ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2021.vol06.0010

 

Entre a ausência e a presença: uma análise junguiana dos filhos de mães bipolares*

 

Between absence and presence: a Jungian analysis of sons and daughters of bipolar mothers

 

Entre la ausencia y la presencia: un análisis Junguiano de los hijos de madres bipolares

 

 

Daiane PIARETEI; Irene Pereira GAETAII

IUniversidade Paulista (UNIP). São Paulo/SP, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo/SP, Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender o relacionamento dos filhos com mães portadoras de transtorno bipolar do humor, a partir do referencial teórico junguiano. Analisou-se o impacto da psicopatologia da mãe na vida de seus filhos, a percepção deles em relação ao vínculo afetivo que possuem com suas mães e as possibilidades/ impossibilidades de interações entre ambos. Foram realizadas e analisadas seis entrevistas com pessoas dos sexos feminino e masculino, idade adulta, filhas e filhos de mães com esse diagnóstico. As entrevistas seguiram um roteiro de perguntas abertas e a aplicação de desenhos com a temática da relação mãe e filho. Observou-se que o diagnóstico psiquiátrico de transtorno bipolar de humor nas mães acarretou prejuízos emocionais para os filhos, interferindo diretamente na fase de desenvolvimento de alguns participantes que, por vezes, assumiram o papel de cuidadores em idade ainda precoce e apresentaram perceptíveis características de personalidade ansiosa. Por outro lado, a dor pareceu transformar-se em resiliência e criatividade, somada ao suporte social, mostrou-se um caminho para uma condição mais fortalecida e para que esses indivíduos se tornassem protagonistas de suas próprias histórias.

Descritores: Psicoterapia analítica, transtorno bipolar, relações mãe-criança.


ABSTRACT

The objective of this study was to understand the relationship between sons and daughters with mothers with bipolar mood disorder, from a Jungian theoretical framework. The impact of the mother's psychopathology on the life of her children was analyzed, as well as the perception of the affective bond they have with their mothers and the possibilities/ impossibilities of interactions between both. Six interviews with adults of the feminine and masculine sex, children of mother with such diagnosis, were performed and analyzed. The interviews followed a script with open questions and drawings on the theme of the relationship of mother and child. The observation showed that the psychiatric diagnosis of bipolar mood disorder in the mothers caused emotional damage to their children, interfering directly with the phase of development of some of the participants who, at times, had to take the role of caregivers at an early age, showing perceivable characteristics of anxious personality. Still, pain seemed to be transformed into resilience and creativity, added to social support, demonstrated to be a path towards a stronger condition and for these individuals to become the protagonists of their own stories.

Descriptors: Analytical psychotherapy, bipolar disorder, mother child relations.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue comprender la relación de los hijos con madres portadoras de trastorno bipolar del humor, a partir del referencial teórico Junguiano. Se analizó el impacto de la psicopatología de la madre en la vida de sus hijos, y la percepción que ellos tienen del vínculo afectivo que tienen con sus madres y las posibilidades/ imposibilidades de interacciones entre ambos. Se realizaron y fueron analizadas seis entrevistas con personas de sexos femenino y masculino, edad adulta, hijas e hijos de madres con ese diagnóstico. Las entrevistas siguieron un guion de preguntas abiertas y se aplicaron dibujos con el tema de la relación madre e hijo. Se observó que el diagnóstico psiquiátrico de trastorno bipolar de humor en las madres acarreó prejuicios emocionales para los hijos, interfiriendo directamente en la fase de desarrollo de algunos de los participantes que, a veces, asumieron el papel de cuidadores a una edad aún precoz y presentaron perceptibles características de personalidad ansiosa. Por otro lado, el dolor pareció transformarse en resiliencia y la creatividad, sumada al apoyo social, demostró ser un camino para una condición más fortalecida y para que esos individuos se tornaran protagonistas de sus propias historias.

Descriptores: Psicoterapia analitica, trastorno bipolar, relaciones madre-niño.


