ARTIGO
DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2020.vol05.0005
A vida compartilhada: um estudo sobre a terapia de casal e a descoberta de si
The shared life: a study of couples therapy and self discovery
Vida compartida: un estudio de terapia de pareja y autodescubrimiento
Raquel de Aguiar MIGUEL; Thaísa TOBIAS; Mauro Sérgio da ROCHA
Universidade Paranaense - Unipar, Umuarana, PR, Brasil
RESUMO
Por meio da psicologia analítica, o presente artigo tem como finalidade refletir sobre relacionamentos de casal e seus símbolos e compreender a relevância desses componentes dentro do processo terapêutico. O trabalho entende o relacionamento de casal como um fenômeno que pode auxiliar o sujeito a ressignificar suas experiências de vida, de maneira a favorecer o processo de individuação e suscitar transformações na estrutura psíquica. O artigo usa como base o conceito dos arquétipos animus e anima e suas imagens relacionadas, a fim de demonstrar como esses conteúdos movimentam a psique. Evidencia-se assim que, como ocorre com outros arquétipos que fazem parte da estrutura psíquica, a energia relacionada a animus e anima pode corroborar o entendimento sobre a psicodinâmica e a compreensão sobre certas ações humanas, que movimentam os sujeitos na busca por um companheiro, como uma forma de se sentirem mais completos em suas experiências de vida. O artigo descreve ainda a maneira como essas energias podem ser percebidas em vivências de casais na atualidade, em busca do autoconhecimento. Ao final, por meio da vertente teórica junguiana, o artigo demonstra a possibilidade de se abordar os arquétipos da anima e do animus e sua influência nas projeções conjugais. Apresentando, de que forma, estes conhecimentos podem se tornar úteis enquanto ferramenta terapêutica para o analista que trabalha com conteúdos da terapia de casal.
Descritores: Relações conjugais, alma, simbolismo, psicoterapia analítica.
ABSTRACT
Through analytical psychology, this article intends to reflect on the relationships of couples and their symbols and to understand the relevance of these components within the therapeutic process. This work understands the relationship of a couple as a phenomenon which can help the individual to give new meaning to their life experiences, in a way to facilitate the individuation process, promoting changes in their psychic structure. The article is based on the concept of animus and anima archetypes and related images in order to demonstrate how these contents set the psyche in motion. It becomes evident that, like other archetypes that compose the psychic structure, the energy related to animus and anima can corroborate the understanding of psychodynamics and of certain human actions, which move the individuals for the search for a partner, as a way of feeling wholeness in their life experiences. The article goes on describing how these energies can be perceived on experiences of couples in these days, in search for self knowledge. At the end, the possibility of approaching the archetypes of anima and animus and their influence in conjugal projections, is demonstrated through Jungian psychology, presenting in what way, this knowledge may result useful as a therapeutic tool for the analyst who works with couples therapy contents.
Descriptors: Marital relations, soul, symbolism, analytical psychotherapy.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo, por medio de la psicología analítica reflexionar sobre las relaciones de pareja y sus símbolos, y comprender la relevancia de estos componentes dentro de los procesos terapéuticos. El trabajo entiende la relación de pareja como un fenómeno que puede ayudar al individuo a resignificar sus experiencias de vida, a fin de colaborar con el proceso de individuación, causando cambios en la estructura psíquica. El articulo se basa en los conceptos de los arquetipos de animus y anima y sus imágenes relacionadas, para demostrar como estos contenidos mueven la psique. Se torna evidente que, al igual que otros arquetipos que forman parte de la estructura psíquica, la energía relacionada con animus y anima puede corroborar con la comprensión de la psicodinámica y de ciertas acciones humanas que impulsan a los individuos a buscar un compañero, como una forma de sentirse más completos en su experiencia de la vida. El artículo también describe de qué manera se pueden percibir esas energías en las vivencias de las parejas de hoy, en busca de autoconocimiento. Finalmente, presenta, a través de una perspectiva teórica de Jung, como es posible pensar en este tema como una herramienta terapéutica para el analista que trabaja con contenidos de terapia de pareja.
Descriptores: Relaciones conyugales, alma, simbolismo, psicoterapia analítica.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo refletir sobre os relacionamentos de casais e sobre as manifestações psíquicas que permeiam a relação a dois, na perspectiva da psicologia analítica. O trabalho demonstra a relevância da compreensão desses conteúdos para o indivíduo e para o terapeuta que se propõe a atender casais. Mostra, também, como o relacionamento de casal e seus símbolos podem colaborar com o processo de individuação do sujeito, pois, compreende-se que os conteúdos envolvidos na relação podem ser entendidos como uma fonte de energia que movimenta a psique, portando imagens que direcionam a relação dos sujeitos envolvidos.
Dentro desse panorama, a compreensão sobre os símbolos pode ser entendida como o ponto de partida do processo terapêutico, pois eles promovem a relação do sujeito com conteúdos inconscientes e/ou desconhecidos que fazem parte da psique. Através de um olhar diferenciado, os símbolos podem ser observados em diversos aspectos da vida como, por exemplo, em sonhos, fantasias, linguagem, desenhos, contos, mitos, obras cinematográficas, dentre outros. Neste contexto, destacam-se as expressões humanas que dão sentido aos símbolos, quer o sujeito faça isso de maneira consciente, quer não. Todavia, vale ressaltar que mesmo todas essas representações não são capazes de demonstrar a totalidade de um símbolo (Penna, 2013).
