ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2021.vol06.0004

 

O que dizem da gente os que "não falam": afetos que permeiam a relação entre humanos e não humanos na atualidade

 

What those who "do not speak" say about us: affections that permeate relationship between humans and non-humans nowadays

 

Lo que dicen de nosotros los que "no hablan": afectos que impregnan la relación entre humanos y no humanos en la actualidad

 

 

Daniela LASKANI

São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo buscou debater, sob a perspectiva da psicologia analítica, a inclusão de múltiplas espécies no manejo entre humanos e não humanos. O percurso de nossa existência na Terra colecionou uma série de imagens, símbolos e sonhos formados na relação com as múltiplas espécies. Na atualidade, os retratos antagônicos no manejo de cuidados e torturas com os não humanos demonstram um mundo contemporâneo polarizado e em constante transformação. Desorientados, precisamos procurar por olhares ainda desconhecidos para os filhos do Antropoceno. O trabalho tem como objetivo um olhar plural da existência, capaz de escutar a voz dos que "não falam", por serem considerados não possuidores de linguagem ou não dotados de um elevado nível de consciência, e, em decorrência desses fatores, serem passíveis de dominação. A metodologia utilizada foi de revisão bibliográfica sobre o tema, nas áreas da ecologia, botânica, antropologia, filosofia e psicologia analítica. Concluiu-se que é necessário incorporar nossas raízes animalescas como predicados para o encontro com as vozes do mundo e seus seres e que é preciso, urgentemente, beber da fonte de outras ontologias que foram negadas no processo de conscientização do mundo, bem como trabalhar para que estas fontes possam servir como manancial de imaginação e interconectividade dos vínculos transhumanos.

Descritores: afeição, psicologia junguiana, biodiversidade, ontologia, imaginário.


ABSTRACT

This article aimed to discuss, from the perspective of analytic psychology, the inclusion of multiple species in the handling between humans and non-humans. The course of our existence on Earth gathered a series of images, symbols and dreams formed in the relationship with the multiple species. Nowadays, antagonistic reports about the handling of care and torture with non-humans demonstrate a contemporary world polarized and in constant transformation. Disoriented, we need to look for views yet unknown for the children of the Anthropocene. The objective of this paper was to launch a plural view over existence, capable of listening to the voice of those who "do not speak", for being considered to have no language or not to have a high level of awareness, therefore, vulnerable to domination. The method applied was bibliographic revision in the areas of ecology, botanic, anthropology, philosophy and analytic psychology. It was concluded that it is necessary to incorporate our animalistic roots as predicates for the encounter with the voices of the world and its beings, and that it is necessary to urgently drink from the sources of other ontologies that were denied in the process of achieving awareness of the world, as well as to work for these sources to serve as the fountain of imagination and interconnectivity of transhuman bonds.

 Descriptors: affection, junguian psycology, biodiversity, ontology, imaginary.


RESUMEN

Este artículo procuró debatir, desde la perspectiva de la psicología analítica, la inclusión de múltiples especies en el manejo entre humanos y no humanos. La trayectoria de nuestra existencia en la Tierra coleccionó una serie de imágenes, símbolos y sueños formados en la relación con las múltiples especies. En la actualidad, los retratos antagónicos en el manejo de cuidados y torturas con los no humanos demuestran un mundo contemporáneo polarizado y en constante transformación. Desorientados, necesitamos buscar miradas aún desconocidas para los hijos del Antropoceno. El trabajo tiene el objetivo lanzar una mirada plural de la existencia, capaz de escuchar la voz de los que "no hablan", por ser considerados desposeídos de lenguaje o no dotados de un elevado nivel de consciencia, y, a causa de esos factores, son sujetos a dominación. La metodología utilizada fue de revisión bibliográfica sobre el tema, en las áreas da ecología, botánica, antropología, filosofía y psicología analítica. Se concluyó que es necesario incorporar nuestras raíces animalescas como predicamentos para el encuentro con las voces del mundo y sus seres y que es necesario, urgentemente, beber de la fuente de otras ontologías que fueron negadas en el proceso de tomada de conciencia en el mundo, como también trabajar para que estas fuentes puedan servir como manantial de imaginación y interconectividad de los vínculos transhumanos.

Descriptores: afección, psicología junguiana, biodiversidad, ontología, imaginario.


