ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2022.vol07.0005

Em carne viva: impactos psicológicos da perda da casa após um desastre natural

 

An open wound: psychological impacts of the loss of the home after a natural disaster

 

En carne viva: impactos psicológicos de la pérdida de la casa después de un desastre natural

 

 

Angelita Corrêa SCARDUAI; Carol SCOLFOROII; Gustavo Reis MACHADOIII; Paula Serafim DARÉII

IVitória, ES, Brasil
IISão Paulo, SP, Brasil
IIICampo do Meio, MG, Brasil

 

 


RESUMO

No Brasil, todos os anos, o alto volume de chuvas provoca inundações, enxurradas e deslizamentos de terras que resultam em desastres naturais nas cidades. Além das mortes, o país vê o número de desabrigados aumentar a cada ano, causando muito mais do que danos materiais. Quando essas tragédias levam à perda da moradia, enormes prejuízos físicos, emocionais e mentais entram em cena. Sob a perspectiva da psicologia analítica, este artigo buscou refletir sobre os efeitos psicológicos da perda da habitação. Utilizando como base pesquisa bibliográfica e documental, o trabalho percorreu aspectos históricos e culturais, a fim de revelar de que forma a população mais pobre tornou-se a classe mais atingida pelo problema. Instalada em locais vulneráveis aos desastres e vítima da falta de investimentos estruturais, essa população está constantemente exposta à ameaça de perder seu abrigo. A casa sustenta parte considerável da imagem de uma pessoa no mundo, situando sua vida tanto geograficamente quanto psicologicamente. Para diferentes autores, esse espaço físico projeta a singularidade das trajetórias pessoais e profissionais, apresentando-se também como um instrumento de individuação. O morador é capaz de reproduzir na casa a maneira como lida com seus conteúdos internos, em uma relação de continuidade. Concluiu-se que testemunhar o esvaziamento desse lugar ressoa no indivíduo a sensação de agonizar pela própria existência, trazendo à tona as inseguranças primárias do medo da rejeição e do abandono. Logo, quando uma casa desmorona, pode arrastar consigo as projeções de passado, presente e futuro de uma pessoa.

Descritores:  habitação, identidade social, trauma emocional.


ABSTRACT

Every year in Brazil, high volumes of rain cause floods, flash floods and landslides that result in natural disasters in cities. Besides the deaths, the country watches the number of homeless people increases every year, causing much more than material damages. When these tragedies lead to the loss of the home, enormous physical, emotional, and mental damage come into play. From the perspective of analytic psychology, this article attempted to reflect on the psychological effects of the loss of home. Based on bibliographical and documental research, this paper examined historical and cultural aspects to reveal in what way the poorest population became the class most affected by this problem. Settled in locations highly vulnerable to natural disasters, they are victims of the lack of investments in proper infrastructure and are constantly exposed to the threat of losing their shelter. The home holds a considerable importance for the persons' image in the world, providing a place for their lives both geographically and psychologically. For different authors, this physical space projects the uniqueness of personal and professional trajectories, also presenting itself as an instrument of individuation. Dwellers are capable of reproducing in the home the way they deal with inner contents, in a relationship of continuity. It was concluded that witnessing the destruction of the home elicits in the individual a sensation of agony for his own existence, bringing to the surface primal insecurities such as fear of rejection and abandonment. Therefore, when a house falls apart, it can drag with itself projections of the past, present and future of a person.

Descriptors: housing, social identity, emotional trauma.


