ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2021.vol06.0006

 

Cartas entre Jung e White: um debate interdisciplinar sobre o Increatus

 

Letters between Jung and White: interdisciplinary debate on the Increatus

 

Cartas entre Jung y White: un debate interdisciplinario sobre lo Increatus

 

 

André Pansarini de Paula RODRIGUESI; Paola Vieitas VERGUEIROII

IConsultório particular, Osasco/SP, Brasil
IISão Paulo/SP, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo teve como objetivo analisar a obra "The Jung-White Letters", destacando a importância do que se considera serem os temas centrais da obra: o arquétipo do Self, sua expressão na psique, sua natureza, dinâmica e propósito, e a imagem de Deus para a psicologia analítica. A metodologia aplicada à pesquisa foi a da análise de conteúdo. Em um debate interdisciplinar, Jung e White trataram de temas como interdisciplinaridade, ciência, teologia; a imagem de Deus para a psicologia analítica; o estudo do cristianismo como expressão do espírito de um tempo ou Zeitgeist; o bem e o mal; os símbolos. Na discussão da obra, destacou-se a existência de indicadores simbólicos de evolução da consciência, individual e coletiva, nas diversas representações de Deus, nas passagens do Velho e do Novo Testamento e na separação dos opostos no cristianismo. Por fim, reafirmou-se a relevância da leitura psicológica que se debruça sobre aspectos históricos e psicológicos da religião e a sua atualidade.

Descritores: Psicologia junguiana, inconsciente coletivo, arquétipos, símbolos, conceitos de Deus.


ABSTRACT

The objective of this article was analyzing the book "The Jung-White Letters", pointing out the importance of the themes considered as central in the publication: the archetype of Self, its expression in the psyche, its nature, dynamics and purpose, and the image of God for analytic psychology. The methodology applied to the study was contents analysis. Through an interdisciplinary debate, Jung and White approached themes as interdisciplinarity, science, theology; the image of God for analytic psychology; the study of Christianity as the expression of the spirit of the age or Zeitgeist; good and evil; the symbols. In the discussion about this book, it was highlighted the existence of symbolic indicators of the evolution of conscience, individual and collective, in the diverse representations of God, in the episodes of the Old and the New Testament and in the separation of the opposites in Christianity. Finally, the relevance of the psychological reading that focuses on historical and psychological aspects of religion and its topicality was reaffirmed.

Descriptors:  Junguian psychology, collective unconscious, archetypes, symbol, God concepts.


RESUMEN

El objetivo de este artículo fue analizar la obra "The Jung-White Letters", destacando la importancia de los que son considerados los temas centrales de la obra: el arquetipo del Self, su expresión en la psiquis, su naturaleza, dinámica y propósito y la imagen de Dios para la psicología analítica. La metodología aplicada a la investigación fue el análisis de contenido. En un debate interdisciplinario, Jung y White trataron de temas como la interdisciplinaridad, ciencia, teología; la imagen de Dios para la psicología analítica; el estudio del cristianismo como expresión del espíritu de un tiempo o Zeitgeist; el bien y el mal; los símbolos. En la discusión de la obra, se destacó la existencia de indicadores simbólicos de evolución de la conciencia, individual y colectiva, en las diversas representaciones de Dios, en los pasajes del Viejo y del Nuevo Testamento y en la separación de los opuestos en el cristianismo. Finalmente, se reafirmó la relevancia de la lectura psicológica que se profundiza en aspectos históricos y psicológicos de la religión y su actualidad.

Descriptores:  Psicología junguiana, inconsciente colectivo, arquétipos, símbolo, conceptos de Dios.


 

 

Introdução1

O arquétipo do Self, ou do si-mesmo (Stein, 2006), ocupa papel central na psicologia de Jung que tem contornos muito particulares que a diferenciam de outras psicologias. Sua concepção de Self oferece características únicas à psicologia analítica e esclarece suas bases, sendo a chave para sua compreensão. O paralelo que Jung estabelece entre Self e a imagem de Deus é fundamental para a compreensão do conceito e aparece em diversas partes da sua obra, gerando debates que reafirmam a característica interdisciplinar da psicologia analítica, seus desafios e sua complexidade.

Para agregar elementos a esse tema de estudo, realizamos uma análise de conteúdo das cartas de Jung ao padre White, contidas no livro de "The Jung-White Letters" (Lammers & Cunningham, 2007). Além de possuir vasta temática religiosa, em sua maior parte, a obra apresenta questões discutidas a partir dos pontos de vista de um padre católico, Victor White, e de Jung, pela ótica da psicologia analítica. O livro é considerado a terceira maior coleção de correspondências publicadas de Jung até o momento e não foi traduzido para o português.

A proposta deste artigo é descrever os resultados e a discussão da análise de conteúdo aplicada ao estudo das cartas enviadas por Jung a White. Elas perpassam os temas da religião, religiosidade e espiritualidade. Paralelamente, trazem informações históricas da relação entre Jung e White e a compreensão de Jung sobre a interdisciplinaridade.

Este artigo deparou-se com diversos desafios. O primeiro deles foi sua característica interdisciplinar. Ao tratar das interfaces entre a psicologia analítica e a teologia, Jung ocupou-se de discriminar as particularidades de ambas as áreas e de destacar que a colaboração entre estas áreas é fértil para a psicologia analítica, uma vez que os símbolos religiosos contêm aspectos psicológicos. Ao nos debruçarmos sobre as cartas enviadas por Jung a White, observamos somente a ótica de Jung a respeito do assunto tratado, subtraindo a perspectiva de White, fato que deve ser considerado.