 

 

Introdução

Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me toda. Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados que diante do bicho sou obrigada a assumir.

Conheci um ela que humanizava bicho conversando com ele e emprestando-lhe as próprias características. Não humanizo bicho porque é ofensa - há de respeitar-lhe a natureza -, eu é que me animalizo. Não é difícil e vem simplesmente. É só não lutar contra e é só entregar-se.

Nada existe de mais difícil do que entregar-se ao instante. Esta dificuldade é dor humana. É nossa. Eu me entrego em palavras e me entrego quando pinto.

(Lispector, 1973, p. 57)

Na visão de Jung (1918/2012), o que diferencia humanos de não humanos é a camada de cultura que, ao longo da história, mais precisamente a partir da Idade da Pedra, misturou-se aos resquícios de animalidade primitiva, possibilitando assim a passagem de animal para humano com o desenvolvimento do inconsciente coletivo. Porém, tem-se discutido muito a respeito da ideia de humanidade na atualidade. Essas discussões buscam referências em outras ontologias que reconhecem a existência de múltiplas humanidades pensantes, diversificadas e plurais, que não se resumem a seres humanos. A biodiversidade terrena teve seu saber negado, colonizado e inferiorizado pelas principais fontes de conhecimento do mundo. Veremos a seguir o que autores como Eduardo Viveiros de Castro (2009/2018), Juliana Fausto (2020) e Ailton Krenak (2019) têm a dizer sobre a colonização da ideia de humanidade.

Ailton Krenak (2019), em seu livro "Ideias para adiar o fim do mundo", afirma que ainda hoje os humanos baseiam-se em imagens e ideais decorrentes de raízes colonialistas de esclarecimento, domínio e controle, para pensar a humanidade. Ailton (2019) põe em questão a multiplicidade da raça humana e a base do antropocentrismo, que nega a capacidade de sabedoria e inteligência das outras espécies e elementos da natureza.

Viveiros de Castro (2009/2018) aponta para a impossibilidade de determinar o humano e diz que "o próprio do Homem é não ter nada de próprio" (p. 26). Afirma ainda que o fato de não ter algo que decrete o que lhe é distintivo, atribui-lhe direitos ilimitados de propriedade - o que significa que aos humanos, todos os direitos de um mundo, enquanto que para todos os seres não humanos, o único direito é ter um mundo negado. Não bastasse isso, o autor denuncia um desejo incessante de conquista, ao comentar que o mundo pertence aos humanos "completos e acabados, grandiosamente inacabados e exploradores de mundos desconhecidos, acumuladores de mundos, milionários de mundos e configuradores de mundos" (Castro, 2009/2018, p. 26). Toda a base do imaginário de humanidade, construída pelos olhares colonialistas, de certa forma, vem sendo questionada para que os ventos dessa identidade possam soprar em outras direções.

Juliana Fausto (2020) expõe a relação da cultura colonialista dos animais humanos e o nosso envolvimento com os animais não humanos ao longo da história. A autora atenta-se ao cuidado para dar nomes e nos diferenciar, sem nos destituir da condição de animais. Ela se utiliza do termo agambeniano zona de indistinção, para descrever os equívocos da humanidade, em sua tentativa de se diferenciar de outras espécies, que desqualificam tudo aquilo que possui corpo e é capturável. Tanto os animais não humanos quanto os animais humanos tiveram seus corpos capturados, utilizando-se da narrativa da curiosidade, do estudo e da ciência, para estabelecer limites entre o que se considera humanidade e os outros. Tais limites foram traçados por quem é dotado do poder de aniquilar corpos, estabelecendo assim a dinâmica básica para o preconceito e estereótipos. Ainda por Juliana Fausto:

Ninguém contestaria a afirmação de que não existe política para apenas um; mesmo assim, em grande parte dos discursos políticos, filosóficos ou não, encontra-se a pretensão de que ela diz respeito a uma só espécie, Homo sapiens, ou a um só povo, o daqueles que se chamaram propriamente de Homens. Para fazer política, segundo eles, é preciso possuir um dom singular e exclusivo - encarnado com excelência pelas diferentes acepções de lógos e suas variações históricas - que permitiria apenas aos homens conhecer a Justiça, o Bem, tomar decisões informadas ou agir de acordo com uma finalidade comum. Somente pela propriedade desse diferencial, essencial ou adquirido, mundos poderiam ser construídos, comunidades de fato erigidas, relações políticas travadas (2020, p. 320).