RESUMEN

En Brasil, todos los años el gran volumen de lluvia provoca inundaciones, aluviones y deslizamientos de tierras que provocan desastres naturales en las ciudades. Además de las muertes, el país ve la cantidad de personas sin hogar que va en aumento cada año, causando mucho más que daños materiales. Cuando esas tragedias llevan a la pérdida de la vivienda, enormes perjuicios físicos, emocionales y mentales entran en escena. Desde la perspectiva de la psicología analítica, este artículo procuró reflexionar sobre los efectos psicológicos de la pérdida de la vivienda. Utilizando como base la investigación bibliográfica y documental, el trabajo recorrió aspectos históricos y culturales para revelar de qué forma la población más pobre se convirtió en la clase más afectada por el problema. Instalada en lugares vulnerables a los desastres y víctima de la falta de inversiones estructurales, esta población está constantemente expuesta a la amenaza de perder su hogar. La casa sostiene una parte considerable de una persona en el mundo, situando su vida tanto geográficamente como psicológicamente. Para diferentes autores, ese espacio físico proyecta la singularidad de las trayectorias personales y profesionales, presentándose también como un instrumento de individuación. El morador es capaz de reproducir en la casa la manera de hacer frente a sus contenidos internos, en una relación de continuidad. Se concluyó que ser testigo de la destrucción del hogar incita en el individuo una sensación de agonía por la propia existencia, trayendo a la superficie la inseguridad primaria del miedo, del rechazo y del abandono. Por eso, cuando una casa desmorona, puede arrastrar consigo las proyecciones del pasado, del presente y del futuro de una persona.

Descriptores: habitação, identidade social, trauma emocional.


 

 

Introdução

A evolução do abrigo à casa como conhecemos hoje reflete as transformações vividas pelo Homo sapiens em sua jornada na Terra. O assentamento em um território para o cultivo do próprio alimento trouxe a perspectiva de permanência e continuidade, possibilitando a emergência do sentimento de apropriação sobre o espaço habitado. A construção dessa relação de apego ao lugar deu-se em paralelo à formação identitária, na qual a constituição do imaginário individual e coletivo, sobre si mesmo e sobre o mundo, associou-se à condição de pertencimento ao lugar aonde a vida cotidiana e a história se desenrolam. Assim, a trajetória evolutiva do sapiens e sua relação com o lugar permitiram que ambos se moldassem.

O lugar como um espaço marcado pela experiência direta do mundo e do ambiente vivido pelo humano é o que advoga o geógrafo humanista canadense Edward Relph. O autor tem se dedicado ao estudo da relação entre lugar e identidade como elemento essencial para a compreensão do mundo e de seus significados. Relph (1976) defende que qualquer análise do lugar deve levar em consideração o caráter subjetivo da experiência daqueles que o habitam e não apenas o objeto em si. Para ele, a concepção de lugar deriva tanto do envolvimento pessoal quanto da localização e da paisagem.

Proposto pela geografia humanista, o lugar como mundo vivido mostra-se uma experiência em camadas concêntricas, na qual cada pessoa habita da casa para a vizinhança, para a cidade, a região e a nação (Buttimer, 1982). Nesse sentido, habitar não se define apenas pela ocupação de um determinado espaço físico. Habitar está diretamente relacionado a uma inserção no ambiente, por meio da qual conseguimos atender a nossas necessidades de pertença e de sobrevivência. Isso inclui viver de um modo pelo qual se está adaptado aos ritmos da natureza (Buttimer, 1982). Tal condição do habitar vem sendo sistematicamente violada desde a formação das cidades, onde o grande contingente de habitantes e a falta de planejamento para abrigar a todos levam à ocupação de lugares de risco para estabelecer moradia.

É sobre habitar áreas de risco, a possibilidade de perder a casa e os efeitos que essa perda pode ter sobre a psique das vítimas que discorremos neste estudo exploratório e descritivo, elaborado a partir de pesquisa bibliográfica sobre os temas que permeiam a relação do humano com seu lugar de moradia. Sob a perspectiva junguiana, buscou-se traduzir a força da subjetividade que sustenta o lugar da casa na psique de quem se vê destituído de tudo que o situava na rotina diária, desse sujeito que se descobre assombrado pela força da natureza, força esta que reivindica seu próprio lugar de direito nos espaços aos quais as pessoas se acostumaram a pertencer.