Dentro do trabalho terapêutico, segundo Penna (2013), para realizar a interpretação simbólica, é importante que se estabeleça um método que possa nortear o terapeuta no entendimento dos fenômenos que compõem a relação do sujeito com seus conteúdos e, assim, colaborar com a tradução dos conteúdos para a consciência. De acordo com a autora, o ponto central para que se compreenda um símbolo consiste em traduzi-lo, fazendo relações entre os conteúdos e as vivências trazidas pelo sujeito. Afinal, o símbolo não se apresenta de forma clara à consciência; deve-se buscar ir além da dimensão racional para conseguir fazer essa tradução, estabelecendo uma relação entre o inconsciente e a consciência.
Os eventos psíquicos são vistos como manifestações provenientes da relação entre as experiências de vida e o símbolo. Ao entrar em contato com o símbolo, a psique movimenta-se para buscar assimilá-lo, pois carrega consigo uma gama de sentidos que precisarão serem unidos às experiências próprias do indivíduo para que possam ser assimilados. Portanto, é um amálgama entre conteúdos que são comuns para toda a humanidade e experiências individuais (Silveira, 1968/1997). O sujeito é fruto desse processo relacional entre estruturas psíquicas individuais e coletivas. Nesse sentido, conforme Jung (2013a), o objeto central dentro da abordagem analítica é o próprio humano e suas interações com a vida. Como objeto de estudo, a psique humana deve ser compreendida através da dinâmica que movimenta os conteúdos e suas inter-relações. Aqui, em específico, na relação entre o casal.
Assim, por meio da interação do sujeito com as representações simbólicas que permeiam o relacionamento de casal, é possível notar uma gama de imagens e significados que oferecem um processo interacional entre consciente e inconsciente, na estruturação das personalidades envolvidas.
Com base nesses pressupostos, o presente artigo propõe uma reflexão sobre os relacionamentos conjugais, de forma a contribuir para possíveis discussões relacionadas ao tema, e busca ainda demonstrar como os conteúdos simbólicos influenciam as vivências dos sujeitos.
Ao final, faz-se uma explanação sobre possibilidades do trabalho terapêutico com os conteúdos descritos; remete-se, assim, à ideia de que conteúdos relacionais são possibilidades criativas que podem se desenvolver no decorrer do processo amoroso, gerando transformações, uma vez que o relacionamento entre os componentes dos casais oferece meios para que os sujeitos envolvidos possam entrar em contato com partes de si mesmos, promovendo o autoconhecimento e o fortalecimento da relação como um todo, por meio da compreensão e da assimilação de experiências e vivências conjuntas.
Contudo, faz-se necessário delimitar o que se concebe enquanto relacionamento de casal neste estudo. Conforme Jung (2013b), as reflexões quanto ao relacionamento entre casais se dão no sentido da convivência, das relações físicas, biológicas e sociais, contemplando a relação psíquica do casal, na qual existe a troca de energia e a interação entre as estruturas psíquicas dos envolvidos. Ambos se afetam e interagem, transformando e compondo uma relação de conteúdos individuais e coletivos, de origem diversificada.
Portanto, neste trabalho, busca-se discorrer sobre a psicodinâmica dos relacionamentos entre casais, tendo como intenção pensar em ferramentas terapêuticas úteis, tanto para o sujeito quanto para o analista, que auxiliem no processo de individuação e transformação do ser.
A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo foi a de revisão de literatura. Além das "Obras Completas de Jung" e da literatura junguiana sobre a temática da relação de casal, foram realizadas buscas em diferentes bases de dados por publicações e artigos científicos, impressos e eletrônicos, tratando do tema em estudo.
Psicologia analítica e símbolos
Para o entendimento da relação de casal a partir da perspectiva da psicologia analítica, é necessário compreender o conceito de símbolo e a forma como nos relacionamos com este fenômeno psíquico. Tomados como uma das bases da psicologia analítica, os símbolos possuem um papel importante por conterem em si imagens psíquicas carregadas de energia. Fazem parte da estruturação psíquica de cada um e, ao mesmo tempo, são compartilhados universalmente, interferindo na psicodinâmica do casal, seja de forma consciente, seja de forma inconsciente.
Portanto, a psicologia junguiana trabalha com uma análise simbólica que compreende os conteúdos dentro de uma perspectiva que se faz comum para toda a humanidade em diferentes épocas. Esses conteúdos fazem parte do inconsciente coletivo em conexão com a realidade do sujeito; armazenam e concentram energia que movimenta a estrutura psíquica, transformando a realidade interna e externa por meio da ligação entre a psique coletiva e a individual (Silveira, 1968/1997).
Com a transformação dessa energia, pode-se gerar uma relação entre os processos conscientes e inconscientes, algo que impulsiona o humano à relação consigo e com o outro (Jung, 2000). Como dito, essa imagem gerada pela transformação da energia é, portanto, a representação do que aquele símbolo pode significar para o sujeito, - uma parte, não a totalidade do conteúdo - que compreende o universal e o cultural (Stein, 2006). Assim, a relação que o sujeito estabelece com esse símbolo ocorre por meio de imagens, que se tornam ferramentas que podem fornecer uma compreensão sobre o sujeito (Silveira, 1968/1997). Dessa forma, também encontra-se a imagem de casal pelo decorrer da história, tracionando conteúdos coletivos e culturais, que se apresentam pelo e para o indivíduo em um processo terapêutico.
Retomando as reflexões quanto aos símbolos, estes são compreendidos como uma forma de manter viva a relação do sujeito com o inconsciente coletivo, por meio de mitos, histórias, contos de fadas, parábolas, entre outras manifestações culturais. Dessa maneira, os símbolos apresentam-se como possibilidade, um contato com os conteúdos inconscientes até então desconhecidos, mas presentes na psique. Eles atuam dentro da psique em busca de equilíbrio entre os opostos (consciente/inconsciente), promovendo caminhos para a individuação de cada um dos envolvidos, suscitando insights, elaborações, integrações e ações dos sujeitos inseridos na relação (Pessoa, 2017).