Outro desafio foi a dependência deste trabalho, em certa medida, da compreensão da teoria junguiana, que ampara conceitualmente a discussão entre Jung e White. Nas cartas, usualmente, os conteúdos não são explicados em detalhes, mas expostos de maneira informal e direta. Consideramos a linguagem informal das cartas trocadas entre os pensadores um desafio e uma oportunidade, uma vez que as ideias são expressas espontânea e rapidamente, apresentando os pontos de vista dos autores com certa pessoalidade. Desta feita, sua interpretação exerce papel determinante e pressupõe certas direções de compreensão, o que implica riscos. A brevidade dos escritos nas cartas implica ainda a falta de esclarecimentos sobre seus pressupostos, o que pode acarretar subentendidos e concepções errôneas a respeito de seus conteúdos. Por outro lado, a espontaneidade da comunicação oferece uma oportunidade de contato com a experiência imediata de Jung em relação aos temas tratados, o que pode somar informações relevantes.

Após esta introdução, tratamos do método utilizado: a análise de conteúdo. A seguir, para favorecer a compreensão do leitor sobre o conteúdo apresentado pela pesquisa, destacamos os aspectos conceituais do conceito de Self, resultado de pesquisa teórica. Na sequência, tratamos da relação entre Jung e White. Daí, seguem-se os resultados, a discussão e as considerações finais.

 

Metodologia

O coração deste estudo é a apresentação dos resultados da análise de conteúdo sobre a obra "The Jung-White Letters" (Lammers & Cunningham, 2007), realizada por meio de uma sistematização da metodologia proposta pelos autores consultados (Bardin, 2004; Campos, 2004; Moraes, 1999).

A análise de conteúdo trata-se de um método científico de natureza qualitativa aplicável a conteúdos de diversos campos do saber. Sua sistemática de pesquisa origina-se dos textos estudados e produz uma grande quantidade de recortes e citações.

Vale considerar que esse método requer a realização de várias etapas: (i) a leitura flutuante de todo o material e a escolha dos trechos que serão foco do estudo (fase da preparação das informações); (ii) a releitura do material e a eleição, por parte do autor, do tema a ser estudado na(s) obra(s) escolhida(s), a partir da definição das unidades de análise e da seleção dos trechos que contêm essas palavras eleitas (fase da seleção, ou unitarização); (iii) a composição das categorias temáticas, a partir dos conteúdos comuns encontrados e a análise do material (fase da categorização); (iv) a comunicação dos resultados (fase da descrição); e (v) a interpretação dos dados (fase da interpretação). A abordagem utilizada foi indutiva-construtiva, que parte dos dados do documento analisado e constitui as categorias e a interpretação no decorrer do processo de análise. Em função do método aplicado, os resultados revelam apenas uma das maneiras possíveis de realizá-lo, por conta das prioridades eleitas e pela análise crítica dos autores.

A análise de conteúdo elegeu como unidades de análise: Self, si-mesmo unidade, totalidade, mandala, Deus e Cristo, para serem estudadas na obra.

Os trechos selecionados a partir das unidades de análise foram descritos, estudados pormenorizadamente e agrupados nas categorias temáticas que são apresentadas neste artigo: (i) diferentes abordagens à imagem de Deus; (ii) a imagem de Deus para a psicologia analítica; (iii) o cristianismo como expressão do espírito do tempo; (iv) bem e mal; (v) símbolos; (vi) sobre White. Observamos que algumas das unidades de análise escolhidas, como totalidade e mandala, não ocuparam papel relevante nos trechos selecionados, tendo sido citadas apenas com o objetivo de iluminar outras questões. As categorias temáticas sistematizam os principais temas deste trabalho que, por sua vez, reflete as principais questões tratadas por Jung em suas cartas ao Padre White.

As unidades de análise foram eleitas em função da sua aproximação conceitual e remeteram às cartas enviadas a White por Jung nas seguintes datas (agrupadas com base nas categorias temáticas):

(i) diferentes abordagens à imagem de Deus (interdisciplinaridade, ciência e teologia): 05/10/1945;

(ii) imagem de Deus para a psicologia analítica: 05/10/1945, 06/11/1946, 19/12/1947, 30/01/1948 e 24/09/1948;

(iii) o estudo do cristianismo como expressão do espírito do tempo:24/11/1953, 10/04/1954 e 02/04/1955;

(iv) bem e mal: 18/12/1946, 24/09/1948, 31/12/1949, 9 a 14/04/1952, 30/04/1952, 30/06/1952, 24/11/1953, 10/04/1954;

(v) símbolos: 13/02/1946, 13/04/1946, 23/01/1947, 21/05/1948, 12/05/1950, início de abril de 1952, 24/11/1953, 10/04/1954; e

(vi) sobre White:02/04/1955.

Em seguida, procedemos à interpretação dos dados das categorias temáticas, o que corresponde aos resultados apresentados neste artigo. A discussão dos conteúdos emergentes tece reflexões sobre os tópicos principais, considerando o seu valor particular para a investigação proposta e para os limites deste artigo.