Baseado na pesquisa histórica sobre os direitos dos animais, Peter Singer (1975/2010) chama a atenção para um tipo de preconceito que ultrapassa as barreiras do humano. Ele nomeou esse preconceito de especismo, descrito como tendência em favor de interesses próprios contra outras espécies. Singer (1975/2010) conta como foi construída a noção de igualdade, que nada tem a ver com ser igual ao outro. O que deve ser levado em conta é a igualdade dos interesses de cada ser afetado comparados àqueles de qualquer outro ser. As implicações do princípio de igualdade trazido por Singer (1975/2010) mostram que os interesses pelos outros seres não devem depender da igualdade de espécie, aparência ou capacidades.

 

A complexidade da vida

Acreditava-se que somente os humanos possuíam a capacidade de imaginar e criar ficções a partir de algo ainda não vivido ou não conhecido. No entanto, o neurocientista Sidarta Ribeiro, em seu livro "O oráculo da noite" (2019), revela que a única diferença dos sonhos dos humanos em relação aos dos outros animais, que se sabe cientificamente serem capazes de sonhar, é o tempo em que estes últimos permanecem em estado de sono profundo, o sono REM (do inglês: "Rapid Eye Movement", movimento rápido dos olhos). Neste estado, as ondas cerebrais atingem uma atividade parecida com aquela do estado de vigília, indicando alta atividade cerebral, rica na produção de imagens oníricas. Segundo o autor, os não humanos não somente sonham, como também são capazes de aprender novos comportamentos a partir de seus sonhos, como o reconhecimento do perigo ou quais terrenos são os mais favoráveis para a sobrevivência de sua espécie.

Fica ainda mais explícito o direito da dominação dos animais humanos sobre os vegetais. O termo vegetativo surgiu da ideia de que vegetais são seres desprovidos de animosidade, uma vida que não sente, não se movimenta, que nada diz ou tem a dizer. Porém, vivendo entre os não humanos, os vegetais, em pé de igualdade, sofrem violência pelas mãos humanas, que acreditam piamente ter o controle sobre todas as outras vidas, seres e matéria que não façam parte do seu imaginário de semelhança pautado na ideia de inteligência e da capacidade de desenvolver linguagem como requisito de humanidade (Oliveira et al., 2020).

O engenheiro florestal e estudioso Peter Wohllenben (2017) revelou olhares inovadores da vida de uma floresta. Segundo ele, as árvores se relacionam, se comunicam, se protegem, se reproduzem, sentem dor e migram, ou seja, evoluem. Ele relata que a complexidade de uma floresta é objetificada com facilidade no imaginário humano pelos seus passos em câmera lenta. As mudanças de uma floresta acontecem dentro de um percurso específico de tempo e podem demandar muitas gerações para serem observadas.

O botânico e apaixonado pelo funcionamento inteligente das plantas Stefano Mancuso (2019) descreve o reino vegetal como um universo surpreendente e lamentavelmente esquecido para se pensar tecnologias do futuro. Os vegetais apresentam formas de comportamento de coletividade complexas e parecidas com aquelas de animais polinizadores e suas comunicações através dos feromônios. Para Mancuso, as plantas fornecem múltiplas trocas de aprendizado necessárias para o reino animal, pois tendem a apresentar funcionamentos antagônicos e complementares. Mesmo possuindo 80% do peso de tudo o que é vivo no planeta, são reconhecidas como seres passivos pela maioria dos animais humanos em razão das dificuldades de reconhecimento e de entendimento de algo que não seja semelhante ao seu próprio funcionamento. Segundo o autor, as pesquisas têm provado que as plantas não são tão diferentes assim em termos de complexidade. No entanto, "Nós as consideramos uma mera parte da paisagem" (Mancuso, p. 95). É preciso muita imaginação para compreender as plantas como agentes de transformação e aprendizado. Há quem reconheça nos vegetais a capacidade de democratização e de descentralização de um núcleo, que comanda seus comportamentos equivalente ao cérebro nos animais. O que faz da planta revolucionariamente resistente é a própria descentralização de poder. Todas as suas funções estão espalhadas pelo seu corpo, tornando-as, muitas vezes, resistentes à morte, caso sejam divididas, queimadas ou intoxicadas. Muitas são as capacidades das plantas para sobreviver e se adaptar a ambientes hostis.