 

 

Introdução

O transtorno bipolar do humor, antigamente conhecido como psicose maníaco-depressiva, é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a sexta causa de incapacidade no mundo e a terceira entre as doenças mentais, posterior à depressão e à esquizofrenia. Este transtorno é caracterizado por alterações de humor com episódios maníacos, hipomaníacos, depressivos e mistos (World Health Organization [WHO], 2019; Associação Brasileira de Psiquiatria [ABP], 2015).

O episódio maníaco é compreendido pelo excesso de comportamento exaltado, podendo ser acompanhado por sintomas psicóticos, como alucinações, delírios e pensamentos desorganizados no período de uma semana. No episódio de hipomania, os sintomas são parecidos com os de mania, porém, são também considerados mais leves, sem comprometer a vida cotidiana da pessoa. Já no episódio depressivo, sua caracterização se dá pela permanência de sintomas depressivos (humor deprimido, tristeza, sensação de vazio, perda de interesse, entre outros) por pelo menos duas semanas. Por fim, o episódio misto acontece quando a pessoa possui os sintomas depressivos e maníacos juntos, com a durabilidade de pelo menos uma semana (Berk, 2011).

A realização diagnóstica do transtorno bipolar do humor é considerada longitudinal, pois necessita da observação do paciente e, muitas vezes, da família, uma vez que há sintomas não percebidos pelos pacientes, normalmente observados pelos familiares. Vale destacar que o quadro nosológico é o mais sólido entre as doenças mentais, permitindo uma maior assertividade para o fechamento do diagnóstico.

Ter um membro com transtorno bipolar do humor afeta diretamente a dinâmica da família que, movida pelas necessidades do portador da doença, muitas vezes, faz adaptações a sua rotina. Os familiares são considerados muito importantes no tratamento psiquiátrico, contribuindo significativamente para uma adesão mais eficaz. Porém, eles também podem ser acometidos por fragilidades emocionais, ou seja, trata-se de um cenário doloroso e impactante para o paciente e para a família.

Cid, Matsukura e Silva (2012) observaram risco de os filhos de mães com transtorno mental apresentarem comprometimentos emocionais durante seu desenvolvimento, mas também notaram que há mais chances de não ocorrerem prejuízos psíquicos quando a rede de apoio familiar mostra-se presente, saudável e adequada. Os pesquisadores verificaram ainda que os filhos de mães diagnosticadas com transtorno de humor podem tanto apresentar conflitos emocionais relacionados ao vínculo afetivo com suas mães quanto serem capazes de lidar com a patologia, encontrando formas de adaptação resilientes diante das mudanças de comportamento da genitora (Matsukura, Cavaglieri, 2012, pp. 319-327 citado por Cid, Matsukura & Silva, 2012).

O interesse inicial nesse tema está ligado exclusivamente à história pessoal desta pesquisadora que, como filha de mãe portadora de transtorno bipolar do humor, desejou conectar-se à trajetória de pessoas que também fossem filhas ou filhos de mães com esse diagnóstico, pois, acreditava ser possível percorrer um caminho com o outro, quando este já havia sido percorrido sozinho.

Se eu posso olhar para as minhas feridas e tentar alcançar uma cura, estou mais bem preparado para ajudar os outros a olharem para as suas próprias feridas e tentarem alcançar uma cura. Nunca podemos ir com os outros além do ponto onde já fomos sozinhos. Não estou dizendo que apenas um cavalo pode julgar uma apresentação de cavalos, mas, com certeza, é muito útil conhecer algo sobre cavalos antes de julgá-los (Furth, 2004, p. 49).

De uma forma ou de outra, sempre estamos interligados nas histórias uns dos outros, cada um com sua verdade, com sua experiência e com sua subjetividade. Porém, arquetipicamente encontramos semelhanças, viemos de uma mesma raiz, um mesmo lugar, só alternando as composições subjetivas.

A alma não é de hoje! Sua idade conta muitos milhões de anos. A consciência individual é apenas a florada e a frutificação própria da estação, que se desenvolveu a partir do perene rizoma subterrâneo, e se encontra em melhor harmonia com a verdade quando inclui a existência do rizoma em seus cálculos, pois a trama das raízes é a mãe universal. [...] Veio-me então, naturalmente, a decisão de conhecer "meu mito" [...] como poderia prestar contas corretamente de meu fator pessoal, de minha equação pessoal, diante de meus pacientes, se nada sabia a respeito, e sendo isto, no entanto, tão fundamental para o reconhecimento do outro? Eu precisava saber que mito inconsciente e pré-consciente me moldava, isto é, de que rizoma eu provinha (Jung, 1912/2013, p. 13).