Introdução ao conceito de Self à luz da psicologia analítica

O conceito de si-mesmo (Selbst) é de suma importância para a teoria junguiana. Stein (2006, p. 137) o descreve como "[...] a característica mais fundamental de sua teoria, como também a sua pedra angular". Indica ainda que o si-mesmo define a psique, afirmando, neste sentido, sua função criativa: "Para Jung, o si-mesmo é transcendente, o que significa que não é definido pelo domínio psíquico nem está contido nele, mas situa-se, pelo contrário, além dele e, num importante sentido, define-o" (Stein, 2006, p. 137).

O si-mesmo é o arquétipo primordial do qual os outros todos derivam. Sua meta é manter o sistema psíquico unido e em equilíbrio (Stein, 2006). Nesse sentido, sua natureza, estrutura e dinâmica são cruciais para a compreensão da teoria junguiana, carregando em seu bojo fundamentos que a definem. Esse arquétipo apresenta características paradoxais, como o fato de ser o centro e a periferia; carregar a natureza (daimon) da individualidade e, ao mesmo tempo, ser um arquétipo, portanto, ser coletivo; ter uma natureza transcendente e acolher conteúdos do inconsciente pessoal, da consciência e do ego. Esses, entre tantos outros ângulos do conceito, seguem promovendo extensas discussões entre pensadores da psicologia analítica e de áreas afins. Em função disto, como proposta introdutória, dedicamo-nos aos aspectos principais do arquétipo, visando a delinear parâmetros para a compreensão desta análise de conteúdo, sem pretendermos limitar sua discussão.

Jung (1944/2012a) compreende o si-mesmo como a totalidade da esfera psíquica, oferecendo uma circunferência à psique humana, um continente. Simultaneamente, considera que o si-mesmo constitui o centro transcendente desta totalidade psíquica, da mesma maneira que o eu assume posição central em relação à consciência. A sua continência aos aspectos conscientes e inconscientes (Jung, 1944/2012a) abre um flanco à discussão teórica, dado que sua natureza transcendente difere dos conteúdos do inconsciente pessoal e da consciência, assimilados pela vivência. Essas duas características opostas justificam a descrição do si-mesmo como complexio oppositorum, uma união de opostos, uma unidade em que os contrários se conectam.

Esses aspectos do si-mesmo oferecem a dimensão da complexidade que o conceito envolve e o motivo das discussões sobre ele (Jung, 1944/2012a).

Como dito, Stein (2006) sublinha que, para Jung, o si-mesmo é transcendente e, nesse sentido, nem pode ser definido como psíquico. Por ser transcendente é indescritível, não podendo ser comprovado em sua íntegra. Ele pode ser experimentável, mas não observável diretamente, conclui Stein. Jung (1921/2012) afirma que podemos descrever este conceito apenas parcialmente, a partir de um ponto de vista empírico, uma vez que o inconsciente coletivo é psicóide, o que indica que jamais se tornará consciente.

A qualidade transcendente não pertence exclusivamente ao si-mesmo, mas a todos os arquétipos. Como todos os arquétipos, o si-mesmo possui um caráter antinômico, "é ao mesmo tempo masculino e feminino, velho e criança, poderoso e indefeso, grande e pequeno" (Jung, 1951/2012c, p. 268, § 355)

Sendo o si-mesmo o arquétipo da totalidade, Jung estabelece uma relação entre este arquétipo e Deus: "Como valor máximo ou como dominante suprema, a imagem de Deus se acha imediatamente ligada ou identificada ao si-mesmo [...]" (Jung, 1951/2012e, p.131, § 170). Assim, sugere que existe uma relação entre psique e Deus:

[...] deve haver na alma uma possibilidade de relação [com Deus], isto é, forçosamente ela deve ter em si algo que corresponda ao ser de Deus, pois de outra forma jamais se estabeleceria uma conexão entre ambos. Esta correspondência, formulada psicologicamente, é o arquétipo da imagem de Deus (Jung, 1944/2012b, p. 22, § 11, itálicos do autor).

O paralelo que o autor estabelece entre si-mesmo e Deus tem trazido discussões conceituais. Ao identificá-lo com Deus, Jung adentra à área da teologia, o que provocou diversos debates interdisciplinares, dentre os quais o que apresentamos neste estudo. Samuels, Shorter e Plaut (1988) apontam que

Não se pode considerar o conceito de Self separadamente de sua semelhança com uma imagem de Deus e, consequentemente, a psicologia analítica foi confrontada tanto por aqueles que saúdam uma aceitação dela como um reconhecimento da natureza religiosa do homem, como por outros, sejam médicos, cientistas ou religiosos dogmáticos, que consideram inaceitável uma tal formulação psicológica (p. 123, itálico do autor).

Mas, como Samuels et al. (1988) afirmam, podemos considerar a hipótese de que, ao associar o si-mesmo à imagem de Deus, Jung faz uma alusão simbólica, concebendo a imagem do divino como uma expressão do si-mesmo. Essa questão tem provocado as mais diversas reações, tanto no meio científico como no teológico.

Segundo Jung, podemos conceber a figura de Cristo, pelo menos a partir de um ponto de vista psicológico, como um símbolo do si-mesmo. Cristo representaria um mito vivo da civilização ocidental, "o herói de nossa cultura" (Jung, 1951/2012c, p. 51, § 69) que encarna o mito do homem primordial.