 

Riscos à moradia e às populações

De acordo com Spink, risco "é definido, na literatura, como a possibilidade de que ações humanas e eventos naturais produzam consequências que gerem danos a coisas que são valorizadas pelos seres humanos" (2018, p. 51). Ainda segundo Spink (2018), os riscos podem ser: hidrometeorológicos e geológicos, quando se referem a fenômenos naturais que podem ser atmosféricos e/ou tectônicos; biológicos, quando ligados à microrganismos patogênicos ou tóxicos; riscos tecnológicos, como poluição, rompimento de barragens, explosões ou derrame de substâncias; e degradação ambiental, que pode vincular-se aos processos de riscos naturais.

Destaca-se aqui que desastres naturais são resultado da associação de ameaças da natureza, com uma população desprotegida, vulnerável do ponto de vista social e ambiental e com a falta de ações para lidar com riscos. Do impacto do acontecimento à reabilitação das pessoas atingidas pode levar anos (Freitas et al., 2014).

Entre os diversos fatores associados ao risco, a pobreza se soma à degradação ambiental e à alta concentração de habitantes nos centros urbanos. A pobreza é tanto um motor quanto uma consequência de desastres, e os processos que aumentam a pobreza relacionada ao risco de desastres são permeados de desigualdades.

 

Espaço urbano - a constituição das cidades e a exclusão

Dentro de um contexto histórico, o desenvolvimento das cidades é marcado pela exclusão social no espaço urbano. A cidade nunca foi um espaço para todos, fato que não diz respeito somente aos países subdesenvolvidos. Referindo-se ao contexto brasileiro, a cidade consolidou-se sob a égide de muitas influências portuguesas, como apontou Reis Filho (1978). De fato, em todo o mundo, a influência do colonizador sobre o colonizado reaparece, diferenciando-se, às vezes, na proporção ou em um problema específico. Sob o domínio português, as cidades brasileiras cresceram espontaneamente, sem planejamento, com o uso de seus espaços fortemente atrelado às relações de poder e de exclusão dos mais pobres.

A ocupação não-planejada do território urbano persiste até hoje. A ocupação desordenada de encostas pelas populações mais pobres, seja nos grandes centros, seja em cidades litorâneas ou montanhosas, atualiza em níveis inconscientes a estratégia colonial de expulsão dos escravos libertos para as áreas periféricas e não urbanizadas das cidades. Ao observarmos as grandes cidades do Brasil contemporâneo, é possível encontrar uma paisagem que se difere pelas inúmeras formas de morar, deixando claras as condições econômicas favoráveis ou desfavoráveis, assim como as miseráveis. O direito à moradia é destinado a todo ser humano, assim como o direito à cidade, ambos legitimados pela Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1948 (Unicef, n.d.) e reafirmado nacionalmente na Constituição Federal (1988) e na Carta Nacional do Direito às Cidades de 2001 (Libório & Saule Júnior, 2022, abril).

É fato que a qualidade da moradia está vinculada diretamente ao processo de desenvolvimento humano. Todavia, mesmo diante de tanta importância, a moradia está longe de ser um direito de todos, fato que evidencia a segregação do território nas cidades (Maricato, 2002; Sacks, 1999; Villaça, 1986). Com o crescimento desenfreado das cidades e as áreas urbanizadas cada vez mais caras, parte da sociedade - aquela que não possui renda suficiente para aquisição dessas moradias na cidade formal - ocupa as áreas sem valor comercial, como encostas, bordas de rios e córregos, dando origem às favelas, aos aglomerados por vezes disformes, aos cortiços: espaços muito definidos em inúmeras referências bibliográficas como espaços de ausência, destituídos de infraestrutura urbana e entendidos pelo restante da população como a cidade informal (Bonduki, 1998; Fernandes, 2011; Jacobi, 2003; Santos, 2010, 2014; Sacks, 1999; Villaça, 1986).