Durante as pesquisas, foram encontrados poucos estudos tratando dos familiares de pacientes com transtorno bipolar do humor, o que mostra a importância de se ampliar academicamente as informações sobre a doença, principalmente a partir de uma abordagem junguiana. Pretende-se ainda apresentar outras perspectivas a respeito do tema para a sociedade, que usualmente discute a bipolaridade de forma pejorativa, auxiliando, inclusive, profissionais que trabalham com esses pacientes e com seus familiares. Para além de uma experiência pessoal, o objetivo desta pesquisa foi compreender o relacionamento entre filhos e suas mães bipolares, a partir de desenhos e entrevistas com esses filhos adultos.

 

Metodologia

Para este trabalho, foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa e quantitativa (quali-quanti) que, segundo Penna (2009), tem como finalidade descrever com mais precisão a população analisada, permitindo a compreensão e interpretação do fenômeno pesquisado com maior profundidade. A pesquisa foi do tipo exploratória, aproximando-se da realidade do fenômeno estudado e descaracterizando quaisquer possibilidades de verdades definitivas, uma vez que são valorizadas as experiências singulares da história de vida e as emoções de cada pessoa enquanto seres individuais e não apenas como participantes/objeto de pesquisa, respeitando assim sua subjetividade (Camargo, 2005). A presente pesquisa também foi de ordem transversal, consistindo na coleta de dados relacionados a um grupo específico, sem controle rígido do experimentador (Appolinário, 2006).

O estudo fez uso da entrevista aberta, um procedimento bastante comum em pesquisas, uma vez que, de acordo com Penna (2009), contribui efetivamente para a coleta de dados do fenômeno estudado. Ainda segundo a autora, a entrevista deve ser utilizada como forma de acessar conteúdos conscientes e inconscientes por meio da narrativa expressa pelo participante. Para essa entrevista, foi elaborado um roteiro flexível, uma vez que é necessário facilitar a relação entre o entrevistado e o pesquisador, contemplando-se assim o tema pesquisado.

Além das entrevistas, solicitou-se aos participantes que elaborassem desenhos. Como destaca Moreno (2002), o desenho expressa conteúdos simbólicos do psiquismo e permite ao participante da pesquisa apresentar conteúdos que, muito provavelmente, não poderiam ser expressos pela via verbal.

A pesquisa contou com a colaboração de seis participantes, sendo que dois sujeitos realizaram entrevistas-piloto com o objetivo de adequar o instrumento proposto. Como critério para participação, todos os sujeitos deveriam ter mais do que 18 anos de idade e mãe diagnosticada com transtorno bipolar do humor.

Foram utilizados os seguintes recursos para a realização das entrevistas e desenhos: roteiro de entrevistas com perguntas abertas; protocolo de registro, contendo dados pessoais e cadastrais dos participantes; Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; termo de intenção de pesquisa; gravadores como meio de registro das entrevistas; e materiais gráficos para o desenvolvimento dos desenhos.

Para a análise, foram utilizados os critérios estabelecidos por Van Kolck (1966, p. 133-138 citado por Moreno 2002); referenciais sobre variação do uso de cores também definidos por Van Kolck (1966, p. 137-138 citado por Moreno 2002) e Furth (2004); e teorias acerca da compreensão dos símbolos elaboradas por Chevalier & Cheerbrant (2016) e Dicionário Priberam (2008-2013).

As entrevistas gravadas foram transcritas pela própria pesquisadora, no intuito de permitir uma melhor apropriação das narrativas produzidas pelos participantes. Foi realizada também uma síntese compreensiva e de impressões, a partir do discurso apresentado pelos participantes, com a mensuração das palavras semelhantes surgidas nas falas dos participantes.

Em relação às produções gráficas dos participantes, foram analisadas as cores e símbolos, o que permitiu a criação de um quadro de interpretação e de análise dos desenhos e de um gráfico comparativo com a frequência de variáveis semelhantes encontradas entre os participantes.