Entre os possíveis símbolos do si-mesmo, Jung confere especial atenção à mandala. Trata-se de uma expressão sânscrita que, em um sentido mais amplo, significa "círculo". Baseando-se em suas pesquisas transculturais, o autor aponta para a universalidade dessas representações que pertencem aos símbolos religiosos mais antigos da humanidade. No âmbito dos costumes religiosos, a mandala refere-se a imagens circulares pintadas, desenhadas, configuradas plasticamente ou dançadas (Jung, 1955/2012, p. 393, § 713).

Podemos observar a emergência do conceito no trajeto pessoal de Jung, em função de decisivas experiências iniciadas no período entre 1916-1918 (Stein, 2006). A formulação do conceito, por outro lado, conta com diversas representações do Self nos vários sistemas religiosos do mundo (Hopcke, 2011). Jung trabalhou incessantemente no desenvolvimento do conceito do Self até torná-lo parte integrante de sua obra, passando, a partir de então, a classificá-lo como a experiência ou imagem de Deus na psique humana.

White e Jung

O padre dominicano Victor White, colaborador de Jung por 15 anos, entre os anos 1945 e 1960, tinha 43 anos de idade quando começou a se corresponder com o psiquiatra. À época, era professor de dogmática em Blackfriars, Oxford. Foi um estudioso da obra de São Tomás de Aquino e tradutor da Suma Teológica. Seu principal tema de interesse científico era a investigação de paralelos entre a filosofia tomista e a psicologia junguiana.

De acordo com Bair (2006), Jung teria encontrado em White um religioso erudito que entendia a importância da psicologia para os seres humanos e a sociedade. A autora afirma que White abordou muito o simbolismo religioso nos momentos iniciais da relação entre ambos, tendo a oportunidade de compartilhar seu interesse pela psicologia analítica com Jung. Eles discutiram abertamente os temas referentes à psicologia e à religiosidade. Há, inclusive, relatos de possível relacionamento analítico entre os dois colaboradores, embora o fato não tenha sido confirmado.

Após os primeiros cinco anos de relação, a amizade começou a sofrer desgastes, passando a ser permeada por desavenças desencadeadas pelas diferenças conceituais e filosóficas de ambos. As discussões de temas religiosos como a doutrina do privatio boni promoveu franco embate na época da publicação de resposta a Jó. White sentia que seria prejudicado em sua carreira eclesiástica no caso de seu nome estar ligado à obra. Após essa discordância, os pensadores distanciaram-se por completo, mesmo que nenhum dos dois tenha decretado o fim da colaboração e da amizade de forma oficial. A relação entre ambos tornou-se fria e silenciosa, permanecendo assim até o falecimento de White em 1960.

 

Resultados

Apresentamos aqui os tópicos provenientes da análise de conteúdo das cartas entre Jung e White. Em primeiro lugar, destaca-se as discriminações entre os enfoques da psicologia analítica e o da teologia às manifestações da imagem de Deus. Em seguida, trata-se das manifestações de Self no âmbito coletivo e seus aspectos como bem e mal na consciência humana. As implicações desta manifestação e a divisão das faces de Deus são abordadas. São apresentadas ainda as possíveis manifestações simbólicas coletivas de Self. Por fim, resume-se os principais comentários de Jung sobre a pessoa de White que emergiram das trocas interpessoais entre os pensadores.

(i) Interdisciplinaridade, ciência e teologia

No decorrer da sua vida pessoal e da sua carreira, Jung, por diversas vezes, relacionou-se com a imagem de Deus. Tais manifestações da psique objetiva influenciaram suas ações e comportamentos.

Essas diversas representações da imagem de Deus começaram a se apresentar durante sua infância e tornaram-se constantes no decorrer de sua prática clínica, emergindo do inconsciente de seus pacientes. Isso recebeu grande atenção da parte de Jung, que se baseou nelas para desenvolver a teoria do arquétipo do Self, definido pelo psiquiatra como correlato da imagem de Deus para a psicologia - centro e a periferia da psique -, organizador da vida do ser humano individual e socialmente.

Diante de um tema que, na maioria dos casos, pertence aos campos religioso e metafísico, Jung fez questão de realizar suas pesquisas sempre observando o método científico, utilizando dados empíricos para demonstrar suas descobertas. Por diversas vezes, afirmou que seu trabalho restringia-se ao estudo e à descrição da imagem de Deus, não permitindo emitir opiniões sobre a existência ou materialidade de Deus. Afirmava que esse direito era dado ao sacerdote, que poderia falar livremente sobre o assunto sem ter de se prender ao método científico.

Em diversos momentos registrados em suas cartas endereçadas ao padre Victor White, disse que era de suma importância utilizar uma linguagem adequada para diferentes públicos, para que tivessem uma compreensão clara a respeito desse tema. Dizia que seu público leitor, pela vivência de seu cotidiano, tinha se afastado da liturgia, e que os conceitos contidos no dogma não mais se comunicavam com essas pessoas, representando um conceito vazio para eles. Movido por essa preocupação, entendeu que o estudo da imagem de Deus era um elemento essencial para a compreensão da psique humana, e a manutenção de Deus no nível do dogma causaria a estagnação psíquica no ser humano.

(ii) A imagem de Deus para a psicologia analítica

A imagem de Deus tem um papel central no corpo teórico da psicologia analítica. Ela é correlata ao arquétipo do Self, que possui características muito semelhantes às manifestações divinas. Foi identificada por Jung em expressões culturais de diferentes partes do mundo e tempos históricos e em suas experiências empíricas como psicoterapeuta.