É necessário um olhar cuidadoso e animado como o do xamã para conhecer e transitar no mundo cosmológico de outros seres. O xamã é escolhido por antepassados espirituais para sentir o movimento de uma floresta, o que requer muito treino e aperfeiçoamento. Ele corre o perigo de ser capturado pelos espíritos de outros mundos toda vez que lhe é solicitado fazer uma viagem entre mundos (Kopenawa & Albert, 2015). Assim o yanomami Davi Kopenawa nos apresenta o mundo do xamã em seu livro "A queda do céu", escrito em conjunto com o antropólogo francês Bruce Albert (2015). Davi conta a Albert que a floresta habita um mundo infinito de seres visíveis e invisíveis, barulhentos e silenciosos, rápidos ou de uma lentidão milenar. Todos são seres habitantes da Terra, são pertencentes aos mesmos antepassados e têm como direito e prerrogativa evoluir para além da visão costumeira da gente, daquilo que chamamos de humanidade mercantilista e biológica.

Através de uma filosofia de múltiplas linguagens, Giorgio Agamben (2002/2017), em seu livro "O aberto", descreve como o homem e o animal traçam as pegadas deixadas por um caminho em aberto no que diz respeito às imagens e semelhanças entre o humano e o não humano. Não são claras as definições de barreiras que foram colocadas entre os seres. Agamben suspeita que a pobreza atribuída ao não humano seria apenas um reflexo da própria animalidade do homem. No fim, o homem sempre se redescobre animal, sempre retorna ao mito, e, em uma ação negadora de si mesmo, é capaz de dominar e destruir sua própria animalidade. Instala-se então um mundo indefinido, porém, articulado e dividido. Para Agamben (2002/2017),

Trabalhar sobre essas divisões, questionar-se sobre como - no homem - o homem é separado do não-homem e o animal do humano, é mais importante que tomar posição sobre grandes questões, sobre supostos valores e direitos humanos. E talvez até a esfera mais luminosa das relações com o divino dependa, de todo modo, daquela - mais obscura - que nos separa do animal (p. 31).

 

Desumanizar é preciso

A partir do que vimos até agora, podemos dizer que outras espécies de não humanos também possuem a capacidade de mobilizar mudanças de lugar na cultura, portanto, de agir como signo político na sociedade. É o que diz Gabriel Giorgi (2016) sobre a atuação política dos animais no imaginário coletivo, somada ao fato de que os humanos foram eficientes na capacidade de se descaracterizar como humanos e estereotipar as raças e as espécies. Estabeleceram alianças perversas de controles hierárquicos de convivência, inaugurando desejos de objetificação, aniquilação, de domínio e extermínio do outro. O outro quando funciona como gatilho de imagem do incognoscível, do selvagem, do indisciplinado, desperta o tom ameaçador daquilo que habita o mal, a falha, a imperfeição e, consequentemente, precisa ser dominado, aniquilado e usufruído para não se sobrepor ao bem, ao conhecido e ao controlável (Giorgi, 2016).

Hillman (2010), através da psicologia arquetípica, nos convoca para a necessidade de desumanizar. Para o autor, o que torna um ser colonizável é a literalização dos corpos sem imagens ou metáforas. "O humano não entra em tudo o que é da alma; nem tudo o que é psicológico é humano. O homem existe em meio à psique e não o contrário [] A alma tem rincões não humanos." (Hillman, 2010, p. 330).

Para Hillman (2010), desumanizar é necessário para ampliar a noção da psique especificamente humana, rumo a uma psique mais abrangente e universal. Mesmo que reconheçamos que o mundo é vivo, isto é, dotado de alma, é costume atribuírmos as experiências afetivas exclusivamente aos humanos. Só que a alma acontece por meio dos seres viventes e terrenos. A alma está no mundo e ela acontece sem distinguir os corpos por suas espécies ou reinos. Entre os seres terrenos estão os humanos e, portanto, é o humano que está a seu serviço e não o contrário. Desse modo nossas emoções, aflições e sentimentos acabam por ser atributos da alma que nos atravessa.