Os símbolos contêm imagens que por si só não são capazes de fazer a conexão entre os conteúdos inconsciente e a consciência, as imagens precisam se ligar a outros elementos psíquicos para que sejam construídas, integradas e recebam significado. Esses elementos fazem com que o sujeito atribua sentido próprio ao símbolo. Por mais que se aprofunde na explicação dos símbolos, não é possível delimitá-los devido a sua complexidade e dimensão de totalidade (Silveira, 1968/1997). Nesse sentido Penna (2013) aponta que a interpretação de um símbolo é um procedimento que tem como finalidade realizar a tradução e a compreensão do conteúdo, para que algo que não era conhecido possa ser elaborado e assimilado pela consciência. Isso produz a transformação dessa energia psíquica e abre possibilidades para a vida do sujeito.
É nessa perspectiva que a compreensão do símbolo e de suas implicações para o indivíduo em seu cotidiano é fundamental para o trabalho terapêutico na abordagem analítica, pois os símbolos fazem parte da estruturação da psique. Entender o funcionamento e os processos da psique amplia a compreensão que o sujeito possui de si e auxilia o andamento do processo psicoterapêutico.
Assim, compreender uma relação de casal por meio de uma perspectiva simbólica é perceber os conteúdos psíquicos em constante movimentação - no sujeito e na relação entre os envolvidos - em vista de um processo relacional que dá abertura para a transformação de cada uma das partes e do relacionamento como um todo (Vargas, 2004).
Por esse caminho, da integração entre as polaridades, pode se chegar à função transcendente, que promove novos caminhos e vai além das possibilidades existentes de renovação.
Relacionamentos entre casais
Atualmente os relacionamentos conjugais vêm passando por várias transformações resultantes dos movimentos sociais contemporâneos, com destaque para a tendência a relacionamentos menos estáveis e duradouros, influenciando os sujeitos a se adaptarem a uma realidade mais transitória em todos os aspectos. Todavia, aqui, o relacionamento é compreendido como um processo em que duas pessoas se escolhem e decidem traçar um novo caminho a dois.
A humanidade apresenta várias formas de se relacionar com o conteúdo amoroso. As religiões evidenciam o amor ao próximo; a filantropia, o amor às instituições; noutro ponto, o amor à pátria. Também identifica-se o amor maternal, o amor pelos pais, dentre as inúmeras formas de relações com essa palavra. Neste trabalho, estuda-se o amor conjugal que, por um lado, envolve a sexualidade e, por outro lado, o espírito, que traz consigo a realização do ideal do amor (Jung, 2005).
Esse tipo de amor conjugal, por vezes, aparece como a força que subjuga o sujeito, leva-o do céu até o inferno. Para Jung (2005), o mundo torna-se vazio para aquelas pessoas que não direcionam sua energia psíquica aos objetos (pessoas ou coisas), pois, para ele, é a incapacidade de amar que rouba das pessoas as oportunidades. Entretanto, ele também chama a atenção para o fato de que muitas pessoas acreditam que somente em uma situação amorosa conseguirão atingir o seu melhor.
Dentro da perspectiva junguiana, especificamente em relação ao tema, podemos considerar que características vinculadas aos aspectos femininos da personalidade - anima - buscam a vivência dos sentimentos e emoções, diferentemente dos aspectos masculinos da personalidade - animus - que buscam criar estabilidade e constância (Jung, 2005). Com isso, na relação, é preciso haver sacrifícios que proporcionem ligações profundas, verdadeiras, duradouras e responsáveis. Pensar o amor dessa forma, permite-se entendê-lo como um ideal de doação de cada parte que compõe o casal. Nesse sentido, Pessoa (2017) afirma que essa unidade que chamamos de "nós", a união do eu-outro, requer a exclusão da idealização do outro (projeções), retirando expectativas de que o outro nos complete.
Ainda de acordo com Pessoa (2017), na dinâmica conjugal, existem alguns fatores que estruturam a psique. Entre eles, os dinamismos parentais - matriarcal e patriarcal - são os primeiros a se manifestarem, no início do relacionamento. A influência primária ocorre em decorrência do arquétipo da Grande Mãe e tem como características a fertilidade, a nutrição, a sensualidade e o prazer. Da mesma natureza de um relacionamento mãe-filho, existe o cuidador e o cuidado, criando um espaço de acolhimento e de doação. Entretanto, é importante a alteração desses papéis: ora um será o cuidador e, noutro momento, será o cuidado, para que não haja identificação com os papéis, a fim de não ser um fardo para nenhuma das partes. Opostamente a esse processo, o dinamismo patriarcal funciona como o discriminador entre os polos; costuma delimitar, determinar o compromisso, para gerar uma ordem. Ele separa um do outro e administra as funções de cada um dentro do relacionamento. O embaraço deste dinamismo ocorre quando um dos parceiros identifica-se rigidamente com o papel de organizador da relação. Com isso, ele torna-se autoritário e impede a troca de papéis, o que atrapalha o processo de individualização que deve acontecer em ambas as partes.