A correspondência entre White e Jung trata tanto da imagem de Deus como do Self. Cabe ressaltar que, mesmo estudando a problemática da imagem de Deus sob óticas distintas, Jung, a partir da ciência, e White, a partir da religião, tiveram uma ligação consciente e inconsciente, que pode ser comprovada pelos sonhos relatados por ambos. Uma hipótese é que estes sonhos expressem um relacionamento sincronístico guiado/estimulado pelo arquétipo do Self.

O conceito inicial da imagem de Deus foi definido por Jung como um dado concreto e nomeado como ao menos um complexo psíquico. Tal definição foi produzida quando Jung encontrava-se na psiquiatria e tinha que escrever para um público específico. Parte do desenvolvimento desse conceito e da sua função é relatado nas cartas analisadas a partir dos sonhos de Jung e de White.

Jung afirmou que o seu relacionamento com o inconsciente foi intensificado ao tomar consciência da imagem de Cristo dentro de si e não somente como dogma. As manifestações do inconsciente na sua vida apresentaram símbolos de Self e aqui pode-se citar dois exemplos.

Em um sonho a respeito de uma travessia marítima, Jung sofre um naufrágio e um novo barco lhe é dado por um ser gigante, permitindo que ele continue sua jornada. Segundo Jung, este sonho sugere ampliação de recursos da consciência pelo entendimento das imagens inconscientes e o ser gigante pode simbolizar o Self (19/12/1947, p. 103).

Em outro sonho, Jung relatou (19/12/1947, p. 104) que estava com alguns padres em um acampamento/quartel. Para ele, a simbologia dos padres e do quartel significam respectivamente submissão e disciplina. A escassez de camas denotava uma necessidade de aproximação com um aspecto psíquico que ainda não se relacionava com o ego, ou de um relacionamento que precisava ser intensificado. Jung considerou que essa experiência expressou a participação de símbolos inconscientes, que emergiram na consciência, auxiliando a psique no processo de individuação.

A partir de um sonho de White, que foi interpretado por Jung, podem ser encontradas outras simbologias que fazem referência à imagem de Deus. Nesse sonho, destacam-se os elementos "vento" e "norte" que, para Jung, significavam respectivamente o Espírito Santo e a função intuitiva da psique, e ambos os elementos relacionavam-se com o Self. O vento teve a função de impulsionar e guiar White por sua jornada; já o norte representava a intuição, permitindo que ele buscasse novos tipos de entendimento em seu objeto de estudo que é a doutrina católica.

Partindo desses símbolos, Jung insiste na importância das imagens de Deus (representações do arquétipo do Self) para a dinâmica da individuação. Afirma que o desenvolvimento da psique humana é um processo com grandes desafios e provações para o homem e que este não possui absoluto controle sobre esse processo. A totalidade psíquica representada por Self traz orientações aos seres humanos.

(iii) O cristianismo como expressão do espírito do tempo

O mitologema cristão exerceu grande influência na maioria das sociedades ocidentais, sendo o responsável pela formação do homem contemporâneo e, por isso, caracterizando-se como um dos principais objetos de estudo da psicologia analítica. As imagens contidas nesse conjunto simbólico serviram de material para que Jung, a partir de seus estudos teóricos e de campo, aliado a experiências pessoais, desenvolvesse a teoria do arquétipo do Self ou da totalidade.

Para Jung, o arquétipo do Self possui um aspecto dinâmico e suas imagens modificam-se de acordo com a evolução da psique ao longo do tempo. Neste tópico, podemos verificar, a partir das cartas de Jung enviadas ao padre White, como a evolução do arquétipo do Self se processa.

O desenvolvimento da imagem do Self foi observado por Jung na evolução da simbologia cristã. Baseando-se nos estudos da doutrina cristã, Jung notou que o Deus do Antigo Testamento podia ser definido como uma entidade irrefletida, sem autocrítica e ambivalente, que não se reconhecia em Sua obra, podendo ser comparado a uma representação do inconsciente em seu estado puro. Possuía a característica da onipotência, agindo sempre conforme sua vontade, sem levar em consideração a vontade do homem, que existia apenas para adorá-lo. Em caso de desobediência, o homem deveria sofrer punições e castigos.

Para Jung, os fariseus ortodoxos pautavam-se na lei de forma estrita para se relacionar com Deus e se autodenominavam "o povo eleito". Uma lenta mudança de paradigma pode ser observada ao analisarmos as ações de alguns personagens da história bíblica, como Jó e Jacó, que confrontaram Deus e questionaram sua vontade, posteriormente sendo por Ele perdoados e atendidos de alguma forma. Para Jung, a atitude do homem é responsável ao menos em parte pela mudança de posicionamento de Deus em relação à sua criação e a si próprio.

No que se refere à simbologia do Self, a mudança na forma de relacionamento entre Deus e os homens provocou a divisão do arquétipo, representando a divisão da própria natureza de Deus - que culminou no início da Era de Peixes, no advento de Jesus Cristo - e a representação da sua sombra pelo diabo.

