade da mudança.

Em oposição à soberania secular do sujeito moderno, constatamos que muitos "outros" despontam em busca de visibilidade e legitimação, nem sempre pautados pelos velhos binarismos do pensamento moderno. Perante essa multiplicação de alteridades sobre o solo ainda movediço da derrocada dos projetos de modernidade, vemos a diferença firmar-se como tônica privilegiada para problematizar quais outros mundos, ou fins de mundo, podemos ainda inventar. E não deveria nos caber nadar contra essa maré.

O compromisso da psicologia junguiana é múltiplo, não deveria findar na reflexão de gabinete, muito menos na redução indigna e violenta do impacto da catástrofe às imagens que suscita. Compreendemos que esta reflexão também contribui para assumirmos as imagens em sua agência própria, daimônica e personificada, para pensarmos, em momentos posteriores, sobre a potência concreta e material de nossas próprias ficções. Assim, diante do exposto, ver através da catástrofe da Modernidade, desde suas raízes, do obscuro e do adverso, implica perguntar para quem tais valores foram pensados, assim como qual mundo, material e metaforicamente, competiu-lhe criar.

O ideário moderno titânico preconiza um único mundo possível, aquele reflexo imponente que supõe encontrar em seu espelho distorcido. Preconiza igualmente um único sujeito possível, a quem generalizou como "ser humano", mesmo que, nos bastidores, praticasse o terrível adágio orwelliano de que alguns seres humanos são mais seres humanos que outros. O projeto moderno de autoafirmação violenta, que desde o início projetou ao seu racionalismo exclusivista a premissa de "iluminar" as trevas da ignorância, vive sua alteridade de maneira sombria. A catástrofe cumpre, pois, um papel de enantiodromia violenta ao trazer à luz do dia os mundos temidos que precisaram ser destronados ou fagocitados para que o mundo moderno existisse.

Mas, ao mesmo tempo, ainda nos cabe pensar que, se o tempo linear e terminal não é a única temporalidade de que dispomos, em que pese a sua força constitutiva, então podemos nos responsabilizar por melhores práticas e ficções para o nosso futuro. O problema do fim do mundo certamente não é um problema exclusivo da ontologia naturalista da Modernidade, mas ele traz questões específicas e, quando promulga práticas ecocidas e genocidas, transborda para outros mundos e para outras ontologias, como nos mundos amazônicos, em que ele também é iminente. De forma paradoxal, talvez seja um esforço particularmente psicológico o de compreender a importância de acelerarmos o fim de alguns mundos para finalmente podermos adiar o seu fim derradeiro. O que torna central as provocações de Krenak (2020): quem vive o fim de mundo enquanto catástrofe?

 

Referências

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Recebido: 16 ago 2022
1a revisão: 31 out 2022
Aprovado: 09 nov 2022
Aprovado para publicação: 22 nov 2022

 

 

Conflito de interesses: O autor declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Daniel Françoli Yago - Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP; graduado em Psicologia pela PUC-SP. Psicoterapeuta junguiano, tradutor e professor do curso de Psicologia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Dedica-se a estudos feministas e de gênero, assim como ao ensino crítico da psicopatologia. E-mail: danielyago@gmail.com