Quando se estabelece uma relação mais flexível entre os pares, ocorre um dinamismo da alteridade, no qual os dois dinamismos anteriores vão interagir dentro de uma prática de respeito e de diversidade. Aqui, o indivíduo vai se perceber dentro da sua individualidade e, ao mesmo tempo, vai entender o que é do outro, agora separado. Nesse processo, cada um vai assumir suas necessidades pessoais e cuidar com carinho e respeito da relação. Trata-se de um processo que exige grande trabalho e disposição, regado de diálogo e paciência, pois, frequentemente os parceiros vão lidar com os opostos que influenciam a forma de ser do casal. Esses conteúdos promovem, também, uma maneira genuína de convivência e proporcionam uma troca de funções e a conscientização dos papéis (Pessoa, 2017).
Nessa perspectiva, entende-se que a problemática sobre os relacionamentos conjugais não está na procura de quem somos ou do que satisfaz o outro, mas sim, na construção ocorrida dentro de um relacionamento com o outro. A problemática aqui relaciona-se às projeções, nas quais um necessita do outro para poder ser (Pessoa, 2017).
Outro ponto relevante na escolha de um (a) parceiro (a), nessa perspectiva, é a compreensão das motivações conscientes e inconscientes. Este aspecto, na relação, promove tanto uma possibilidade transformadora quanto uma identificação que pode se tornar patológica. Nesse sentido, Jung (2013b) destaca o fato de que uma relação amorosa pode possibilitar o encontro com o si-mesmo, pois contribui para o desenvolvimento do processo de individuação.
Na fase da paixão, por exemplo, o desejo pode sobressair em relação a outros sentimentos. Nesta situação, aspectos indesejáveis e diferenças passam despercebidos, o que contribui para a realização das projeções (imagem fantasiosa). Quanto mais inconsciente a projeção, maior o risco de se apaixonar, não pela pessoa real, mas pela imagem que se criou dela, gerando uma relação mais primitiva (Edinger, 2002/2004). Seria a busca de colocar-se disponível para o parceiro, para poder vivenciar novas experiências somente por meio do outro, desconsiderando os aspectos individuais deste outro. Como se o indivíduo apenas se percebesse na relação pela existência do outro (Pessoa, 2017).
Nessa perspectiva, a escolha do parceiro pode, inicialmente, ocorrer por razões inconscientes e ligadas aos instintos, o que direciona tanto as paixões quanto as aversões. A imagem que se cria do par que se espera pode estar ligada às relações que o sujeito desenvolve com o pai (arquétipo do pai) ou a mãe (arquétipo da Grande Mãe), bem como, às figuras masculinas e femininas com quem conviveu durante sua história de vida (Edinger, 2002/2004). Esse acontecimento também contribui para a busca de uma visão idealizada da relação. Whitmont (1998) defende que os relacionamentos estão sujeitos a serem iniciados por projeções da anima ou do animus, conteúdos que, quando vivenciados somente pelas projeções, trazem para o sujeito apenas imagens únicas e idealizadas, que o tornam dependente do desejo pelo objeto amado.
Outros conteúdos também podem estar envolvidos como, por exemplo, a sombra - estrutura psíquica que representa os aspectos menos desejados da personalidade do sujeito. Conforme Pessoa (2017), socialmente, tem-se como prática julgar estes aspectos como desnecessários à definição de identidade e, por consequência, há uma busca por esconder esses conteúdos. Entretanto, o reconhecimento desses aspectos pode levar os sujeitos a tomarem consciência de certas características, a fim de acolher sua própria natureza. Nesse sentido, deve ocorrer uma introjeção das projeções, com a ideia de uma relação mais verdadeira consigo e com o outro.
Então, do ponto de vista psíquico, a relação entre o casal torna-se um fenômeno complexo, que contém em si aspectos dos sujeitos envolvidos, de ordem objetiva e subjetiva. Isso consolida e conecta a união entre os pares envolvidos e seus conteúdos. Para que se tenha um relacionamento, além da simples união física, é necessário que exista consciência, não uma consciência parcial (objetiva e racional), também não se pode considerar uma união se esta estiver inconsciente. Um relacionamento com predominância de conteúdos inconscientes não seria entendido como um relacionamento que proporciona o desenvolvimento dos envolvidos e da relação (Staude, 1988).
Para estabelecer um relacionamento mais real e harmonioso, há que se prezar pela consciência sobre o mesmo. Estar ciente de si é reconhecer sua própria identidade em meio ao coletivo, compreender-se na relação com o outro e, assim, reconhecer as diferentes realidades envolvidas (Whitmont, 1998). Por meio dessa consciência que pressupõe a diferenciação existe a possibilidade de um relacionamento psicológico, no qual abre-se a oportunidade para que o indivíduo possa viver a relação dentro de suas possibilidades (Staude, 1988).
O fato de existir a consciência, e a distinção entre o que é subjetivo e coletivo, não exclui a existência de espaços inconscientes na relação entre o casal. Não é possível a separação total entre o eu e o outro, e isso gera lacunas que influenciam o relacionamento. Dessa forma, há sempre algo sobre o que não se pode ter total acesso dentro da dinâmica psíquica do casal (Staude, 1988). Entretanto, tomar consciência das projeções diminui o risco de viver apenas na fantasia e abre caminho para um relacionamento psicológico (consciente e inconsciente) na dimensão da relação, combinando então fatores arquetípicos e pessoais (Edinger, 2002/2004).
A partir desse conhecimento sobre os conteúdos que envolvem uma relação de casal, podemos, então, adentrar no campo da prática clínica, para uma análise dos conteúdos apresentados, a fim de contribuir para uma compreensão maior sobre a relação. Isso torna-se possível quando existe um comprometimento entre os sujeitos para a construção de um relacionamento íntimo amoroso (Pessoa, 2017).