É na "cidade informal" onde se constitui grande parte das áreas de risco, que não deveriam ser ocupadas. Mas, uma vez que isso acontece, seu gerenciamento deve ser efetivo para a prevenção de acidentes. A cidade de Petrópolis mostra que essa não é a realidade.

Em 1850, houve uma enchente em Petrópolis que resultou em 30 mortos. Em 1966, outra grande enchente, com 100 mortos e a perda de 200 casas. Em 1988, foram 171 mortos. O maior acidente até o momento ocorreu neste ano de 2022, quando uma chuva atingiu a marca de 259,8 milímetros em seis horas, e a cidade viu a vida e a história das pessoas deslizarem por suas encostas - foram 233 mortes. Segundo o professor Nabil Bonduki, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo, as perdas poderiam ser minimizadas, mas somente a desocupação destas áreas evitaria os desastres (Tragédia em Petrópolis, 2022).

O impacto dos desastres é ainda maior sobre os mais pobres, pois, além das perdas de vidas e de condições de saúde, é comum haver a perda total dos meios de subsistência. A habitação é geralmente o principal bem econômico das famílias urbanas pobres, fornecendo não apenas abrigo e a segurança pessoal, mas também seu sustento. Danos ou perdas à habitação, juntamente com bens domésticos essenciais, portanto, colocam uma enorme pressão sobre as economias dessas famílias. Em desastres como o de Petrópolis, por exemplo, as perdas podem ser incalculáveis, uma vez que o bem material mais caro às vítimas - suas casas - também é, em grande parte, avaliado pelo valor simbólico de toda uma existência. A dor que essas pessoas precisam suportar é a da necessidade de se abandonar todas as referências e a concretude de uma casa, que materializa a sobrevivência cotidiana, o lugar no mundo e a história de cada um.

 

A perda da casa

Nos casos de desastres, naturais ou não, as perdas vêm acompanhadas pelo trauma, caracterizado pela incapacidade da psique em absorver e elaborar impactos que determinadas situações podem causar nas pessoas (Laplanche & Pontalis, 1986). É como se o indivíduo perdesse literalmente "seu chão", suas bases. Para Gomes e Cavalcante (2012), a repetição de uma tragédia/desastre, no mesmo local, parece acentuar uma reação de conformismo e congelamento dos sentimentos. Em um primeiro momento, as perdas reportadas são de bens materiais, mas, subsequentemente, aparecem as perdas daquilo que a casa representa como "segurança, intimidade, dignidade" (p. 726).

A perda da casa causa um grande impacto na vida das pessoas e a mudança de moradia, em geral para lugares precários, comumente vem acompanhada do chamado transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A casa como local de segurança e privacidade é desconstruída e o que é particular perde sua identidade na indiferenciação do todo. Os sintomas de TEPT podem variar, mas o trauma está fortemente ligado à presença de memórias intrusivas, alterações cognitivas e de humor, que variam da hiperestimulação ao entorpecimento. Há uma perda de orientação espacial e paralisia emocional (Reis & Carvalho, 2016). Algumas reações emocionais podem ser transitórias, como uma forma do psiquismo reagir à absorção de um evento que causa intensa descarga emocional, como uma febre alta que expressa a reação do sistema imunológico para a defesa do corpo. Quando um grande desastre natural acontece, uma grande enchente, por exemplo, com queda de encostas nas quais há moradias, as águas e a terra molhada levam mais do que tijolos. Elas carregam histórias, rompem um tecido social que ali está estruturado, arrastam vidas. A reocupação das áreas de risco prejudica a topofilia, o vínculo com o lugar, uma vez que mecanismos de defesa ficam em guarda pela iminência de uma nova perda.

A topofilia - o amor ao lugar - expressa os laços afetivos dos seres humanos com o espaço e é fonte geradora de imagens sobre este. Para o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan (1983), um espaço se torna mítico quando se imagina que ele esteja associado a algo imaterial. Tuan (1983) destaca o fato de que as ideias sobre um determinado lugar surgem a partir das interações que os seres humanos estabelecem com ele. Na sua análise, mesmo os aspectos mais simples da vida cotidiana expressam os valores e os sentimentos daqueles que ocupam o espaço, gerando memórias que são fundamentais para o reconhecimento da própria identidade (Scardua, 2018).