Em seu vasto trabalho com animais e imagens míticas, Hillman (2008) convida ao aprofundamento da imagem do animal. É preciso mais do que aprender a reconhecer que o animal é dotado de alma, é preciso olhar pelos seus olhos. A percepção do mundo necessita de um olhar estético para ser animada, sensível, ao ponto de poder farejar o cheiro dos fenômenos, dos feromônios do mundo. Para ele, todos os animais falam e se comunicam metaforicamente tanto para uma realidade observada quanto para a realidade simbólica. "O natural e o simbólico não podem estar separados" (2008, p. 32). E, para que possamos ouvir a linguagem do animal, é preciso o olhar estético e ecológico, indo além das alegorias metafóricas da imagem.

A noção de escolha do indivíduo humano, segundo o mesmo autor, é também uma fantasia mítica, junto com ela a construção da moral, a ideia una de natureza do homem e a forma como tudo se divide entre bem e mal, certo e errado, atribuindo características de não humano, patológico ou animalesco a tudo aquilo que não se encaixa nessa prerrogativa binária. Esse desumanizar ao que o autor se refere significa "animar o não humano, um programa que alivia o humano de sua autoimportância" (Hillman, 2010, p. 15).

Também Hellen I. Bachmann (2016) trata da transformação dos animais não humanos em símbolos do imaginário no inconsciente humano:

[...] são os mitos do mundo que refletem o significado central dos animais para os seres humanos dos tempos antigos. Pois, antes de explicar os fenômenos da natureza com base no conhecimento científico, o ser humano recorria às suas experiências imediatas. Delas ele derivava as concepções que lhe auxiliavam a explicar o mundo (Bachmann, 2016, p. 8).

As imagens de animais, vegetais e outros fenômenos da natureza habitam nosso inconsciente pessoal, coletivo e cultural. Incluímos aqui também os minerais que foram tão usados nos tratados de alquimia. Sobre isso, Jung relata que o interesse pela alquimia trata-se de um povoamento de imagens da alma, formada por uma corrente subterrânea para compensar os símbolos do cristianismo ancorados na imagem e semelhança de Cristo que "reina na superfície" (Jung, 1944/2012, p. 35, § 26).

Tais imagens não se perderam no decorrer do desenvolvimento humano e delas derivou um imaginário rico de mitologemas que repousam despercebidos na psique, mas que podem ser ativados em determinadas situações e experiências súbitas que nos inundam de imagens e fantasias. Em algum momento de nossa história essas imagens criaram protótipos e geraram as diversas formas como o ser humano se relaciona ou já se relacionou com os outros seres (Bachmann, 2016).

Jung refere-se a um sistema subjetivo diferenciado para o reconhecimento afetivo no outro, que pertence ao plano dos instintos que os animais possuem em um nível altamente elaborado na relação com sua espécie, com os seres humanos e outros seres. Segundo ele, "esse instinto nos faz perceber a menor instabilidade de natureza emocional e nos confere uma sensibilidade extremamente aguçada para perceber a qualidade e a quantidade de afetos em nossos semelhantes" (Jung, 1928/2012, p. 24, § 25).

Estamos diante de milhares de contradições no que diz respeito às relações entre animais humanos e não humanos. Como Juliana Fausto (2020) afirma, essas relações passam por atitudes que capturam, ativam, oprimem, promovem perda de habitat e categorizam os animais não humanos em animais de companhia, em pestes, escravos, cobaias ou para trabalhos forçados; eles são confinados à reprodução, à morte impedida, resultado da idealização inocente de um mundo sem mortes, ao exterminismo imoral dos assassinatos em massa. Perverte-se a relação com a morte enquanto fenômeno natural da vida, pela promoção de uma vida mortífera. Segundo a autora, "os animais estão implicados e são atores numerosos e potentes nas histórias e estórias que tecemos hoje, no começo do século XXI, sob o signo do capitalismo liberal, na época geológica chamada Antropoceno" (Fausto, 2020, p. 13). As manifestações humanas de maus tratos, domínio e poder, em contraste com diversos comportamentos compensatórios de cuidado, proteção e igualdade nos direitos dos animais e da natureza, demonstram a complexidade que existe na manifestação de afetos humanos na relação com outras espécies.

Não podemos deixar de mencionar as novas e mais recentes imagens dos morcegos em Wuhan (Mariz, 2020) e os macacos com febre amarela aqui no Brasil (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade [ICMBio]). Essas cenas de um cotidiano (in)consequente e de nossas (re)ações animalescas no contato com a natureza são geradoras de inúmeras imagens e afetos contra os não humanos. Uma narrativa confirmadora da necessidade de esforços para manter separado o homem do restante do mundo.