Por fim, a partir de uma revisão de literatura, os resultados obtidos foram analisados à luz da teoria junguiana e de outros estudiosos, com os objetivos de compreender o impacto da doença da mãe na vida dos filhos, verificar a percepção dos filhos sobre o vínculo que possuem com suas mães e observar as possibilidades e impossibilidades de interação entre eles.

 

O vínculo materno

De acordo com Neumann (1995), a relação materna quando positiva e bem-sucedida contribui para o desenvolvimento de um Self fortalecido, além de oferecer ao ego condições adequadas para o enfrentamento de problemas que possam surgir no curso natural da vida da criança. É fundamental um vínculo materno continente e satisfatório durante toda a infância, principalmente no primeiro ano de vida, quando ocorre a formação do ego. Quando esse vínculo é negativo, pode haver prejuízos significativos para o desenvolvimento da criança e aumenta-se a probabilidade de riscos de distúrbios complexos, sendo que nem sempre as condições externas conseguem poupar um dano psíquico. Uma dinâmica rodeada por mimos também pode implicar o surgimento de distúrbios neuróticos, comprometendo o desenvolvimento infantil. Neumann (1995) chamou a atenção para que o cuidado não se desviasse de um relacionamento primal "normal", deixando claro a importância do equilíbrio, pois o que é unilateral pode ser danoso na criação de um filho.

Em Feldman (2006), é possível observar os prejuízos do vínculo materno negativo na vida de Jung. A mãe era considerada pelo próprio Jung como uma pessoa possuída por duas personalidades: a humana e a misteriosa, esta um tanto assustadora. Vale ressaltar a figura da empregada que, por vezes, desempenhou uma função materna em relação a Jung.

A vida do pequeno Jung foi marcada por várias cenas que podem ser compreendidas como um desprovimento dos seus vínculos primários. Entre elas, temos a irritação de pele aos três anos, que possivelmente poderia caracterizar uma somatização relacionada aos conflitos com suas relações parentais; a separação precoce da mãe devido à internação dela, que apresentava um quadro característico de depressão severa; e os acidentes domésticos em sua infância, compreendidos mais tarde pelo próprio Jung como uma tendência inconsciente suicida ou resistência a viver neste mundo (Feldman, 2006).

De acordo com Feldman (2006), as crianças com vínculos maternos continentes e positivos, normalmente, conseguem desenvolver uma condição em relação ao seu próprio cuidado contra situações que as expõem a riscos, o que não ocorreu com Jung.

Jung era uma criança sozinha e em seu mundo criava alternativas para lidar com seu próprio sofrimento psíquico. Aos 10 anos, confeccionou um boneco que guardava dentro de um estojo, em segurança no sótão, com uma pedra. O boneco pode ser entendido como um símbolo de proteção para o seu desenvolvimento. Aos 12, surgiram sintomas psicogênicos para evitar a escola. Supõe-se que despertou para a consciência e, mesmo em um esforço solitário, mudou sua condição de adoecimento, após escutar seu pai conversando com um amigo sobre o receio de o filho ter uma epilepsia sem cura e assim não conseguir ter uma vida independente (Feldman, 2006). Há também outras situações, como a cena fantasiosa em que Deus defeca na catedral da Basileia, o que prenunciava os afetos e a agressividade contida, mas, por outro lado, também anunciava uma resolução criativa para a integração desses conflitos que, mais tarde, inspirou a elaboração da técnica de imaginação ativa, em sua teoria. O assédio sofrido na adolescência pelo "admirável" amigo do pai denuncia uma vulnerabilidade e pode explicar os conflitos em sua relação com Freud. Jung, nos momentos de desorganização psíquica, como quando rompeu com Freud, voltava-se para si e, em sua introspecção, dava formas criativas para solucionar suas angústias, solucionando-as (Feldman, 2006).