Para Jung, a encarnação de Cristo foi o símbolo que marcou o nascimento da consciência moral no ser humano. No momento em que o símbolo da unidade transformou-se em símbolo da dualidade, por exemplo, com o surgimento de Cristo e Satanás ou mesmo pela dupla natureza de Cristo, divina e humana, o ser humano passou a adquirir mais autonomia e responsabilidades sobre suas ações, bem como sobre sua relação com o mundo e a sociedade. Essas transformações, segundo Jung, são fruto de um processo de divisões e sínteses do arquétipo do Self que representam as demandas para o desenvolvimento e aprimoramento psíquico do ser humano.

Diferentemente de White que considerava as duas naturezas de Jesus como perfeitas, Jung as considerou representativas dos aspectos conscientes e inconscientes do homem. Como parte de um mitologema, Jesus não podia cumprir a função de representação simbólica do Self integrado, pois era humano e possuía uma sombra simbolizada por Satanás, sendo, portanto, imperfeito.

Para Jung, a via da imitação de Cristo simboliza o caminho da individuação com todas as implicações e dificuldades contidas nesse processo. Mesmo que nossa sociedade ainda não tenha iniciado o conflito com a própria sombra, o homem deve saber que esse conflito é inevitável. Faz-se necessário conhecer os símbolos norteadores e a busca pelo desenvolvimento das funções compensatórias que colocarão o homem no caminho de integração com Self.

O caminho proposto por Cristo, afirma Jung, coloca o homem em contato com a escuridão e com sua sombra, tarefa que se faz necessária para que se possa, simbolicamente, superar a Era de Peixes e iniciar a Era de Aquário, com o ser humano manifestando o Espírito Santo, ou seja, integrando o Self em sua psique.

O símbolo de Cristo como representante da aguda divisão entre o bem e o mal ofereceu referências à moralidade humana. Do ponto de vista psicológico, indica, simbolicamente, a divisão entre as dimensões consciente e inconsciente do homem. Na Era de Aquário, a qual iniciamos, as representações de Self passam a indicar novas tarefas coletivas a serem cumpridas, relativas ao Paracleto, ou seja, à presença do Espírito Santo como símbolo da presença de Deus em cada ser humano.

(iv) Bem e mal

A discussão sobre a natureza do bem e do mal é um tema presente e crucial na correspondência entre Jung e White. Os argumentos usados para defenderem suas posições aplicam-se à doutrina do privatio boni, defendida por White e atacada por Jung. De maneira resumida, esta doutrina afirma que Deus representa o bem supremo e que o mal ocorre na falta deste.

Jung se contrapõe a essa doutrina, afirmando que a forma como a igreja define o mal caracteriza-se como um erro fatal, pois não considera possível reduzir ou anular o mal simplesmente por sua negação, considerando-o como imaterial.

A tentativa que faz a Igreja Católica de transformar a materialidade do mal em um bem diminuto, afirmando assim a figura de um Deus integrado e definido como Sumo Bem, segundo Jung, apenas disfarça a sombra da instituição e a dualidade de sua doutrina. Jung argumenta que o mal já existia antes da criação do ser humano, oferecendo como exemplo a simbologia de Lúcifer, que se rebelou contra Deus, demonstrando inclusive que a criação divina possuía os mesmos vícios que seu criador.

Ao contrário da igreja, Jung afirma que a representação de Deus no Antigo Testamento era de um ser dúbio e moralmente questionável, que constantemente agia com injustiça, por possuir uma natureza irrefletida, sem autocrítica e ambivalente. Sua própria criação fez com que suas imperfeições refletissem uma criação também imperfeita.

Jung afirma ainda que, atualmente, nossa sociedade passa por um momento de grande perigo, pois sofre a influência do arquétipo divino, sem possuir para isso a devida consciência de sua atuação. O ser humano tem dado mostras de sua onipotência e não está acompanhado pelo devido desenvolvimento moral, tendendo à autodestruição. Nesse cenário, a doutrina do privatio boni, além de questionável, torna-se perigosa, pois a privação do mal como realidade enfraquece e esvazia o seu oposto que é o bem, o que acarreta danos à psique coletiva da sociedade. Jung propõe que o símbolo de Cristo, como mediador de opostos do conflito entre Deus e o homem, como dito, traz consigo a escuridão contida em Deus e ao mesmo tempo as ferramentas para enfrentá-la.

Da mesma forma que Cristo se separou de sua sombra e sofreu diversas provações durante sua vida, o homem deve seguir seu modelo para alcançar o desenvolvimento psíquico necessário à individuação. Como exemplo, Jung nos relata uma experiência pessoal pela qual passou.

Após um período de recuperação, depois de sofrer uma grave enfermidade, Jung conta que, em um momento de grande sofrimento, teve a sensação de que poderia falecer a qualquer hora. Como compensação psíquica desse processo, teve um sonho repleto de símbolos da totalidade e de imagens do Self. Este sonho lhe proporcionou grande compreensão e equilíbrio. As imagens presentes no sonho não vieram dele, mas foram enviadas por Deus2 que, naquele momento, atuava em conjunto com ele e, por isso, pode se manifestar como símbolo do restabelecimento de sua saúde.

Apesar de esse tema ser de grande interesse e objeto de exaustiva exploração por Jung, ele considera não ser possível entender como se procede à união de opostos na psique, pelo fato de o processo ocorrer em grande parte de maneira inconsciente. Para Jung, os opostos psíquicos encontram-se contidos na imagem de Deus e explicam suas ações, como também estão contidos na imagem de Cristo que, por si só, é uma dualidade. A função do ser humano é vivenciar o processo de individuação, entendendo que essa dimensão que a religião chama de Deus e a psicologia chama de Self opera em cada um de nós e consiste em uma ferramenta indispensável para este processo.