O pensamento de Tuan (1983) sugere, então, que os símbolos envolvidos no processo de construção imagética de uma sociedade estão intrinsecamente relacionados com o lugar, possibilitando que se pense o imaginário social também como um imaginário geográfico. Nesse sentido, a impossibilidade do enraizamento pode comprometer planos e investimentos materiais e psíquicos. Há uma perda dos imaginários individual e coletivo. A desconstrução de uma área habitacional revela que o lugar, o espaço, é também um mapa psíquico.

Para o filósofo francês Gaston Bachelard (1993), o espaço é o lugar povoado por lembranças pessoais e por experiências emocionais. A força dessas lembranças e experiências delineia o sentimento de pertencimento ao lugar, nos permitindo atribuir significado à história que nele é vivida, como demonstra Fullilone (1996).

De acordo com Fullilone (1996), três processos norteiam a psicologia do lugar: apego, que constitui o vínculo entre a pessoa e o lugar; familiaridade, que diz respeito ao conhecimento cognitivo sobre o ambiente; e identidade, que se refere à construção de um pertencimento entre o indivíduo e o espaço de moradia ao longo do tempo. Estes processos são ameaçados pelo deslocamento abrupto, criando nostalgia, desorientação e alienação. As pessoas ficam à deriva. A perda da orientação geográfica à qual estamos condicionados assemelha-se à perda do "eu".

O indivíduo se desenvolve dentro de uma dinâmica relacional entre consciência e inconsciente. O inconsciente alimenta a consciência, mas precisa dela para que se expressar. Essas duas instâncias relacionam-se também, dialeticamente, com o ambiente. Podemos dizer que nossa primeira casa é o corpo materno. O ser humano nasce ainda indefeso e necessita do que pode ser chamado de uma fase extrauterina de desenvolvimento até que possa se diferenciar de sua mãe ou da pessoa que cuida. Nesta fase extrauterina, entre o bebê e o cuidador, estão o ambiente e os objetos, cheiros e sons que o compõem, formando um holding necessário para o desenvolvimento do eu. Para o psicanalista Harold Searles, antes de o bebê perceber o ambiente com clareza, há uma fase em que cuidador e o ambiente encontram-se indiferenciados e são percebidos como uma unidade, oferecendo continência, segurança e estabilidade. O ambiente físico, tal como o corpo materno, confere proteção contra a exposição (Huskinson, 2021).

Quando nos relacionamos com uma estrutura física duradoura, podemos nos integrar a ela, criando segurança psíquica. Por isso, talvez tenhamos a tendência a reconhecer no corpo dos edifícios particularidades do corpo humano: a edificação torna-se um grande corpo que nos abriga, experimentamos o mundo através do corpo da construção (Huskinson, 2021).

O objeto transicional descrito por Winnicott carrega consigo a projeção da segurança dada pelo cuidador que, após ser introjetada pela criança, pode ser retirada do objeto. Vemos que o ambiente não humano e seus objetos relacionam-se com a psique, funcionando como suportes para a construção e a percepção do eu (Fulgencio, 2011). A forma como nos relacionamos com o ambiente pode reproduzir a forma como lidamos com nossos conteúdos internos em uma relação de continuidade. Se a presença sólida de uma edificação pode fortalecer um indivíduo, sua destruição pode evocar a angústia da finitude e da mortalidade (Huskinson, 2021). Para Bollas (2000), o demolir e o construir nos remetem a questões de vida e morte. Viver a perda da casa, portanto, é enfrentar a fantasia de dissolução, na qual todas as referências são perdidas; é romper com essa relação de continuidade projetiva que temos com o meio que nos cerca através de um corte abrupto e desorganizador. Se do ponto de vista positivo a reordenação de um ambiente construído pode gerar novas formas de lidarmos com o mundo, uma vez que novos caminhos são gerados, quando ligados a situações traumáticas, a reordenação de um ambiente pode ser muito ameaçadora, como um parto prematuro que ameaça a vida.