A criança que experienciou traumas intensos ou acumulativos precocemente, por meio da fantasia cria formas para cuidar de si mesma, o que resulta em um preço alto para o desenvolvimento de sua personalidade. A pessoa que desenvolve um ego tão frágil vive envolvida por uma ansiedade, lutando continuamente pela sobrevivência, além de ser acompanhada pelo medo do estado original do trauma retornar, permanecendo em estado de alerta e com a preocupação de sofrer e não suportar novamente o trauma. A vida externa segue, porém, com grande esforço da vida interior. Externamente o trauma termina, mas internamente as sequelas permanecem e assombram emocionalmente quem passou por experiências traumáticas (Kalsched, 2013).

 

Resultados e discussão

Nas narrativas dos participantes, verificou-se que 100% deles apresentou a doença da mãe como uma sobrecarga emocional e com impacto na vida pessoal, o que também provocava sentimentos ambíguos. Ao mesmo tempo em que conseguiam visualizar características positivas em suas mães (reconhecendo-as como amorosas e carinhosas), também relataram características negativas de suas condições, verbalizadas com muita cautela, sinalizando uma dificuldade em assumir a existência de aspectos "ruins" da mãe. O arquétipo tem dois polos: o positivo e o negativo e, nesse sentido, Jacoby (2007) explica que a constelação dessas polaridades, no arquétipo materno, depende de como cada pessoa viveu a fase relacionada ao desenvolvimento da consciência, do posicionamento diante das questões de seu psiquismo e de como recebeu do ambiente as respostas para suas necessidades arquetípicas. Como destacou Gallbach (1995), a mãe pessoal recebe projeções da mãe arquetípica. Dessa forma, pode-se pensar que existe aquilo que a mãe oferece e aquilo que o filho idealiza.

Nos discursos dos participantes da pesquisa, observou-se ainda que a convivência com uma mãe com transtorno bipolar de humor mobiliza vários aspectos emocionais. No discurso de 67% dos filhos, notou-se sentimentos de raiva em relação à figura materna e ao lugar em que são inseridos no ambiente familiar, além de sensação de distanciamento e falta de intimidade. Já 33% relataram que o comportamento da mãe e/ou as demandas de afeto exigidas por ela provocam-lhes incômodo e sufocamento, além de sinalizarem dificuldades com o meio social e com os relacionamentos interpessoais; e 17% enfatizaram sentimento de mágoa e estado de frustração diante das marcas de abandono e da insuficiência materna.

Kalsched (2013) destaca que, para Jung, nossa vida psíquica, a princípio, é organizada pelo afeto, e tudo que pensamos e vivemos passa por ele. Nossas experiências, que são acompanhadas por um sentimento intensificado, podem formar um complexo. Assim, nota-se que os filhos de mães bipolares sinalizam um complexo atuante, intensificado por sentimentos marcados pelas experiências e vivências com a doença da mãe, mostrando o quanto essa condição deixa sequelas em suas vidas. Há ainda um complexo materno negativo que Kast (1997) afirmou tratar-se da falta de continência, de proteção e de segurança, como se o que se recebe fosse insuficiente para viver.

As narrativas também evidenciaram que 50% dos filhos necessitaram amadurecer precocemente e, por vezes, com inversão de papéis: de ser cuidado para o de cuidador. Já 33% demonstraram possuir um vínculo simbiótico, vivendo como continuidade da figura materna e reproduzindo cenas de adoecimentos semelhantes aos da mãe e/ou permitindo-se viver sua individualidade somente conforme a estabilidade do humor da mãe. Por vezes, a dificuldade de seguir a vida não é impedida por fatores externos, mas sim, pela própria pessoa, pela imagem materna que ela mantém dentro de si e que não foi transformada e elaborada, escondendo inconscientemente o protagonismo de sua vida atrás dos sintomas da mãe. Que "[...] parte misteriosa de sua personalidade é essa que escondeu por detrás das imagens de pai e mãe e que por tanto tempo o fez acreditar que a origem do seu mal o atacou de fora?" (Jung, 1912/2014, p. 71).

Nos relatos, foi observado que muitos filhos presenciaram surtos graves, acarretando estado de alerta (17%), medo da mãe (33%), medo de ter a doença da mãe (50%) e, no caso de filhas mulheres, dúvidas sobre tornar-se mãe (50%). Goossens et al. (2008, citado por Souza, 2008) pesquisaram filhos de pessoas portadoras de transtorno bipolar do humor menores de 16 anos, evidenciando conflitos em seus comportamentos, problemas de sono, falta de apetite, medo e vergonha de seu genitor. Pessoas que viveram uma situação de trauma sentem-se ansiosas e emocionalmente fragilizadas e batalham diariamente pela sobrevivência, muitas vezes, permeadas pelo medo de que a vivência original do trauma retorne, o que contribui para permanecerem em estado de alerta, com medo de sofrer outro trauma e de não o suportar (Kalsched, 2013).