(v) Símbolos

Segundo Jung, o símbolo é a mais perfeita representação de algo que ainda não é conhecido, cuja existência é apresentada psicologicamente. Na correspondência entre Jung e White há diversas referências a símbolos relativos ao arquétipo da totalidade, o Self. Como exemplos, podemos citar Deus, a Cruz, Jesus Cristo, bem como os seus atos, as passagens que representam sua vida descrita nos evangelhos da Bíblia.

Para Jung, é muito importante a compreensão do significado simbólico de Jesus Cristo inserido na doutrina cristã. Ele afirma que as pessoas têm dificuldade em lidar com a tarefa da imitação de Cristo, pois esta traz o enfrentamento de nossa própria sombra.

Jung critica a posição de White que considera a dupla natureza de Cristo como completamente perfeita. Para Jung, o símbolo de Cristo encarnado, acompanhado de sua sombra, não o invalida como representação do Self, pelo contrário, ele considera que a dualidade luz e sombra consiste em uma etapa fundamental para que o símbolo do Self se transmute em uma totalidade na psique humana.

Outra passagem considerada bastante importante é a da crucificação de Cristo. Para Jung, Cristo é idêntico à cruz. No âmbito da doutrina, Cristo e a cruz são conceitos intercambiáveis. Ele explica que a árvore tem função terrena, sendo compensatória em relação ao aspecto espiritual de Cristo. O símbolo da cruz possui dupla significação: a árvore da vida, da qual Jesus se separou da totalidade quando se fez homem, e também o elemento necessário para o restabelecimento desta mesma totalidade. Cristo torna-se novamente divino após a crucificação. O conflito de opostos encerra-se na Páscoa, quando Cristo é colocado no ventre da terra, perdendo seu aspecto humano e integrando-se novamente à totalidade.

Em última instância, a crucificação ou a união de Cristo com a árvore simboliza a integração do homem com seu inconsciente, que promove a transformação de ambos e possibilita a realização da totalidade psíquica.

Vale destacar que a troca de correspondências entre Jung e White não se limita aos símbolos da temática cristã para representar o arquétipo da totalidade, utilizando-se das imagens propostas por correntes da cabala, da alquimia e do gnosticismo. Jung fala de outras representações simbólicas do arquétipo do Self presentes na correspondência com o padre White retiradas da cultura greco-romana pela alquimia medieval. Como exemplo, temos o homo quadratus, que representa a união de todos os aspectos da natureza na psique humana. Fala também das representações da antiguidade, quando a totalidade era representada por deuses, planetas e constelações. Jung também nos apresenta imagens da cabala como representação simbólica do Self e os elementos da cultura judaica - a centelha, o grão de mostarda e o Yod, que representam resumidamente a presença divina no interior do ser humano.

(vi) Sobre White

Na troca de correspondências entre Jung e White, Jung levantou algumas questões sobre a conduta do padre. Argumentou que White deveria buscar compreender conteúdos que o afetavam, para que pudesse equilibrar os seus opostos, fazendo o trabalho de confrontação de sua sombra, representada pelos problemas que ele não queria encarar, relacionados à sua individualidade e à obediência à doutrina católica.

Jung afirmou também que ele deveria seguir seu caminho de individuação, ao invés de somente servir ao homem ou a Deus enquanto se anulava. Considerava que esse processo lhe causaria grande sofrimento e que, para encontrar o equilíbrio, White deveria direcionar-se ao centro de sua psique e aceitar sua orientação, mesmo que contra Deus e contra o sacerdócio, da mesma forma que Jó procedeu em sua relação com Deus.

Por fim, Jung tentou convencer White que ele apenas encontraria conforto e paz de espírito quando realizasse o seu Self. Jung buscou prevenir o amigo de que, mesmo sendo inevitável a escolha do caminho da individuação, ela sempre implicaria provações e sofrimento, fatores necessários para a realização da totalidade psíquica.

 

Cartas entre Jung e White: discussões propostas

Os resultados da análise de conteúdo apresentados neste estudo em categorias temáticas circulam em torno do tema central do arquétipo do Self, sua expressão na psique, sua natureza, dinâmica e propósito. Nas cartas estudadas, Jung resgata elementos históricos referentes ao Velho e ao Novo Testamento que são indicadores da evolução de consciência da humanidade, perpassada pela separação e união de opostos. Os resultados apresentados indicam diversos processos conflitivos que ocorrem no plano individual e coletivo e que fazem parte do processo de individuação proposto por Jung. Os resultados identificam também algumas chaves para a compreensão desses conflitos, que pode resultar em ampliação da consciência.

As diversas representações de Deus, vistas como símbolos, representam estágios do processo de individuação e realização do Self que têm grandes implicações na compreensão do desenvolvimento da psique individual e coletiva. A discussão do símbolo de Cristo e a separação dos opostos no cristianismo indica que a integração do mal à consciência humana é fundamental para o processo de individuação. Jung combate de maneira explicita a doutrina do privatio boni defendida por White, na qual todo o mal é compreendido como ausência do bem - sendo Deus visto como o bem supremo.