Como um prelúdio sem intenção, Fausto (2020) comenta que as zoonoses podem ser respostas às guerras declaradas aos animais não humanos, os quais, em ato de resistência, buscam saídas para a sobrevivência. Ela relata o exemplo das raposas voadoras na Austrália, uma espécie de morcego que passou a ser alvo de extermínio, ao se constatar que são portadores de um tipo de zoonose que ameaça a vida humana. Porém, trata-se de guerra declarada que não alivia a situação desses animais, pelo contrário, os tornam ainda mais depósitos de afetos malignos e tais efeitos são ainda mais devastadores.

Os afetos dos não humanos, sejam perceptíveis ou não por nós, são tão complexos quanto aqueles dos animais humanos (Fausto, 2020). Cabe lembrar mais uma vez que a complexidade humana tem sua raiz na animalidade. Todos os habitantes terrenos agem e existem cada qual à sua maneira, cada um com seu emaranhado de manifesta humanidade. Seguindo o raciocínio de Fausto (2020), nem todas as espécies contratacam guerras declaradas: o que se pode perceber é uma infinidade de maneiras de responder aos destroços devastadores do Antropoceno, inclusive espécies que se negam a qualquer tipo de adaptação e se recusam a sair do seu habitat, preferindo morrer do que mudar sua forma de vida. Uma atitude que foge do binarismo da guerra, do nós contra eles. É sem dúvida uma saída rumo à biodiversidade que permite a transformação do mundo no devir com outras espécies não humanas (Fausto, 2020).

Como vimos anteriormente com Mancuso (2019), as plantas também possuem seus próprios mecanismos de defesa para resistir e se adaptar às condições impostas; adotam soluções a partir da interação entre grupos para responder aos problemas; aliam-se a outras espécies de plantas e animais, às vezes, utilizando-se de métodos perversos de indução à dependência de substâncias para aumentar as chances de sobrevivência da sua espécie; na falta de movimento, agem como o avesso dos animais, servindo de alimento, ao fixarem CO2 em vez de emiti-lo; e, por fim, com a descentralização de suas terminações sensoriais para se adaptarem ao ambiente. As plantas são infinitas fontes de biodiversidade, com números estrondosos de descoberta de mais de duas mil novas espécies a cada ano, somente na última década (Mancuso, 2019).

Foi-se o tempo em que o animal não humano era visto como um ser sem nenhum tipo de consciência. Ao revisitarmos ainda mais os fatos na história, vemos que eles já foram considerados isentos de dor ou sofrimento. Uma herança cartesiana que nega a existência de alma em espécies que não o Homem. A dor, então, viria da experiência da alma e, sem um corpo animado, seria apenas como uma engrenagem de uma máquina funcionando por meio de reflexos. Dessa maneira, deram-se as sucessivas divisões entre espírito e matéria, corpo e mente, que também são atribuídas aos animais humanos (Fausto, 2020). Hoje, felizmente, reconhece-se que qualquer ser vivo é dotado de algum tipo de consciência, inclusive as árvores e plantas, como comentado nas observações de Peter Wohllenben (2017).

Por outro lado, os maus tratos de animais não humanos, as monoculturas no estilo "agro é pop" e a devastação da biodiversidade não cessam; um mundo inteiro vivo sendo chamado de recursos, de coisas e commodities. Há uma resistência enorme às mudanças de olhares, como aponta Singer (1975/2010):

A pesquisa com animais é uma indústria que envolve bilhões de dólares, e enfrentá-la não é fácil para um movimento novo e com pouquíssimo dinheiro. Mas, ainda assim, a pesquisa é um oponente mais fraco, com menos força política, do que o agronegócio. (p. XV).

Esse depoimento deixa claro o quanto a modernidade está enlaçada com os interesses comerciais acima de qualquer valor dado à vida. A ideia de progresso e desenvolvimento precisa urgentemente ser repensada.