A pesquisa mostrou que os participantes buscaram suporte para lidarem com suas dores emocionais, sendo que 83% realizam terapia, 67% têm apoio emocional na figura do cônjuge e 17% utilizam a espiritualidade como caminho de resiliência. Como afirma Kalsched (2013) "[...] prematuramente autossuficientes na infância, romperam as relações genuínas que poderiam ter tido com os pais durante seus anos de desenvolvimento e, como alternativa, cuidaram de si mesmos num envoltório de fantasia" (p. 28).

Moreno (2002) destaca que, para Van Kolck (1996), os desenhos podem ser considerados como uma forma mais direta das projeções dos desejos inconscientes, por serem um acesso menos utilizado pelas pessoas e, por isso, mais livres de defesas em comparação com as linguagens verbal e escrita. Assim, eles se mostram como um instrumento capaz de acessar os conteúdos inconscientes dos participantes sobre o tema estudado. Já as cores, de acordo com Furth (2004), podem ser consideradas uma expressão de afeto, de sentimentos e do estado emocional e podem falar de uma relação.

Nas produções gráficas, ficou evidenciado que 100% dos participantes possuem habilidades criativas, com traços de obstinação e rigidez, porém, com ajustamento ao meio. Características como espírito autocrítico, confiança em si mesmo, capacidade de tomar decisões e segurança foram demonstradas por 67% dos participantes, que também apresentarem energia vital e inteligência concreta. Outros 83% apresentaram ansiedade, timidez, insegurança e sentimentos expansivos; 50% mostraram-se com tendências depressivas, sentimentos de inferioridade, comportamento emocional dependente e personalidade hipersensível e artística; 33% demonstraram controle e inibição inadequados, agressividade e satisfação na fantasia; por fim, 17% apresentaram dificuldade para lidar com a realidade e a imaginação livre, além de incapacidade para relaxar, distúrbios emocionais, necessidade de autoafirmação e comportamento impulsivo.

Nos símbolos, foi possível notar significados mais prevalentes de aspectos como força heroica, conteúdos espirituais e transcendentes, presença da figura materna e filial, além de simbologia de natureza confusa e mal definida.

As cores mais utilizadas nos desenhos realizados pelos participantes estão relacionadas a características como obstinação, teimosia, vitalidade, reações emocionais fortes e bruscas, afetividade, autodomínio e exagero no controle.

Os resultados desta pesquisa demonstraram que há uma característica comum e prevalente nos filhos em assumir papéis e responsabilidades sem necessariamente estarem maduros o suficiente para determinadas tarefas, além de possuírem histórico de promoção do próprio autocuidado pela falta da continência materna. Há uma evidência de sintomas ansiosos e de insegurança que se manifestam na vida adulta e que não impedem um ajustamento ao meio, as tomadas de decisões e o seguimento da vida, mas que trazem prejuízos psíquicos, como tendências depressivas e comportamento dependente. Há ainda uma necessidade de proximidade com a mãe, porém, ao mesmo tempo, denunciando uma fragilidade no vínculo que ora se mostra ausente, ora presente, situação decorrente da própria instabilidade do humor da mãe. Também são muito presentes características de personalidade rígida, obsessiva, agressiva e com grande necessidade de domínio, que ocorrem possivelmente por serem uma forma de o indivíduo não perder o equilíbrio. Por outro lado, todos possuem traços criativos, o que pode ser considerado um recurso de enfrentamento e um caminho heroico, em termos simbólicos - são pessoas que buscam dentro de si mesmas uma força para se autocuidar e seguir com os projetos de vida.