Dessa maneira, a compreensão psicológica dos símbolos religiosos feita por Jung indica a abrangência da leitura psicológica que se debruça sobre aspectos históricos e psicológicos da religião. Suas ideias a esse respeito demonstram o alcance da psicologia analítica e do seu método de investigação. De um lado, Jung se abstém de considerações metafísicas, afirmando que a psicologia alcança somente manifestações do plano transcendente, a partir das suas manifestações simbólicas, sincronísticas e experienciais, distinguindo assim as duas áreas de estudo: a psicologia e a teologia. Por outro lado, Jung explora a importância do conceito de Self, como correlato psíquico da imagem de Deus, criador e ordenador da dimensão psíquica individual e coletiva.

Os desdobramentos desse tema mostram, através da exposição da visão de Jung, o seu valor. Como dito, para o autor, o estudo da imagem de Deus é essencial para o entendimento da psique humana e sua manutenção como dogma resultaria na estagnação psíquica do ser humano. Diante disso, Jung destaca a relevância da psicologia como uma forma de aproximação da imagem de Deus por meio do conceito de Self, tanto para o homem individual como para a humanidade, dada a sua importância para o processo de individuação.

Jung afirma que a dualidade luz e sombra, que se apresenta em Deus e em Jesus Cristo, consiste em aspectos fundamentais que necessitam de integração pela consciência humana. Para que a totalidade psíquica seja reconhecida, é fundamental que o bem e o mal sejam reconhecidos como tal. A observação da história humana e a constatação de que o símbolo da unidade transformou-se em dualidade, como Cristo e Satanás - ou mesmo, como a natureza divina e humana de Cristo ofertou mais independência ao ser humano -, requerem, porém, que o homem também se responsabilize por suas ações. Assim, as divisões e sínteses do arquétipo de Self retratam e demandam aprimoramento psíquico do homem.

 

Considerações finais

O presente estudo debruçou-se sobre a compreensão de Self para Jung, uma vez que este conceito configura-se como um dos mais importantes e complexos da psicologia analítica, a pedra angular da psique. Apresentou uma breve revisão teórica sobre o conceito, informações sobre o padre Victor White e sua relação com Jung e, em seguida, os resultados da análise de conteúdo realizada sobre o tema na obra "The Jung-White Letters" (Lammers & Cunningham, 2007). O artigo também destacou alguns dos principais temas discutidos entre Jung e White sobre a relação entre a imagem de Deus e Self na referida obra, visando a ampliar a sua compreensão. Paralelamente, forneceu informações históricas sobre o pensamento de Jung e esclareceu aspectos da sua atividade científica, de caráter interdisciplinar.

Entendemos que o método da análise de conteúdo, utilizado neste trabalho, produziu uma síntese relevante sobre o tema eleito para estudo, embora a linguagem predominantemente coloquial do livro em questão represente um desafio à interpretação. O fato de o método exigir uma leitura pormenorizada da obra permitiu uma compreensão aprofundada dos significados manifestos e subjacentes nela contidos. Os conteúdos apresentados trouxeram esclarecimentos, mas, dada a natureza coloquial do texto original, deixaram questões em aberto, como a diferença entre as imagens de Cristo e a de Deus, bem como sobre a relação entre totalidade e unidade. De forma geral, a eleição das unidades de análise proporcionou maior abrangência da compreensão das expressões de Self, sob diferentes ângulos.

A análise do material pesquisado proporcionou uma considerável gama de amplificações simbólicas que fazem referência a Self e que estão presentes no debate entre Jung e White, fornecendo elementos para a compreensão da função dos opostos na psique e sua importância para a ampliação da consciência individual e coletiva. A dedicação à leitura simbólica oferecida por Jung sobre a individuação da humanidade, a partir do estudo do cristianismo, é, no nosso ponto de vista, uma reafirmação da sua atualidade e da importância da psicologia analítica para a ampliação de conhecimentos sobre o homem e seu percurso de desenvolvimento.

 

Referências

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Stein, M. (2006). Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1998).

 

 

Recebido: 19 jan 2021
1a revisão: 12 fev 2021
Aprovado: 19 maio 2021
Aprovado para publicação: 02 jul 2021

 

 

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: André Pansarini de Paula Rodrigues - Psicólogo formado pelo Centro Universitário São Camilo. Atua como psicoterapeuta em consultório particular e desenvolve, em paralelo, projeto social de atendimento psicológico para pessoas impactadas pelos efeitos da COVID-19.
Paola Vieitas Vergueiro - Analista junguiana pelo Instituto Junguiano de São Paulo - IJUSP, membro da Associação Junguiana do Brasil - AJB, filiada à International Association for Analitical Psychology - IAAP. Doutora em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP; mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pelo Instituto Mackenzie; especialista na abordagem junguiana pela PUC-SP; graduada em Psicologia pela PUC-SP; arteterapeuta formada pela Associação de Arteterapia do Estado de São Paulo. E-mail: paola.vv@hotmail.com
* Este artigo é derivado da monografia "Cartas entre White e Jung: uma análise de conteúdo" (2018), apresentada no Centro Universitário São Camilo para graduação em Psicologia
1 Nota editorial: a palavra latina "Increatus", que compõe o título do artigo, significa "incriado", ou "não criado". (Michaelis, https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/incriado)
2 Nota dos autores: em nossa opinião, Jung sentiu-se à vontade para usar a expressão "enviadas por Deus" por se tratar de uma correspondência marcada pela informalidade e pessoalidade, como destacamos várias vezes neste artigo.