A terapia de casal na visão junguiana
Pensar em relacionamento humano, dentro da perspectiva analítica, é compreender o encontro de duas pessoas. A interação entre as personalidades, concebida como uma combinação química ou alquímica, promove alterações nas duas estruturas psíquicas envolvidas, como consequência da experiência do encontro e da troca de energia que nele acontece (Jung, 1944/2011).
Segundo Pessoa (2017), a terapia de casal visa a trabalhar o relacionamento entre o casal dentro de um modelo terapêutico face a face, em que, junto ao terapeuta, os parceiros analisam a relação e seus conflitos. Conforme já destacado, os relacionamentos originam-se com base em projeções de ambas as partes, e o intuito do trabalho terapêutico é promover a consciência sobre estes e outros aspectos que estão atuando de forma conflitiva na relação do casal e, também, sobre o próprio indivíduo.
Provavelmente a relação de casal é uma das melhores possibilidades para se ter um encontro dialético, uma vez que ela pode promover o contato com vários conteúdos até então inexplorados pelos sujeitos. Um exemplo, colocado por Benedito (2015), pode ser o enfrentamento da própria sombra, pois o relacionamento íntimo pode estimular o desenvolvimento de potencialidades e experiências que conduzem a partes pouco valorizadas da psique. A mesma autora aponta a possibilidade de se lidar com outros conteúdos inconscientes que remetem a conflitos e conteúdos relacionais com as figuras materna e paterna.
Com isso em vista, importa compreender que o casal que procura por terapia, de modo geral, busca uma solução para determinado conflito na relação. Os parceiros se apresentam com estados emocionais abalados, muitas vezes de maneira hostil. Raiva, mágoas, tristezas e ressentimentos são conteúdos psíquicos projetados um no outro que serão a base para o início do processo psicoterapêutico, pois, o casal foca seus problemas não na relação, mas sim no parceiro. Cabe ao psicoterapeuta ampliar a visão do conflito, voltando seus olhares para a dinâmica do casal como um todo. Pessoa (2017) denomina esse primeiro momento como exposição do conflito, pois essa nova maneira de encarar o conflito, como um todo, é uma forma de se desligar da energia que foi posta como "culpa" de uma das partes. Assim, o foco volta-se para o movimento do casal e a influência de um sobre o outro.
Pessoa (2011) apresenta ainda a ideia de que o ponto central desse tipo de terapia está no convívio entre os companheiros e os conteúdos vivenciados na relação. O importante é analisar os fenômenos emergentes e as demandas trazidas por cada uma das partes, de forma a proporcionar uma reflexão sobre os conteúdos e o fortalecimento da comunicação. No setting terapêutico, é relevante que a situação atual em que se encontra a união seja apresentada, para que possam ser compartilhadas as percepções de cada um sobre si mesmo e as expectativas em relação à união.
Na perspectiva simbólica proposta pela psicologia analítica, para o entendimento do conflito, é necessário que as imagens trazidas possam ser trabalhadas em conjunto. Isso proporciona um espaço de troca entre o casal e traz à tona pensamentos e sentimentos que poderão ser transformados na interação. Vale lembrar que, mesmo nesse processo, não se pode esquecer da individuação de cada um dos envolvidos - a subjetividade e as diferenças da personalidade de cada um, em vista à integração das particularidades e ao respeito mútuo.
Conforme a teoria analítica, existem diferenças básicas na estruturação psíquica entre homens e mulheres e, também na maneira como os diferentes gêneros relacionam-se com temas ligados à sexualidade. Percebe-se que na atualidade essas questões relacionadas ao feminino e ao masculino tornaram-se delicadas, devido à percepção equivocada de que Jung estaria, de certa forma, com uma visão tradicionalista e redutiva, por delimitar dissemelhanças entre homens e mulheres (Young-Eisendrath, 2002). Outros veem o autor como um partidário do feminino. Todavia, é válido enfatizar que Jung refere-se a estruturas que chamou de animus e anima como sendo conteúdos arquetípicos da psique.
É oportuno apresentar o que Emma Jung (1967/1991) propõe sobre esse assunto. Para ela, os conceitos de feminino e masculino estão disseminados no mundo e fazem parte da experiência humana como um todo. São conceitos que independem das questões de gênero ou de orientação sexual, pois, a despeito do gênero com o qual o sujeito se identifique, ele trará em si os polos feminino e masculino. Segundo a teoria em questão, isso é algo que faz parte da estruturação da psique humana, e o conhecimento sobre o qual a psicologia analítica reflete não está interessado em limitar o masculino ao homem e o feminino à mulher. A psicologia analítica dispensa especial atenção a esse fenômeno, reconhece desde os primórdios que no inconsciente existem os dois lados, ou seja, o polo ligado ao feminino e o polo ligado ao masculino, complementares entre si. Exatamente por serem complementares, apresentam em si diferenças que necessitam ser ligadas, para que o sujeito tenha uma experiência de vida mais completa. Esse fundamento pode ser percebido em toda produção junguiana, uma ideia de integração, não de segregação.
Esses conteúdos entrelaçam-se aos fenômenos sociais e avançam para além destes (Stein, 2006). Nesse sentido, a relação entre casais perpassa também pela análise e pela conscientização dos conteúdos relacionados ao encontro entre masculino e feminino, o que também mostra aos sujeitos quais seus papéis (personas) dentro da relação, algo que contribui, como dito, para o entendimento de conteúdos internos.
Quando o sujeito nasce e identifica-se com algum gênero, independentemente de qual seja ele, automaticamente o oposto irá ser constelado no inconsciente. Essas imagens com as quais nos identificamos ou não, de forma consciente e/ou inconsciente, movimentam a estrutura psíquica e a vida do indivíduo (Edinger, 2002/2004). Dentro da relação, esses conteúdos interagem e interferem na psicodinâmica do casal, pois cada uma das partes, por meio de seus conteúdos, compartilha a relação de forma específica.