Para Neumann (1995), um relacionamento disfuncional e pouco continente com a mãe pode danificar de forma significativa as bases do filho e aumentar os riscos de problemas psíquicos, sendo que nem sempre outras condições externas conseguem melhorar ou prevenir esses acontecimentos. De acordo com Feldman (2006), é possível verificar, pela história de Jung, o quanto a falta de uma mãe saudável provoca rupturas e sequelas na vida do filho, no entanto, isso não significa que a pessoa não tenha condições de se desenvolver e viver bem, mesmo com as marcas doloridas. Feldman (2006) relata que, desde a infância, Jung apresentou dificuldades com a mãe doente que raramente o ajudava naquilo de que necessitava, sendo que, muitas vezes, esse cuidado era desempenhado por sua babá. Jung desenvolveu doença de pele, fobias e quedas da própria altura, sinalizando uma dificuldade em se proteger e talvez colocando inconscientemente sua integridade em risco. Os sonhos, a arte, a imaginação ativa e sua tipologia intuitiva possibilitaram a Jung fortalecer seus recursos internos para dar conta de sua própria dor psíquica e abrir caminhos mais saudáveis para desenvolver seu ego e viver. A sua dor foi base para a transformação de uma teoria, sinalizando que Jung era uma pessoa resiliente.

É possível compreender que, mesmo dentro de uma história difícil e com um vínculo frágil, um indivíduo não terá sua vida paralisada necessariamente, pois pode utilizar outros recursos para encontrar saídas saudáveis de uma situação desconfortável e ameaçadora. O que muitas vezes parece ser negativo, também pode ser um disparador para a autonomia; cada sujeito internaliza sua realidade de uma forma diferente. Percebe-se que os filhos de mães bipolares vivem essa dualidade: existem as dificuldades, mas também a possibilidade de os indivíduos seguirem com suas vidas.

Nas suas interações com as mães portadoras de transtorno bipolar, os filhos precisam selecionar assuntos para as conversas, que não são livres. Eles também têm pouco tempo para a convivência, pelo fato de se sentirem pouco acolhidos por suas mães e por suas demandas serem entendidas por estas como uma continuidade das demandas pessoais delas - mesmo com grandes esforços para sair de uma condição simbiótica, as mães ainda tendem a manter seus filhos nessa simbiose.

As características das mães também provocam nos filhos sentimentos conflituosos e desconcertantes, com dificuldades de aceitar as limitações da maternagem oferecida. Isso não impossibilita os filhos de possuírem um vínculo com suas mães, porém, tal vínculo oscila entre momentos positivos e negativos e entre sentimentos afetuosos e raivosos. Assim, por vezes, a manutenção do relacionamento acontece à custa de grande esforço psíquico por parte dos filhos.

Há alguns filhos muito identificados com suas mães, inclusive utilizando a mesma linguagem da doença como forma de estabelecer uma proximidade e vínculo com elas. A mãe com doença psiquiátrica, com frequência, tem dificuldade em realizar o cuidado com o filho, uma vez que apresenta a mesma dificuldade em realizar o autocuidado. Assim, esse cenário de insuficiência e de falta pode se refletir diretamente no fortalecimento egóico dos filhos, fragilizando seus recursos no exercício do próprio cuidado. Há ainda aqueles que visivelmente deslocam o papel de cuidador para outras figuras e lugares, como a religião, o cônjuge e terapeutas. Somente alguns filhos demonstram consciência - até por já terem trabalhado tais questões em psicoterapia - desse papel de cuidador internalizado e, dessa forma, são capazes de realizar seu autocuidado, sem necessidade de terceirização dessa ação.

O arquétipo materno é humanizado pela mãe pessoal. Os filhos de mães portadoras do transtorno bipolar têm contato por mais tempo com os aspectos sombrios da mãe. Existe uma internalização do complexo materno negativo, reduzindo a figura arquetípica materna somente ao complexo negativo, há dificuldade em visualizar o outro polo do arquétipo. Um exemplo dessa situação é o fato de a maioria das filhas entrevistadas questionarem sua capacidade de serem mães, por estarem marcadas pelas projeções maternais faltantes e pelo medo da reprodução de uma maternidade insuficiente.