No ambiente desordenado da tragédia, a vida insiste. Quando a chuva cessa, quando o sol retorna e o que eram ruas e prédios começam a secar, os sobreviventes tentam resgatar a normalidade de suas vidas sequestradas pelos destroços. Nessa jornada de volta ao lar que já não mais existe, afetos, rotinas, objetos e pontos de referência são buscados como se deles dependesse a própria existência. E realmente depende. Cada elemento perdido na enchente - ou em qualquer outra tragédia que nos expulse de nossas moradas -, ao ser encontrado, nos conecta à vida que conhecemos como nossa. É um fragmento da casa perdida, da identidade ameaçada pela força incomensurável da fragilidade de nossas defesas conscientes. Defesas essas que não sustentam o ego frente à dor da desorganização do lugar vivido, da descaracterização da persona imposta pela condição de sem-teto.

O sem-teto é também um sem-identidade. Não ter uma casa é não ter um endereço, um lugar no mundo onde a pessoa e os outros a reconheçam como parte da comunidade. Perder a casa é também perder-se do grupo, uma das dores mais contundentes para o gregário Homo sapiens. Sem casa estamos desprotegidos, expostos ao mundo e a seus perigos. A casa é a fronteira entre o indivíduo e o grupo, o privado e o público, a vergonha e a culpa, o prazer e o dever, a persona e a sombra. Ao mesmo tempo em que nos protege da indiscrição e dos olhares alheios, nos insere na comunidade. Por meio da casa, nos reconhecemos como parte de um lugar. Ela é o repositório da nossa história, tanto individual quanto coletiva.

Defender a casa, os próprios espaços e lugares familiares é o mesmo que defender a própria identidade (Low & Altman, 1992). Ter uma casa para onde retornar ao fim do dia fornece um significado profundo para a necessidade de autoproteção. A casa é como a pele que abriga o organismo, resguardando órgãos, músculos, gorduras e ossos das ameaças exteriores, ao mesmo tempo em que é a porta de entrada para os estímulos do mundo externo que permitirão ao cérebro direcionar o organismo para seu pleno funcionamento. Sem a casa nos encontramos literalmente sem pele, desabrigados, perdidos e em carne viva (Figura 1).

 


Figura 1. Óleo sobre alumínio e poliuretano Ruína Talavera I, de Adriana Varejão, exposição Adriana Varejão: Suturas, Fissuras, Ruínas (2022).
Fonte: Acervo particular (2020).

 

Considerações finais

Pessoas que enfrentam desastres naturais e veem suas casas e comunidades destruídas, perdem seu mapa cognitivo sobre o ambiente. Destituídos desse guia interno do lugar, elas já não sabem mais como se mover e se comportar (Wallace, 1957). A paralisia e a inércia recaem sobre elas com o peso da ausência de referências.

Como uma metáfora da psique, a casa que habitamos sustenta parte considerável da nossa imagem no mundo. A perda da casa, a desorganização de seus cômodos, a ruína de suas paredes, o esvaziamento de seus espaços ressoam no indivíduo como um agonizar diante da própria existência. A exposição da estrutura da casa fraturada, que racha e desaba, revela os temores mais obscuros do inconsciente, trazendo à tona as inseguranças primárias do medo da rejeição e do abandono, que exigem a busca de um lugar seguro e estável, onde seja possível apaziguar o selvagem em nós, disposto a tudo para sobreviver física e emocionalmente.