A conscientização sobre a existência de aspectos femininos e masculinos em cada ser humano é a porta de entrada para uma vivência interior que abre possibilidades de experiências que contribuem para o trabalho com as projeções, na medida em que não há razões para se limitar a experiências de homens e/ou mulheres, pois nessa perspectiva, os seres humanos são tidos como duplos, como seres andróginos (Hopcke, 1993; Young-Eisendrath & Downson, 2002; Emma Jung, 1967/1991). Como colocado, a consciência sobre esses conteúdos influenciará as escolhas de companheiros, o convívio entre os mesmos e o processo de individuação do casal, movimentando as energias dentro do aparelho psíquico de forma simbólica.
As relações entre casais, portanto, estão ligadas a esses conteúdos internos e externos aos sujeitos. Dessa forma, tais conteúdos promovem a compreensão também das problemáticas entre os casais e seus complexos mais ativos e influentes. Quando uma pessoa procura pelo (a) companheiro (a), busca de forma consciente/inconsciente por pessoas que correspondam às imagens internas que possui e que sejam complementares à sua personalidade (Pessoa, 2017). Assim, projeta no outro a parte que encontra inconsciente em si, visa a um complemento que lhe forneça uma vivência mais plena.
No início do relacionamento amoroso existe a projeção, uma fantasia inconsciente na qual idealiza-se a pessoa amada - ligada à sexualidade, mas não apenas do corpo, também à sexualidade psíquica. Se o indivíduo for capaz de reconhecer as dimensões da paixão inicial, a relação poderá ser transformada à medida que a experiência afetiva promova o contato com os símbolos. Os conteúdos daí advindos têm a possibilidade de serem integrados à consciência ocasionando uma transformação na psique (Stein, 2006; Jung, 2013b).
Uma perspectiva mitológica pode exemplificar essa relação. No mito de Eros e Psiquê, de Apuleio, o arquétipo do feminino, Psiquê, une-se ao arquétipo do masculino Eros, inicialmente em uma relação mais apaixonada que se desenvolve nas profundezas da escuridão e em uma dimensão mais superficial e carnal. No decorrer do mito, os apaixonados encontram dificuldades para permanecerem juntos, até que, após superados os desafios, acontece o amadurecimento da relação e a abertura para a vivência do relacionamento de casal de uma forma mais profunda, em que cada uma das partes pode ser quem é, sem sufocar o outro, sem fazê-lo escravo (a) de seus desejos e/ou caprichos. Aprendem a se ver como seres de valor igual e de diferenças que se completam (López-Pedraza, 2003/2010).
Portanto, o processo de individuação dos sujeitos envolvidos e do casal como uno conecta-se diretamente com as relações entre o feminino e o masculino e com os demais conteúdos relacionados. O feminino transcende a partir do masculino e vice-versa; trata-se de um processo de criação e desenvolvimento compartilhado. Os arquétipos ligados a Psiquê (anima) e a Eros (animus), na mitologia grega, apresentam um significado profundo, ligam o divino à obtenção de uma personalidade que transcende a relação masculino/feminino, promovendo uma manifestação do Self - agora, do casal. Assim, compreende-se que, em uma relação de casal, existe o desenvolvimento do Self pessoal e do Self do casal, fazendo parte de um só processo. A união entre os opostos leva a uma relação e a uma conexão com as partes do si-mesmo, caminhando para a totalidade (Neumann, 1956/1993).
O papel do terapeuta
Na teoria junguiana, a prática psicoterapêutica ocorre por meio de uma relação dialética, entendida como uma combinação química ou alquímica. Dessa maneira, a forma como se dá o processo terapêutico, sua dinâmica, os comportamentos de ambas as partes e os fenômenos que ocorrem no setting terapêutico, são entendidos como uma produção bipessoal, de ação e reação. Um trabalho em conjunto, no qual cada uma das partes tem seu papel, que gera transformações na personalidade de todos os envolvidos (Goodheart, 2005).
Os envolvidos se afetam mutuamente, por meio da troca de energia, que acontece pela relação dentro do setting terapêutico. O paciente tem o papel principal, o processo pertence ao sujeito; o terapeuta é visto como um companheiro de jornada que percorrerá o caminho ao lado do analisando, seu conhecimento teórico e científico, preza pelo respeito às escolhas do analisando e à sua subjetividade. O terapeuta busca trabalhar com o sujeito amplificando conteúdos inconscientes a fim de promover transformação e o reconhecimento de novas possibilidades, o que suscita o processo de individuação. Nesse sentido, o paciente deve ser visto como um ser com potências e possibilidades, que busca a autonomia (von Franz, 1990/2011).
É importante que o terapeuta, ao trabalhar com casais, compreenda esse fenômeno simbolicamente, como união, como algo que pode contribuir com o processo de individuação de cada um dos envolvidos. A relação entre o casal é também uma oportunidade de o sujeito entrar em contato com partes de si mesmo, ter o confronto com a sombra e relacionar-se com suas emoções e afetos (Vargas, 2004). Ao profissional, cabe ficar atento a esses fatores.
Simbolicamente, a relação entre o casal é compreendida como uma ligação, a coniunctio, que promove a função transcendente. No trabalho com as imagens inconscientes relacionadas ao feminino e ao masculino que são projetadas no (a) companheiro (a), os pares passam a compreender que estes são conteúdos fantasiosos que podem não ser compatíveis com a realidade. É necessário que o profissional estabeleça uma conexão entre esses conteúdos. A consciência deve se mostrar disposta a interagir com esses complexos e a transformar a relação com as fantasias em uma relação possível (Silveira, 1968/1997), a fim de estabelecer um relacionamento real entre o casal.