O arquétipo materno pode ser mais amplo e ir além das projeções realizadas na mãe pessoal, embora alguns filhos tenham dificuldade em realizar essa transposição e permaneçam somente com as características maternais de suas mães pessoais, sem buscar outros símbolos e exemplos de maternagem. Nesses casos, foi possível observar um ganho secundário, no qual os filhos justificam o não desenvolvimento de suas potencialidades em razão do exercício do papel de cuidadores das suas mães. Observou-se também que eles se mostraram defendidos psiquicamente, evitando o contato com a realidade dolorosa.

 

Considerações finais

Esta pesquisa mostrou que a doença da mãe afeta diretamente os filhos, impactando suas vidas com uma sobrecarga emocional e, na maioria das vezes, exigindo-lhes em idade ainda prematura o exercício do próprio cuidado. Também se observou que os filhos tornam-se cuidadores das próprias mães, invertendo papéis e comprometendo suas fases de desenvolvimento, sendo perceptível as sequelas desse processo na vida adulta.

Jung é um grande alicerce para se pensar nos filhos de mães bipolares. Sua infância foi marcada pela ausência de figuras parentais continentes, além dos registros traumáticos, como o adoecimento psíquico da mãe e as repercussões durante a sua vida. Jung contou com cuidados terceirizados, por meio de vínculos primários com a empregada, talvez a maior proximidade de uma figura feminina e maternal positiva na infância, além da sua intimidade com a natureza - uma figura arquetípica da mãe - e de sua capacidade de recolhimento interno e criativo, um cenário possível para uma forma resiliente de se fortalecer diante da vida e transformar sua dor em teoria.

Compreende-se que a doença da mãe provoque um grande impacto na vida dos filhos, afetando diretamente o vínculo afetivo e tornando seletiva a forma de interação entre eles. São filhos que vivem uma oscilação de sentimentos no relacionamento com suas mães, o que parece associar-se com os sintomas da própria bipolaridade. Os filhos de mães bipolares mostraram, cada um de sua maneira, a difícil luta proveniente de se ter uma mãe com um diagnóstico psiquiátrico, as consequências dessa realidade em suas vidas e as marcas em seu desenvolvimento enquanto seres humanos. Porém, também mostraram as possibilidades de transformar essa experiência dolorosa - mesmo que em alguns momentos à custa de grande esforço psíquico - em combustível para protagonizarem suas próprias histórias.

Fica aqui o ensejo de abrir novas possibilidades de pesquisas, ampliando ainda mais esse tema e contribuindo para o conhecimento dos profissionais atuantes nessa área. Por fim, registre-se também o desejo de que estudos futuros sejam realizados com um número maior de pesquisados.

 

Referências

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Recebido: 06 mar 2021
1ª revisão: 25 jul 2021
Aprovado: 18 nov 2021
Aprovado para publicação: 29 nov 2021

 

 

Notas dos autores:* Este artigo é derivado da monografia "Entre a ausência e a presença: uma análise junguiana dos filhos de mães bipolares" (2016), sob a orientação de Irene Pereira Gaeta, para obtenção do título de especialista em Psicoterapia Junguiana pela Universidade Paulista (UNIP).
Conflito de interesses: As autoras declaram não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Daiane Piarete - Especialista em Psicoterapia Junguiana pela Universidade Paulista - UNIP; especialista em Cuidados Paliativos e Terapia da Dor pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; psicóloga pela UNIA-Anhanguera; neuropsicóloga pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU); psicóloga hospitalar pela Faculdade de Medicina do ABC; arteterapeuta. E-mail: daianepiarete@hotmail.com
Irene Pereira Gaeta - Analista Junguiana do Instituto Junguiano de São Paulo - IJUSP e do International Association for Analytical Psychology - IAAP. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP; mestre em Gerontologia pela PUC-SP; especialista em Práxis Artísticas e Terapêutica: Interfaces da Arte e da Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; arteterapeuta formada pelo Instituto Sedes Sapientiae. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Arte e Psicologia Analítica - NAPA/IJUSP e do Departamento de Arte e Psicologia da AJB. Professora do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC/SP. Coordenadora da Pós-Graduação em Psicologia Analítica e em Psicogerontologia da Universidade Paulista. Psicóloga. São Paulo/SP, Brasil. E-mail: estudosjunguianos.irenegaeta@gmail.com