Do ponto de vista psicológico, a relevância do lugar está diretamente associada ao impulso biológico do ser humano para pertencer. Como dito, o sentimento de pertencimento depende de fatores como familiaridade, apego e identificação. É na casa que a função psicológica do lugar se maximiza: como espaço de abrigo das ameaças externas, como reconhecimento da trajetória pessoal e como preservação do que é próprio e singular. Nesse sentido, a metáfora junguiana da casa como psique nos convida a pensar sobre como nossa relação com os espaços que habitamos refletem a maneira de estarmos no mundo.

Haver casas em áreas de risco nos fala sobre como nossa espécie, o Homo sapiens, habita o mundo e nele se desloca. Nos fala sobre como nos relacionamos uns com os outros e com o ambiente, sobre como nos organizamos, no nível coletivo e no individual.

A casa como uma metáfora da psique nos ajuda a ler nas entrelinhas do cotidiano o significado profundo do que vivemos no interior do espaço que habitamos. Esse espaço onde nossa história é narrada e que, como disse Bachelard (1993), é a topografia do nosso ser íntimo.

A casa, topografia do nosso ser íntimo, requer um território onde possa ser erigida e, assim, abrigar nossas histórias, narrativas de nossa luta pela sobrevivência.

Nossa sobrevivência depende de haver um lugar, um centro geográfico, no qual seja possível o acesso aos recursos materiais necessários para sustentar a vida. Esse lugar precisa oferecer alguma segurança, que depende em grande parte da sensação de se estar integrado ao mundo natural, conhecendo-lhe os ritmos, as garantias e os riscos.

Mesmo quando isso não é possível, as pessoas continuam buscando se abrigar e se estabelecer, construir para si um lugar de existir: uma casa, uma pele que as resguarde do mundo externo e com ele as conecte, que lhes permita transitar entre o interior e o exterior da vida. Se uma tragédia rouba dessas pessoas esse lugar, algo dentro delas morre, ainda que temporariamente, e com os restos de paredes e chãos vão-se trechos de histórias vividas e projeções de vidas ainda não escritas.

 

Referências

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Recebido: 10 abr 2022
1a revisão: 18 maio 2022
Aprovado: 03 jun 2022
Aprovado para publicação: 24 jun 2022

 

 

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Angelita Corrêa Scardua - Mestrado e Doutorado em Ciências pela Universidade de São Paulo - USP. Psicóloga clínica e professora de Pós-Graduação nas áreas de Psicologia Analítica, Neurociências e Psicologia Positiva. Colaboradora dos grupos de pesquisa Mitopoética da Cidade (USP) e Khôra (independente). Cofundadora do Projeto Hestia, que produz conteúdo sobre a relação entre felicidade e ambiente construído. São Paulo/SP, Brasil. E-mail: angelita.scardua@gmail.com
Carol Scolforo - Jornalista especializada em Jornalismo Literário pela Associação Brasileira de Jornalismo Literário; graduação em Comunicação Social pela Faesa (ES). Colaboradora do grupo Khôra e cofundadora do Projeto Hestia, que produz conteúdo sobre a relação entre felicidade e ambientes construídos. São Paulo/SP, Brasil. E-mail: carolscolforo@gmail.com
Gustavo Reis Machado - Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo - FECFAU, da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp; mestrado pelo Instituto de Geociências da Unicamp; especialização em Gestão de Cidades e Planejamento Urbano pela Universidade Candido Mendes - UCAM; graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas. Professor da Universidade Anhembi Morumbi e do Centro Universitário UNA. Colaborador do grupo de pesquisa Khôra. São Paulo/SP, Brasil. E-mail: gustavo.reism1@gmail.com
Paula Serafim Daré - Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Psicóloga clínica, especialista em Cinesiologia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Analista junguiana pela Associação Junguiana do Brasil (AJB) e pela Internacional Association for Analitical Psychology (IAAP). Colaboradora dos grupos de pesquisa de Arte e Psicologia Analítica da (AJB) e Khôra (independente). Editora científica da Self - Revista do Instituto Junguiano de São Paulo. São Paulo/SP, Brasil. E-mail: pauladare@hotmail.com