Todo esse cenário contemporâneo revela a urgência de retomar o rumo de uma imaginação fértil capaz de sonhar outras formas de interação entre espécies humanas e não humanas que não sejam as monoculturais e antropocêntricas. Vale destacar que os arquétipos são estruturas universais vazias que vão sendo preenchidas com o passar do tempo e com o acúmulo das experiências das humanidades. Significa dizer que temos a capacidade inata de germinar outras formas de relacionamento entre as espécies, de criar ou gerar outras imagens que possam embasar nossas formas de se relacionar em um mundo em constante devir, agindo em consonância com nosso tempo que, à sua maneira, vem clamando por transformação, morte e renascimento. Diz Jung:

A psique parece mesmo construir um caso especial do fenômeno da vida. Com o corpo vivo partilha a psique da capacidade de produzir estruturas significativas e orientadas para uma finalidade, por meio das quais consegue reproduzir-se e desenvolver-se. E assim como a vida enche por si mesma a Terra com formas de animais e plantas, do mesmo modo cria a psique um mundo ainda maior, que é a consciência, ou melhor, o conhecimento do universo (Jung, 1926/2012, p. 100, § 165).

 

Considerações finais

Concluindo, por meio deste trabalho pretendemos ilustrar algumas imagens afetivas existentes nas relações entre humanos e não humanos e como elas aparecem e se sustentam no imaginário das pessoas e nas cenas do cotidiano. Essas imagens têm como base os arquétipos que nos afetam a partir do núcleo de um complexo que nos impõe colecionar imagens afetivas e experiências pertencentes às esferas pessoal e cultural; as sentimos nas paisagens, nos seres que habitam as paisagens; elas ultrapassam os limites da cultura e da experiência pessoal.

Manifestações de afeto tanto na prática do cuidado, como na prática do extermínio, entre outras infinitas formas de afetar e ser afetado, permeiam as relações entre as humanidades, entre as diversas maneiras do viver, desde o começo dos tempos, desde que a vida surgiu neste terreno chamado Terra. Vale destacar que nós humanos estamos entre os pertencentes ao reino animal. Fomos nos colocando entre barreiras enormes, na tentativa de reforçar o poder de uns sobre os outros e sobre outras espécies. É preciso reconhecer o espaço que existe entre as humanidades, aprofundar a escuta do vazio em aberto que ecoa o som de outras vozes, as vozes dos mais que humanos que existem por elas mesmas na interação com o mundo, bem como no imaginário humano.

Através da imaginação e dos sonhos construímos infinitas formas de relacionar características de cada ser, cada cultura e cada época. Cada cultura tem algo a dizer sobre suas feras feridas, bestas selvagens, animais domesticados, divisões de terras, plantios e colheitas, exploração e uso de recursos, cultos e rituais como reflexo daquilo que existe ou existiu no imaginário. O imaginário é construído em conjunto com o espírito da época, Zeitgeist, e na relação com as paisagens e seres do seu entorno. Os sentimentos e emoções que são despertados nas relações entre animais humanos e não humanos de determinado território e época são frutos de um emaranhado de tensões e sentidos que formam as imagens internas, pessoais e coletivas daqueles que ali habitam (Jung, 1934/2012e, p. 80, § 80).

Outros seres, que não os humanos, também habitam a Terra, possuem um modo único de imaginar, assim como um jeito próprio de cohabitar o imaginário do planeta. Todos precisam ter suas vozes reconhecidas como algo real e em coexistência com a voz dos humanos. Todos esses sons são vozes da humanidade e possuem uma infinita diversidade. Os novos tempos pedem novas combinações e visões de mundo que caminhem para além do modo antropocêntrico de guerrear contra a multiplicidade de formas de vida e que levem em consideração a biodiversidade na qual habitamos e que nos habita, portadora de um universo de cosmologias e de seres terrenos. Como disse Jung (1918/2012a, p. 36, § 47) "Os limites entre consciente e inconsciente são em grande parte determinados por nossa cosmovisão". É urgente um mundo que resgate a consciência de que todos os seres possuem um único direito, o direito à existência como vozes políticas.

 

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Recebido: 16 jan 2021
1a revisão: 29 mar 2021
Aprovado: 26 abr 2021
Aprovado para publicação: 4 maio 2021

 

 

Conflito de interesses: A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Candidata a analista pelo Instituto Junguiano de São Paulo - IJUSP, Associação Junguiana do Brasil - AJB e International Association for Analytical Psychology - IAAP (Zurique, Suíça). Psicóloga clínica e arteterapeuta. Membro do Departamento de Ecopsicologia da AJB. E-mail: daniela.laskani@yahoo.com.br