A coniunctio (união dos opostos) é tida também como um símbolo ligado ao fluxo da vida, à renovação que é fecunda e infinita. Uma forma de transformar a relação com o outro se dá à medida que o terapeuta é capaz de promover junto aos pacientes a empatia com a realidade um do outro. Isso é feito também na intenção de lidar com o ódio e a agressividade. À medida que os parceiros passam a se perceber como seres humanos, com motivações pessoais, desejos, sonhos, necessidades, limitações e dificuldades, possibilita-se o relacionamento com os outros conflitos -- a fim de entender a raiz de suas mágoas, de seus ódios e o motivo pelo qual projeta no (a) companheiro (a). Esse movimento leva à percepção de que esses conteúdos são seus e encontram espaço para serem externalizados por pensamentos e fantasias em relação aos fenômenos que surgem durante a psicoterapia (Jacoby, 2011).
Nesse sentido, a função transcendente é a terceira parte que faz a reconciliação, união e conexão entre duas partes relacionais, criando algo novo. Pode ser tanto em relação a um novo símbolo, por exemplo, na união entre animus e anima em que emerge simbolicamente o Self, ou também, a uma nova ação, uma nova forma de ser no mundo (Jacoby, 2011).
Um relacionamento de casal que promova a individuação busca relacionar não apenas a fantasia, mas também o sujeito como ele é -- para que um não se perca no outro. A mulher precisa conviver com o homem primitivo e seus conteúdos elaborados. Isso fortalece o feminino e a transformação de ambos. O homem também não pode se relacionar apenas com a beleza da mulher, ele precisa conviver com suas necessidades de afeto, a fim de fortalecer o masculino. Neste sentido, o conto de Eros e Psiquê apresenta um exemplo desse processo ao falar da união do feminino com o masculino, da transformação que pode acontecer no relacionamento de casal a partir da ligação entre a perfeição e a imperfeição (López-Pedraza, 2003/2010).
Para que se conduza o atendimento, o terapeuta deve nortear sua conduta a partir da dinâmica psíquica do casal. Ou seja, o profissional busca na realidade existente entender a subjetividade da relação. Assim, a percepção, o manejo da sessão, as intervenções e ferramentas serão pensadas a partir do que proporcione consciência aos envolvidos (Pessoa, 2011). A individuação, neste processo, constrói-se à medida que cada uma das partes envolvidas passa a ter consciência de si, do outro e do todo, na revelação de semelhanças e diferenças existentes. Esta consciência também auxilia a imagem simbólica do "ser casal" aos sujeitos. Dessa forma, há respeito às personalidades dos envolvidos e suas características. Ao psicoterapeuta, cabe o papel de possibilitar ao casal um espaço para que possam se relacionar com os conflitos existentes. De forma livre, auxilia as escolhas, sem julgamentos, a fim de clarificar os conteúdos emergentes (Vargas, 2004).
Seguindo com esse pensamento, Vargas (2004) diz que a relação de casal deve ser concebida como uma via que promova aos envolvidos a oportunidade de desenvolvimento e crescimento pessoal. O terapeuta auxilia o casal na comunicação, estimula a falar sobre vivências, sentimentos e expectativas da relação. De maneira a deixar claro que o espaço terapêutico é um local de reflexão, que trabalha a relação e as emoções a partir da fala e da relação humana. Assim, com a figura do psicoterapeuta, o casal constrói em conjunto um caminho que transforma os conteúdos que geram sofrimento, à medida que falam sobre seu relacionamento.
Conforme Pessoa (2011), um dos desafios que o terapeuta encontra na terapia de casal está relacionado aos fenômenos de transferência e contratransferência, ligados ao terapeuta. Esses conteúdos são repletos de fantasias que podem não corresponder ao real, o que pode prejudicar a relação do casal, pois coloca no profissional uma expectativa que não é possível de ser atingida. Com isso, ocorrem frustrações e descontentamentos, promovendo um bloqueio na convivência amorosa. Quando o terapeuta detectar, durante a análise, essas situações deve trazê-las ao encontro analítico, para que exista a assimilação consciente dessas imagens e sua transformação.
Seguindo com a compreensão acerca da transferência e contratransferência, Pessoa (2011) aponta que comumente cada um dos pacientes tende a buscar meios de influenciar o terapeuta para tê-lo como um partidário. Mas, nesse processo, o profissional deve estar ciente de que trabalha com a perspectiva conjugal, ou seja, o "nós", sem suprimir a subjetividade e a individuação de cada uma das partes. O terapeuta poderá ser afetado por conteúdos internos seus ao ver a mulher que sofre ou tomar partido da pessoa que foi enganada, tomado pelo arquétipo do herói ou do sacerdote. É importante que o analista esteja atento e tome consciência, para que não entre na contratransferência e seja tomado por seu inconsciente, privilegiando uma das partes do casal.
Assim, é necessário que o analista tenha relação com seus conteúdos inconscientes para que haja objetividade em seus apontamentos sobre a relação do casal, oferecendo aos envolvidos a oportunidade de contato com os aspectos inconscientes envolvidos no relacionamento. O espaço é para que ambas as partes se expressem sobre a temática levantada e sobre sua percepção a respeito dos assuntos. Faz parte do papel do profissional encontrar junto aos pacientes o caminho mais favorável para o desenvolvimento mútuo (Pessoa, 2011).
Outro ponto importante diz respeito às fantasias relacionados à mãe ou ao pai. Um homem pode buscar na esposa a imagem da mãe, na espera de uma companheira que seja acolhedora e cuide dele como a mãe o fazia. Já a mulher, ao buscar no companheiro o pai, procura por uma figura masculina protetora que a defenda dos males do mundo. Em ambos os casos, o que ocorre é que existe um desenvolvimento primitivo desses conteúdos, presos ao nível das primeiras relações com os papéis do masculino e do feminino. Enquanto este conteúdo não for clarificado pela consciência e transformado, acarretará em uma relação mais primitiva e frustrante para ambos os lados: para quem projeta e para quem recebe essa projeção. É preciso que o relacionamento do casal ultrapasse esse tipo de relação mais infantil, para que possa se adequar à imagem mais condizente com a fase atual em que o casal se encontra (Silveira, 1968/1997).
A função do analista dentro da terapia de casal é vasta e deve ser pensada dentro da demanda e da necessidade de cada casal que busca pelo atendimento, pois não existe uma fórmula que se aplique a todas as relações entre casais, cada relação é única. Mesmo com os conhecimentos dos conteúdos arquetípicos e simbólicos que englobam essa relação, é preciso compreender que estes não excluem a particularidade de cada casal. Pelo contrário, servem como ferramenta para que o terapeuta amplie a análise dos fenômenos trazidos pelos pacientes (Vargas, 2004).
Um dos pontos principais na terapia está ligado à função transcendente, ou seja, ao trabalho para que cada um dos envolvidos no relacionamento possa compreender suas relações com os arquétipos e, ao mesmo tempo, trabalhe seu par animus/anima a fim de desenvolvê-los. A auto-responsabilidade e o autoconhecimento levam à transformação do relacionamento do casal e são, então, caminhos para a individuação e para uma relação mais harmoniosa e verdadeira (Silveira, 1968/1997).
Nessa condição, cabe ao profissional estabelecer junto aos pacientes uma relação de análise simbólica, que amplifique os conteúdos, na qual que se oferece o mínimo de explicações racionais, para que o paciente entre em contato consigo mesmo de uma maneira autêntica e possa estabelecer uma relação diferente das relações habituais. Nessa perspectiva, o sujeito visualiza possibilidades que extrapolam a dimensão racional e traz conteúdos inconscientes latentes (Goodheart, 2005).
É esperado que o profissional possa auxiliar no relacionamento amoroso de casal, de maneira a apresentar aos companheiros uma perspectiva de relação, na qual ambos possam viver suas diferenças e similaridades.
Palavras finais
O desenvolvimento do presente artigo intencionou uma reflexão sobre o relacionamento de casal e o processo terapêutico com casais. O trabalho discorreu sobre conteúdos e possibilidades vivenciadas nesse processo e também sobre a utilização de ferramentas terapêuticas que contribuem para o processo vivencial dos envolvidos.
Analisou-se ainda a influência sobre os relacionamentos amorosos proveniente da ligação dos indivíduos com a sociedade na qual estão inseridos, em conexão com suas realidades singulares. Assim, este artigo apresentou uma discussão que levou em consideração aspectos simbólicos e subjetivos, conscientes e inconscientes, que envolvem um relacionamento.
Em específico, este trabalho buscou compreender a relação do casal de forma coletiva e singular, oferecendo uma visão ampla deste fenômeno e demonstrando um movimento no qual a relação é envolta em um contexto social que afeta e é, constantemente, afetado.
Importante foi o destaque dado ao papel do terapeuta, a partir de uma visão na qual este apresenta-se como um elo conciliador que se sustenta por meio de uma perspectiva teórica que norteia sua prática profissional e, ao mesmo tempo, oferece um olhar atento às particularidades do casal. A este profissional cabe o cuidado com os conteúdos emergentes durante os atendimentos, assim como com as projeções que podem acontecer.
Um dos pontos centrais da prática terapêutica é viabilizar a comunicação entre o casal, oferecendo intervenções baseadas em uma escuta qualificada e sensível. Dessa forma, o profissional promove o autoconhecimento, a reflexão e a aceitação das semelhanças e diferenças, a fim de que o casal transforme sua condição visando ao processo de individuação, ou seja, o processo intenciona que cada um possa ser quem é, ciente de si e do outro.
A compreensão de si auxilia na compreensão do outro e da própria relação. Não existe uma perfeição a ser buscada em um relacionamento amoroso, o que se tem é a procura constante por entendimento, em uma ligação em que se lida, frequentemente, com o bem e o mal de cada sujeito.
Referências
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Recebido: 25 nov
2019;
1a revisão: 16 mar 2020;
Aprovado: 22 abr 2020;
Aprovado para publicação: 29 abr 2020
Conflito de
interesses: Os autores declaram não haver nenhum interesse profissional
ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a
este manuscrito.
Minicurrículos: Raquel de Aguiar Miguel - Graduanda do curso de
Psicologia da Universidade Paranaense - Unipar. Umuarama/PR, Brasil. E-mail:
raquel.98ag@gmail.com.
Thaísa Renata Silva Tobias - Graduanda do curso de Psicologia da Universidade
Paranaense - Unipar. Umuarama/PR, Brasil. E-mail: thaisatobias01@gmail.com.
Mauro Sérgio da Rocha - Especialista em Psicologia Junguiana Clínica
pela Uningá/Instituto Prometheus. Professor da Universidade Paranaense
- Unipar. Psicólogo clínico. Umuarama/PR, Brasil. E-mail:
rochapsic@prof.unipar.br.
* Este trabalho é derivado do Trabalho de Conclusão de Curso da
Universidade Paranaense - Unipar